A metafísica de Miami Vice

A metafísica de Miami Vice
por Antônio Xerxenesky

“And though I’ve tried so hard
I couldn’t keep the night from coming in”
Joanna Newsom – Cosmia

INVESTIGAÇÕES ESTÉTICAS A PARTIR DE IMPACTOS PESSOAIS

Quando estreou no cinema, em 2006, Miami Vice foi um sucesso moderado de público e um fracasso considerável de crítica, principalmente se levarmos em conta as outras obras de Michael Mann. O Metacritic e o Rotten Tomatoes, dois dos principais sites que calculam a média das notas que um filme recebe dos críticos, apontam o nono filme do cineasta americano como a pior realização de sua carreira (excetuando A fortaleza infernal, um desastre de 1983 que muitos cinéfilos preferem esquecer que tenha existido). Lendo a maioria das críticas da época – dos Estados Unidos, do Brasil, da França –, é possível observar que Miami Vice foi julgado com base na maneira como atualizava a série de tv de mesmo nome, marco dos anos 1980 produzida pelo próprio Mann. Para seus defensores, o longa é um “ótimo entretenimento”, ainda que tenha “mais estilo que substância”; já os críticos acham que o  filme não passa de uma demonstração fetichista de lanchas e carros velozes com atuações constrangedoras dos protagonistas, um Colin Farrell de bigode anacrônico e um Jamie Foxx muito aquém de suas performances premiadas.

Em agosto de 2006, logo após a estreia de Miami Vice no Brasil, troquei uma aula de Crítica Literária por uma sessão do filme. Eu gostava das aulas e do professor, mas naquele dia estava mais para tiroteio que para estruturalismo. Duas horas e catorze minutos depois, eu saí do cinema com as pernas bambas, sem acreditar no que meus olhos tinham presenciado. O shopping e suas luzes brancas fluorescentes pareciam outras. Meu corpo tremia, como se eu tivesse passado por uma situação traumática que ainda não era capaz de compreender. Tentei falar com minha então namorada, que também tinha matado a aula de Crítica Literária para ir ao cinema comigo: “Você viu aquela cena em que…”, e ela respondia com um “E no momento em que…”, e eu engatava um “Você notou que…?” e ela respondia que sim, e apontava mais um detalhe, mais uma oscilação de foco, um frame sutil que poderia ter passado despercebido. Estávamos deslumbrados. Voltamos para minha casa em silêncio, com a sensação de que tínhamos assistido ao 8 e 1/2 de nossa época.

SER A PONTE

Das muitas razões para se admirar um filme de Michael Mann, a mais citada entre os cinéfilos há de ser a seguinte: Mann faz filmes de ação inteligentes, ou, usando uma expressão bastante comum entre a crítica americana, the thinking man’s action movies, ação para espectadores pensantes, uma maneira de diferenciar filmes como Fogo contra fogo (1995) e Colateral (2004) de obras produzidas em massa por Hollywood. Dito de outra forma: Michael Mann concretiza o sonho pós-modernista de construir uma ponte sólida entre a alta e a baixa cultura. Há ação, tiroteio, policiais e bandidos, mas também dramas morais e um visual estilizado. Mas este conceito – o de aliar cultura de massa a um formalismo que pode ou não ser considerado erudito –, de tão repetido, parece ter perdido a força. Criar essa ponte, ser essa ponte, não é mais um valorem si. Apenas um indício de que, ao menos, você está afinado com a cultura de seu tempo.

Com o advento da chamada “teoria crítica”, isso é, do conjunto de ideias desenvolvidas pela legião de filósofos pós-estruturalistas e devidamente assimiladas por acadêmicos de toda a parte do globo, quase qualquer obra pode ser analisada e dissecada aos últimos detalhes com base na filosofia e na psicanálise. Slavoj Žižek pode usar Lacan ou Derrida para refletir sobre Procurando Nemo e usar Procurando Nemo para explicar Lacan ou Derrida. De alguma forma, juízos de valor rigorosos como os que marcaram a Escola de Frankfurt em geral e Theodor Adorno em particular foram escanteados em uma inédita valorização da cultura de massa. E como Miami Vice agora pode ser estudado com o mesmo detalhamento que Persona, de Bergman, ou o último Transformers, de Michael Bay, um acadêmico chega a sentir receio em atribuir juízos de valor. A pergunta a se fazer, portanto, é: “sim, é possível escrever uma tese sobre a última produção anódina hollywoodiana, mas vale a pena?”

