O junkspace do sagrado – por Francesco Perrotta-Bosch

O junkspace do sagrado

por FRANCESCO PERROTTA-BOSCH

Yael Bartana. “Inferno”, 2013, video stills. Cortesia de Petzel Gallery, Nova York, Annet Gelink Gallery, Amsterdã, e Sommer Contemporary Art, Tel-Aviv

 

Imponência e importância estão tão distantes quanto luz e treva, bem e mal ou céu e inferno no mastodôntico Templo de Salomão que o bispo Edir Macedo fez erguerem São Paulo.“A escala usada por Salomão não atendia à necessidade da Universal para os dias atuais”, esclarece o memorial do pro­jeto arquitetônico, que busca reproduzir a mítica edificação de Jerusalém descrita no Antigo Testamento. “O Senhor ins­pirou o bispo para construir algo grande e portentoso como este templo em que estamos”, reitera um pastor de voz estri­dente ao final da cerimônia das seis da tarde do último dia de agosto. Estamos no Brás, Zona Leste da sétima cidade mais populosa do mundo, terra prometida para o símbolo maior da Igreja Universal do Reino de Deus, culto neopentecostal fundado num subúrbio carioca em 1977 e que hoje alega estar presente em mais de 200 países.

Não é de agora que a grandiosidade arquitetônica vai de par com o simbolismo religioso. Para um arquiteto con­frontado com os números grandiloquentes e a saraivada de superlativos da própria Universal e do noticiário, não é possível nem desejável deixar de comparar o Templo de Salomão a outros monumentos religiosos – pelo menos no que diz respeito ao patamar, elevadíssimo, de pretensão. E a discrepância dimensional do templo inevitavelmente remete à lógica urbana europeia de monumentos que se destacam do gabarito de seu entorno. Por lá, são recorrentes as exuberantes cúpulas, mas no Brás a Universal contentou-se com um teto plano. E entre prédios decadentes e vias levemente intricadas, o que o visitante avista, a mais ou menos um quilômetro da chegada, é o topo de uma edificação bege com ornamentos piramidais sobre a platibanda, que para mim remetiam às pontas ascendentes de uma coroa ou, por seu desenho, a uma peça de Tetris.

O que mais me intrigou, no primeiro momento, foi a espécie de praça entre a fachada do templo e o corredor de ônibus da avenida Celso Garcia. Aqui, repete-se como farsa a descrição de Giulio Carlo Argan para a colunata de Gian Lorenzo Bernini que dá forma à praça de São Pedro, no Vaticano. Lá como cá, graças a uma trama urbana de relativa organicidade e à densa ocupação dos quarteirões do entorno, só é possível ter uma ampla percep­ção visual da grandiosa edificação religiosa quando se chega à praça que a precede. Enquanto o arquiteto e escultor italiano criou na praça, conforme lembra Argan em sua História da arte italiana, “uma duplicação ‘urbanística’ da espacialidade arquitetônica do monumento”, Rogério Silva de Araújo, o Bernini de Edir Macedo, seguiu o exemplo maior da tradição urbanística pau­listana, quiçá nacional, e desenhou um gradeado metálico requintado, cujo metal preto dominante é acrescido de rica ornamentação de rocalhas doura­das. Esse gradil, com sutileza, demarca a praça de Salomão, nossa forma pecu­liar de conceber um espaço urbano dilatado para a convergência de pessoas.

No entanto, aqui, um projeto total, como o da praça italiana concebida no século 17, não foi completamente realizado – e dificilmente por falta de verbas, haja vista a movimentação de envelopes para dízimo e máquinas de cartão (débito ou crédito?) no culto a que assisti. O fato é que na santa quadra de Salo­mão persiste um edifício de nove pavimentos, enorme corpo estranho edi­ficado que nos faz contemplar suas empenas recém-revestidas. Ali só faltou uma placa com a inscrição urbs paulistana vincit omnia, urbanismo paulistano vence tudo, que bem poderia virar um outdoor não fosse a Lei Cidade Limpa.

Há outra notável característica do contexto em que se encontra o tem­plo. Aquele trecho do Brás é um polo religioso. Face a face com a sede maior da Universal, está a singela paróquia católica São João Batista do Brás, com mais de um século de existência e diminuta se comparada à pujança das congregações religiosas nas cercanias. Ao lado, uma Assembleia de Deus funciona em um prédio alto, espelhado, muito similar às sedes de órgãos públicos (principalmente do judiciário) das cidades médias brasileiras. Por trás do quarteirão de Salomão, uma fachada em estilo colonial abriga a Igreja Evangélica Brasileira. E ali perto, num pequeno galpão, acontece um culto em espanhol direcionado à comunidade hispano-americana do bairro. Ao melting pot religioso que envolve o Templo de Salomão, acrescenta-se ainda outra filial da Universal na mesma avenida Celso Garcia, a uma dis­tância de dois quarteirões.

Fui ao templo pela primeira vez menos de duas semanas depois de sua pomposa inauguração. Excursões chegavam por todos os lados, em ônibus dos quais desciam pessoas vestidas com distinção, certamente cientes do dress code divulgado em vídeos pelo YouTube. Quando cruzei o gradil da praça, soube que não poderia visitar o interior do tem­plo naquele dia e foi impossível não me lembrar de outro evento: a organização da entrada seguia o mesmo “padrão Fifa” do acesso aos estádios na Copa. Ou, numa associa­ção mais recorrente, assemelhava-se aos aeroportos e sua burocracia de serviços de imigração. O que eu via era uma promenade architecturale determinada por aquelas grades metálicas móveis com altura de corrimão. As pessoas eram alinhadas. Fileiras contínuas em zigue-zague até as tendas cobertas de plástico. Nelas estavam abrigados os scanners para detecção de metais. Profissionais que aparentemente faziam a segurança, mas se vestiam como pastores, cuidavam de revistar os peregrinos com detectores portáteis em punho.

Perguntei como era possível conseguir uma permis­são de entrada e orientaram-me a ir ao tabernáculo – espécie de tenda antiga que era utilizada como templo portátil pelos israelitas nômades do deserto. Humildemente consegui a credencial, uma pulseira de papel com a inscrição da data de acesso.

Restou-me, naquela tarde, admirar o exterior do Templo de Salomão. Na fachada, o que chama mais a atenção são as colunas. A humanidade já se deteve muito nesse elemento arquitetônico, especialmente nos capitéis que as encimam, antecedendo e sustentando as arquitraves e os frontões. A Grécia Antiga nos deixou o rigor da ordem dórica, as volu­tas jônicas e as folhas de acanto que adornam as colunas coríntias. A partir das três, há uma miríade de variações pelo mundo. Segundo o Antigo Testamento, o primeiro Templo de Salomão possuía, na fachada, duas colunas com capitéis “fabricados em feitio de açucena e tinham quatro côvados. E além disso, no alto das colunas, sobre as malhas, outros capitéis proporcionados à medida da coluna: na circunferên­cia, porém, do segundo capitel havia duzentas romãs postas em duas ordens”.1 Interpretações gráficas dessa descrição indicam um capitel semelhante a um abacaxi. Entretanto, no Salomão do Brás, temos o privilégio de averiguar um tipo de capitel novo, composto apenas de cinco anéis dourados dispostos paralelamente na extremidade superior. Uma invenção genuinamente brasileira, que reflete o minima­lismo comum na contemporaneidade.

Antes de voltar ao carro, o veículo preferido dos pau­listanos, que dessa vez eu estacionara na rua, ainda tive tempo de contemplar as 12 oliveiras trazidas do Uruguai e o cenáculo (pequena construção circular lateral). E, sobre­tudo, pude visitar o gift shop, onde vi dezenas de bíblias, minimenorás, chaveiros, quipás (um deles era de tecido de uniforme militar com a inscrição “Israeli Army”) e minia­turas de diversas cores e tamanhos. Comprei um pequeno modelo do Templo de Salomão em plástico dourado. Paguei nove reais.

Na segunda visita, com amigos, já usávamos as pulseirinhas e pudemos entrar no Templo por seu magnificente estacio­namento: ocupa os dois andares de subsolo, com dimensões semelhantes ao perímetro da construção, capazes de abri­gar várias centenas de veículos. Os lustrosos pisos de epóxi autonivelante e a longa sequência de colunas – todas com as plaquinhas com inscrições F1, B5, E9, D3 etc., a facilitar a localização e o logotipo com o Templo de Salomão em perspectiva bem arquitetônica, com dois pontos de fuga e feita apenas com linhas – nos proporcionavam certa tran­quilidade e alívio: é um tipo de espaço a que o cidadão local já está bem habituado. A organização era exemplar. Vários homens de terno, gravata e bastões sinalizadores orienta­vam para a vaga a que nos destinaríamos. Ouvíamos “Siga aquele pastor com a lanterninha na mão” e “Parem de ré para facilitar a saída”. Muitas recomendações para que tudo se mantivesse na mais perfeita ordem.