FAZENDO GÊNERO

Desde o início de sua carreira, Mann mergulhou fundo no cinema de gênero. Seu primeiro longa, Profissão: ladrão, é um thriller sobre um ladrão que pretende abandonar a vida do crime, mas antes resolve fazer um trabalho para a máfia. O eterno clichê do “último trabalho arriscado” que aparece ainda hoje em filmes como Drive. Mann ensaia alguns de seus truques que aperfeiçoaria nos filmes seguintes, mas seu estilo ainda é embrionário. Não é um filme violentamente autoral, no sentido de que pode ser confundido com outros bons policiais da década de 1970 que apresentavam anti-heróis por quem o público torcia (Bullit, O motorista, Operação França…).

Na década de 1980, Mann produziu dois seriados televisivos que também se enquadram no gênero policial: Crime Story e o muito mais conhecido Miami Vice. Este último dominou a cultura pop oitentista a ponto de ditar moda. O figurino dos protagonistas foi imensamente copiado, sinônimo do que na época era elegante e cool entre homens na faixa dos 30 – a Miami Vice é inclusive atribuído o sucesso dos estilistas italianos (especialmente Armani) nos eua. O seriado, que começou com uma Miami ensolarada onde circulavam policiais trajando blazers cintilantes com ombreiras, logo foi ganhando contornos sombrios, e a diversão foi aos poucos manchada pela violência e certo niilismo.

Miami Vice não era, no entanto, um caso isolado. Na música, a cultura oitentista está repleta de bandas que combinavam uma fachada alegre, reluzente até em sua estética néon, com um fundo ameaçador, obscuro. Era assim com New Order, Duran Duran, The Cure, Human League, Soft Cell, omd e uma infinidade de bandas pop com teclados e sintetizadores. O seriado também sintonizou suas antenas neste Zeitgeist, e foi capaz de mostrar uma perseguição de Lamborghini e uma dúzia de tiroteios de forma seca e melancólica. A música, aliás, é outro elemento essencial do seriado. A trilha alterna sucessos pop da época (incluindo várias bandas mencionadas neste parágrafo) e composições de Jan Hammer criadas no sintetizador. A música-tema e “Crockett’s Theme” viraram sucessos por conta própria, e o disco da trilha sonora ficou entre os mais vendidos na época. Reza a lenda que o seriado surgiu em uma reunião com produtores em que duas palavras deram início a tudo: “mtv cops”, “tiras mtv”. Ou seja, uma forma de vender o gênero policial a uma geração mais nova, viciada na sintaxe peculiar dos videoclipes, antenada nas novas bandas que integravam elementos eletrônicos às suas músicas.

É difícil precisar a participação de Michael Mann no seriado, quão forte foi sua marca como produtor, o grau de seu controle. O fato é que a série antecipa um grande número de marcas estilísticas que ele retomaria em sua carreira de diretor – especialmente no filme que surgiria 20 anos mais tarde, inspirado pelo seriado.

Desde o primeiro filme que dirigiu, passando por toda a década de 1980 e 1990 – incluindo seu flerte com o fantástico em A fortaleza infernal (1983), com o suspense em Manhunter (1986), e com o épico em O último dos moicanos (1992) – Michael Mann sempre trabalhou com cenas de ação. Com morte, violência, tiros (ou golpes de machadinha), correria, mocinho e vilão – ainda que essas posições sempre pudessem ser questionadas.

A ação na tela podia ser intensa, mas nunca sobrecarregada, nunca resumida a explosões atrás de explosões, a cenas cheias de cortes relâmpagos, como aquelas em que o editor trata a película como um presunto cru, valorizando cortes muito finos. O estilo de Mann se opõe ao da ação barulhenta e excessiva consagrado por Michael Bay em Bad Boys e Transformers e imitadíssimo por dezenas de seguidores, a que apresenta cenas confusas e difíceis de acompanhar por não desenvolver e estruturar uma geografia clara do campo de batalha. Na rapidez da sucessão de cortes, o espectador se orienta mais pelo desenho de som (ruídos de arranhões e batidas e tiros e explosões) e pelas cores saturadas. O azul e o laranja, cores complementares e opostas no chamado “círculo de cores”, são realçados digitalmente em quase qualquer filme de ação de hoje, em que certos elementos parecem saltar da tela. O desdobramento disso é que quase todos os filmes de ação atuais são idênticos, peças publicitárias de duas horas de duração.

Mann fugiria disso ao realizar os tais filmes de ação para os chamados “espectadores inteligentes”, hipótese que tem seu exemplo máximo em Fogo contra fogo. O filme põe em cena pela primeira vez dois dos atores mais icônicos e respeitados do cinema americano: Robert DeNiro e Al Pacino. Pacino é um policial, DeNiro, ladrão. Polícia e ladrão: nada seria mais óbvio. O que não é óbvio é o roteiro de Mann. No filme de três horas, conhecemos a fundo a vida pessoal dos antagonistas: Pacino vive Vincent Hanna, tira que não consegue nunca ser um homem de família completo, pois é totalmente dedicado ao trabalho; o personagem de DeNiro, por sua vez, é um exímio criminoso que não tem laços com ninguém – não tem amigos, apenas parceiros de crime. Os dois passam o tempo todo isolados e só contracenam em uma antológica cena bem no meio das três horas de filme: encontram-se para um cafezinho. É neste momento que cada um expõe ao outro sua filosofia de vida, e descobrem os pontosem comum. Essa simetria entre os antagonistas é reforçada pela maneira como os dois personagens são igualmente enquadrados na cena.

O personagem de Pacino insiste, teimoso, em ter uma vida normal; o de DeNiro aceitou que “não pode se apegar a nada que não esteja disposto a abandonar em 30 segundos”. E, no entanto, os dois juram que, se um deles aparecer no caminho do outro, haverá sangue. São homens similares em lados opostos de uma guerra. O confronto inevitável ocorre à noite, no aeroporto, no final do filme. A icônica imagem final mostra bandido e polícia de mãos dadas, aceitando o elo entre eles, sob um céu escuro, sem estrelas, iluminado apenas pelas luzes do aeroporto e os da cidade de Los Angeles.

Fogo contra fogo é um filme profissional, radicalmente profissional. Simétrico (também nos enquadramentos) e bem estruturado. As cenas de ação intensas são intercaladas com o demorado desenvolvimento dos personagens. Tudo está no seu lugar. Não há atuações exageradas, mesmo Pacino está estranhamente contido. A violência aparece de maneira realista, sem glamour. No imdb, um bom termômetro da opinião pública, é o filme mais bem cotado do cineasta, com uma nota média de 8.3, acima até de O informante, filme indicado a vários Oscar, também estrelado por Al Pacino.

Os cinéfilos mais dedicados ainda observarão que Fogo contra fogo é um filme que dá continuidade ao uso simbólico de cores feito pelo diretor em Manhunter (1986): o azul representando a segurança, o vermelho indicando o risco. Isso é uma generalização, claro. Em Fogo contra fogo, há em quase todos os planos ao menos um elemento azul: um telefone, uma lasca na pintura da parede. Mas somente quando um dos protagonistas chega em casa e se recolhe na tranquilidade da vida familiar (ou da solidão), ele é banhado por uma luz azul. Durante todo o filme, tanto o personagem de DeNiro como o de Pacino constantemente se afastam ou se isolam no espaço azul. Há uma emblemática cena na qual a única coisa azul na complicada residência do policial Vincent Hanna é a imagem na televisão.

O uso simbólico das cores é uma construção expressionista que se repete pela obra de Michael Mann, mas nunca de forma estanque. Parece que a cada filme Mann desenvolve seu simbolismo, ou trata de confundi-lo, como na divisão radical entre azul e verde em O informante, seu filme seguinte.

O informante é um drama político-jornalístico com Al Pacino e Russel Crowe, que ajudou a cimentar a imagem de um diretor “de bom gosto”. Crowe oferece aquela que pode muito bem ter sido a atuação de sua vida: está mais gordo e velho, e constrói de forma sutil a figura do “homem comum” que, por trás de um permanente estado de timidez e introversão, esconde a possibilidade de perder o controle a qualquer momento. Sua atuação é detalhista, repleta de pequenos tiques, nos olhos, na boca. Uma veia que pulsa no pescoço. O tipo de atuação que alçou Pacino à fama – basta se lembrar da cena do primeiro assassinato perpetrado por seu personagem em O poderoso chefão.

Por vezes, O informante parece ser uma versão atualizada (isso é, mais cínica e menos idealista) de Todos os homens do presidente (1976). É um thriller de investigação jornalística, escândalo corporativo, discussões sobre ética, conduzido de forma tensa, que mantém o suspense intacto pelas 2 horas e 37 minutos de duração. Baseado em uma história real, nesse filme não há muita “ação”, e Mann (que também é um dos roteiristas) não adicionou nele perseguições ou cenas desnecessárias. Pelo contrário, focou no relato do verdadeiro Jeffrey Wigand, peça-chave no escândalo ético da indústria tabagista, e persuadiu o espectador da gravidade do drama desse homem usando a edição, que faz de uma singela troca de faxes um clímax.

Os arroubos visuais de Mann aparecem espalhados pelo filme, em meio à linguagem mais comum do cinema americano. Há o impressionante plano inicial de 20 segundos que assume o ponto de vista do personagem de Al Pacino, que está vendado ao encontrar o líder do Hezbollah. Outro recurso muito recorrente em O informante é o de filmar a ação por trás da cabeça do personagem, que ocupa (e oculta) boa parte da cena, o que dá a sensação de que seguimos de perto Jeffrey Wigand, de que estamos literalmente sobre seus ombros.

Por fim, há o controverso uso de computação gráfica na cena em que, num quarto de hotel, Wigand cogita o suicídio (o que se nota pelas cartas que jazem na cama) depois de perder tudo que lhe é caro – isso é, a família, como em quase todos os filmes de Mann. Em uma das paredes do quarto há uma pintura de um homem que cavalga em direção a um local distante, que parece inalcançável. A imaginação de Wigand faz a pintura se dissolver e se transformar nas filhas, alegres, brincando no pátio. É, ao mesmo tempo, algo que perdeu e que continuará existindo mesmo se ele decidir se matar naquela noite. Essa cena, central no filme, é uma pequena quebra no realismo duro de O informante. Assim como Fogo contra fogo, O informante é regido por uma política de contenção.

Ali (2001), a cinebiografia do pugilista Muhammad Ali, é exatamente isso, uma cinebiografia de um pugilista, que segue à risca tudo que se espera desse tipo de filme tão típico do cinema americano. O que vale destacar aqui é que neste longa Mann começou a experimentar com câmeras digitais, mesclando cenas em 35mm às filmadas digitalmente. O uso simbólico de cores ainda esta ali, e as cenas iniciais apresentam uma sofisticação formal intrigante, alternando dois eixos narrativos: um em que o personagem de Will Smith treina, golpeando um saco de areia, e outro que conta “a história até então”.

Após Ali, algo aconteceu. Um aforismo de Jean Baudrillard sugere que a radicalidade é um privilégio do fim de carreira. Mann estava longe do fim de carreira após tanta aclamação crítica, mas gosto de pensar que, após se ver no topo da lista de Hollywood, ele tenha resolvido mandar as regras para o inferno e se divertir um pouco.

UM COIOTE EM LOS ANGELES

Em Colateral (2004), Mann retoma o tal filme de ação inteligente que o consagrou. Depois de um drama jornalístico sério e uma cinebiografia, mais uma vez o thriller. Olhando com distanciamento, é até possível pensar nos três filmes que se seguem a Ali como uma trilogia: Colateral, Miami Vice e Inimigos públicos. Trilogia policial? Trilogia de cinema digital? O que, afinal, faz deles um trio? Talvez seu elemento dominante, a noite.

Em Colateral, o céu é escuro, sem estrelas, ocasionalmente arroxeado. Como no desfecho de Fogo contra fogo, a única luz é a de Los Angeles. O filme se passa em uma noite só, começando no fim de tarde, quando o taxista interpretado por Jamie Foxx entra em seu veículo. O ruído da oficina mecânica contrasta com o silêncio dentro do carro. A rotina do protagonista é esta: singrar as ruas de Los Angeles em meio à escuridão, sonhando em se tornar dono de uma empresa de limusines, futuro que provavelmente nunca chegará. Los Angeles, a cidade de 17 milhões de habitantes, na qual ninguém se conhece. A rotina é rompida quando o assassino de aluguel interpretado por um Tom Cruise envelhecido [1] decide que o taxista o conduzirá numa noite de matança.

Várias marcas registradas de Mann estão presentes: o azul que banha o clube de jazz sinalizando um momento de pausa e segurança, a filmagem por trás da cabeça dos personagens, os rostos contra o fundo do céu. Mas Colateral é de certo modo uma introdução ao estilo que seria plenamente desenvolvido em Miami Vice: a câmera na mão usada até mesmo em um plano estático. Pois nada na trilogia da noite é estático, tudo é irregular, provisório. O jazz é proeminente em Colateral, e os personagens discutem a valorização do improviso na música, metáfora de como as pessoas precisam se adaptar às situações mais diversas. Colateral não é feito de muitos improvisos – Mann é calculista demais para isso –, mas tem um ar improvisado. As filmagens noturnas são realizadas com pouca luz, e a exposição é aumentada posteriormente, deixando as imagens granuladas, como as de um filme caseiro feito sem iluminação adequada que se tenta resgatar.

Esse estilo destaca dois personagens que se contrapõem aos protagonistas: a cidade de Los Angeles e a noite. Colateral é um road movie que não sai da cidade. E a noite? Só no final temos a sensação de que ela enfim vai terminar. Há uma cena brevíssima em que os quatro personagens – o taxista, o assassino, a noite e a cidade – convergem. O carro freia bruscamente e um coiote passa pela rua, caminhando tranquilo, os olhos ofuscados pelo farol reluzindo. Ele não está nem aí: domina a cidade. Os dois no carro não trocam uma palavra. Não há o que dizer. Tudo pode acontecerem Los Angeles, a cidade onde ninguém se conhece. Tudo pode acontecer na noite.

Nessa cena curta, porém marcante, Michael Mann rompe com o realismo que predominava até