Antes do hall de elevadores e escadas para ascender ao Templo, revi mais uma vez os detectores de metais. Eram duas filas, uma para homens, outra para mulheres. Ambas com simpáticas e solícitas pessoas do respectivo sexo fazendo a revista. Fomos avisados que dali por diante não poderíamos portar celulares, câmeras e quaisquer aparelhos eletrônicos que registrassem o interior do templo. Bloco de anotações e caneta eram permitidos.

As escadas que subimos seguiam adequadamente as normas de segu­rança da ABNT e a legislação dos bombeiros. Finalmente, tínhamos chegado ao grandioso espaço central do Templo.

Mesmo com toda a expectativa criada pela ampla divulgação, a dimensão do templo impressionou. Mas logo nos demos conta de que não havíamos feito o percurso à altura do caráter cerimonioso daquela visita. Do estacio­namento, entra-se de supetão, negligenciando o ritual de acesso pela porta da frente, com o vestíbulo – tipologia espacial que também responde pelos nomes átrio, galilé e nártex – a nos preparar para a visão do interior da nave da igreja em todo seu esplendor. É uma sequência espacial recorrente em santuários das mais distintas doutrinas. Pedimos para sair. Ora, se é para entrar no Templo de Salomão, que não se entre pela escada de incêndio, mas sim pela porta da frente.

Indicaram-nos a volta pelo estacionamento e, de lá, fomos para o exterior. Caminhando pela rua lateral, ao rever a praça, percebi que o aparelhamento “padrão Fifa” tinha sido desmontado. A estrutura das tendas estava no chão. Porém, próximos ao belo gradil ornado, homens engravatados e mulheres de terno continuavam a usar seus aparelhos de detecção de metal, fazendo as devidas revistas nas organizadas filas separadas por sexo. Percebi que nos­sas pulseirinhas não faziam tanto sentido, muitas pessoas não as usavam. Talvez a Universal, para preencher os dez mil lugares da nave, tenha liberado o acesso aos fiéis transeuntes e menos organizados.

Com menos gente, pude observar melhor a praça. Em meio a palmeiras comuns ao paisagismo do Oriente Médio, o que saltava aos olhos eram os postes de luz em um curioso tom dourado (ou bronzeado). Difícil especi­ficar o material deles. O que os distinguia era sua similitude ao “capitel aba­caxi” descrito na Bíblia, sendo a infrutescência a parte de vidro de onde se emitia a luz.

Aproximando-me da fachada, vi um recorte emoldurado no plano em mármore israelense. O trecho era todo preenchido em vidro espelhado com uma película parecida a um insulfilm do mesmo tom amarelado pre­dominante. Não encontrei em minhas pesquisas bíblicas referências ao uso de vidro na versão salomônica original; talvez seja uma licença poética do arquiteto brasileiro. Em meio ao plano espelhado, vimos uma monumental porta que, em sua alvura e forma, indicava a entrada principal. A meu lado, um dos amigos notou que era parecida com a porta do shopping Iguatemi da Faria Lima. Em um primeiro momento, concordei. Mas, refletindo melhor, acredito que esteja mais próxima às exuberantes portas de acesso do shopping Pátio Higienópolis.

No galilé, fomos recepcionados por mulheres com túnicas brancas, cujo único detalhe era a inscrição “Santidade ao Senhor” bordada em fios cor de ouro. Da boca dessas moças, saía em tom gracioso a mensagem “shalom”.

Agora sim adentrávamos da maneira adequada à esplêndida nave. Não sei bem por que, mas o que primeiro me veio à mente foram as fotos do audi­tório do Partido Comunista da China: uma multidão perfeitamente orga­nizada diante do palco.

Outras senhoras de túnicas e homens de gravata interrompiam a livre passagem pelos corredores, indicando-nos a fileira de assentos em que nos acomodaríamos. O desejo de se sentar em determinado ponto do Templo era contido pela severa organização geral. Chegamos aos lugares de onde assistiríamos à reunião e nos sentamos em cadeiras cujos padrões de qua­lidade e conforto seguem os dos cinemas multiplex. A estrutura desses assentos é de plástico dourado, o apoio de braço é de madeira, e o estofa-mento, de tecido vermelho. Em termos de desenho, o que as distingue é o porta-envelopes de dízimo acoplado na parte posterior.

Aturdidos por tantos detalhes, não conseguíamos focar em um único ponto. Nas laterais da parede frontal, dois gigantescos telões em ultra high-definition nos hipnotizavam com trechos da Bíblia intercalados a ima­gens de paisagens nórdicas ou de Nárnia – não exatamente próximas à flora brasileira. Até que de repente, em pessoa e em alta definição, apareceu ele, o bispo Edir Macedo. Admiramo-lo grande, magnificente. O detalhe de cada ruga das mãos calejadas pelo ofício. Longas e brancas barbasem LED. Come­çava a reunião.

O discurso do bispo era acompanhado por milhares de vozes que expres­savam murmúrios e desejos pessoais distintos. Estávamos em meio a uma orquestraem afinação. Umcoral aquecendo as cordas vocais antes de se apresentar. Mas a fala do bispo predominava e a complexidade de seu con­teúdo permitia-me divagar pelos detalhes do templo.

Ainda acabrunhado com a intensidade da cerimônia, permaneci um tempo olhando para o chão. À primeira vista, o piso aparenta ser de már­more rosa. Entretanto, as peças parecem ter uma padronagem semelhante de veios e porosidades que caracterizam as rochas. Minha amiga encos­tou a sola dos pés descalços no pavimento e constatou que ele não era tão gélido quanto o contato com esse material provavelmente proporcionaria. Intuí que poderíamos estar sobre uma tecnologia mais sofisticada do que a simples extração, corte e polimento de uma pedra calcária. Uma cerâmica, quiçá porcelanato, que mimetiza o mármore: um sintomático retrato do desafio que o homem estabelece com a natureza.

O suposto mármore rosa também ascende do chão e constitui a base de mais ou menos três metros de altura das pilastras – colunas fundidas à parede – que modulam as faces laterais da nave. Entre a base e o capitel está o fuste, trecho intermediário e mais vertical da pilastra, feito em gesso branco e, ao centro, com um arabesco (mais uma vez em tom dourado) de ecléticas linhas entre o rococó e o art nouveau. No trecho superior da pilastra, está o capitel com incrementadas volutas. A arquitrave, elemento horizontal exatamente superior às pilastras, surge despre­tensiosamente como uma sanca de gesso, adornada com atemporais círculos e retângulos.

Entre as pilastras das paredes laterais destacam-se imen­sos menorás, candelabros de sete braços tão simbólicos do judaísmo. O fogo é substituído por recursos luminotécnicos. O que mais uma vez chamou a minha atenção foi o tom dourado que o reveste, o mesmo das duas faustuosas colunas posicionadas nas laterais do altar, cuja ornamentação aproxima-se da descrição bíblica, isto é, lá está o “capitel abacaxi”. Revestimento ardiloso, que não deixa saber se o menorá ou a coluna são de plástico ou metal. Instigado, fiz teste das três leves batidinhas de mão fechada para des­vendar o mistério: trata-se de uma sofisticada película que substitui a técnica milenar do trabalho em ouro puro e verí­dico, a proverbial tinta automotiva dourada. Ultrapassa-se antiquado conceito de autenticidade matérica de modo reluzente. Lustroso. Cintilante.

Enquanto apreciava a coluna, a veemência do bispo Macedo sobre a importância do dízimo fez-me retomar a atenção à cerimônia. Contemplando o altar, vejo que foi projetado segundo a tipologia de palco italiano. Há duas cortinas: uma é opaca, aparentemente de feltro vermelho, e outra contém um aspecto diáfano por seu tecido fino e alvo – o “véu do templo”. Acima, a gigantesca inscrição “Santidade ao Senhor” com uma tipologia que remete à escrita hebraica. Ainda que citado pelo bispo e pelos pastores, Jesus é uma figura ausente desse templo, que se parece muito mais com uma construção judaica do que cristã.

Sem aviso prévio, apagaram-se as luzes.

Era o momento apoteótico da reunião. Trilha sonora de clímax de filme de ficção científica americano. Edir Macedo com um discurso firme. A nave com os dez mil espectadores ficou um breu. Desligados os dois telões HD, toda a ilumina­ção estava concentrada na Arca da Aliança. Magnânima no centro do altar, de ouro não automotivo, irradiava luz. Historicamente, nela estariam guardadas as duas tábuas com os escritos dos Dez Mandamentos. Na descrição bíblica, a Arca teria uma medida aproximada de 125 por 75 centíme­tros, pouco menor que a reprodução da Universal. Sobre­posta a ela, encontram-se dois querubins de 5 metrosde altura – imagem obtida em descrições do Livro Sagrado e também das sessões de Indiana Jones e os caçadores da arca perdida – com as asas estendidas de forma que as pontas se toquem alinhadas ao eixo central da edificação.

Reacenderam-se as luzes e voltei minha face aos céus. Vi o teto forrado em madeira e modulado conforme a estrutura que o sustenta, seguindo o que Bíblia descreve. A miríade de lâmpadas ocupa o miolo de cada módulo. Da intersecção sai o som que anima a reunião por trás de tecidos do mesmo tom da madeira. Porém, o que me fascinou foi um detalhe minúsculo que surgiu para mim como uma revelação. Era o sprinkler. Não um, mas centenas deles, espalhados regular­mente pelo teto.

Ali percebi que o que explica o Templo de Salomão não são as Escrituras, mas os versículos do arquiteto contempo­râneo, a ideia de junkspace proposta por Rem Koolhaas, o espaço-lixo que é a “soma total da nossa arquitetura atual”. Escreve ele: “A continuidade é a essência do junkspace; ela explora qualquer invenção que permita a expansão, arregimenta qualquer recurso que promova a desorienta­ção (espelho, polimento, eco), apresenta uma infraestrutura contínua: a escada rolante, o sprinkler, a porta corta-fogo, a cortina de ar quente, o ar condicionado… O junkspace é selado, unido, não pela estrutura, mas pelo revestimento, como uma bolha.”2 O que vale para os shopping centers e aeroportos também vale, em absoluto, para esse junkspace da fé: “Aparentemente apoteótico, espacialmente grandioso, sua riqueza tem como efeito um vazio terminal, uma paró­dia maldosa que destrói sistematicamente a credibilidade da arquitetura, talvez para sempre…”.3 Messiânico, o arqui­teto holandês sintetiza o monumento do Brás: “Regressivos e futuristas, os interiores remetem simultaneamente à Idade da Pedra e à Era Espacial”.4

Olho para o lado e vejo o elemento que converge e sin­tetiza os aspectos dessa epifania: a porta corta-fogo. Portas de templos religiosos são elementos especialmente rele­vantes para a história da arte, pelo menos desde o concurso para a construção da segunda porta do Batistério de São João, em Florença, vencido por Lorenzo Ghiberti e Filippo Brunelleschi, e da seleção, um pouco mais tarde, para a terceira porta, a “Porta do Paraíso”, também executada por Ghiberti para a face voltada à Santa Maria del Fiore.

Sem janelas, hermético, o Templo de Salomão dá as costas à tradição cristã. O Salomão do Brás põe-se acima desse patrimônio para cumprir a pretensão e magnificência prometida a seus fiéis. Suntuosa é a porta corta-fogo, cujo relevo indica a serialização industrial banhada em ouro automotivo, até mesmo na barra antipânico.

A humanidade já foi capaz de edificar santuários como a Basílica de São Pedro, o templo budista de Angkor Wat, a Basílica de Santa Sofia, a Catedral de Chartres, a Grande Mesquita de Meca, o Templo de Salomão de Jerusalém, que habita nosso imaginário há milênios e do qual resta apenas o Muro das Lamentações. Ao longo do tempo, porém, a sociedade muda os parâmetros e as referências a que busca aderir. O que é grande e portentoso para os que edificaram o novíssimo Templo de Salomão está filiado ao ideal de beleza do biscoito fino da arquitetura paulistana: a Daslu (demolida devido a seu cará­ter de vanguarda arquitetônica) e os shoppings Higienópolis, Iguatemi, Pátio Paulista, Cidade Jardim. Esses são os paradigmas de esplendor para parte sig­nificativa da população de São Paulo. Neles, o povo de Salomão quer entrar. E, para tanto, paga dízimo.

O autor agradece a Alberto Rocha Barros, Celso Longo, Daniel Trench, Felipe Sabatini e Gabriela Moura Campos.

Nascido no Rio de Janeiro, FRANCESCO PERROTTA-BOSCH (1988) vive e trabalha em São Paulo. É arquiteto e pesquisador, coautor do livro Entre: entrevistas com arquitetos (Viana e Mosley, 2012). Seus textos podem ser lidos no blog acercaacerca.com.br. Foi vencedor do 2o prêmio de ensaísmo serrote, em 2013, quando escreveu sobre as relações entre o prédio do Masp, Lina Bo Bardi e John Cage.

NOTAS:

  1. Antigo Testamento. Terceiro Livro dos Reis: 7,19-20.
  2. Rem Koolhaas, “Junkspace”, serrote. Rio de Janeiro, n. 9, nov. 2011, p. 196.
  3. Ibidem, p. 196.
  4. Ibidem, p. 198.

Uma resposta para O junkspace do sagrado – por Francesco Perrotta-Bosch

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *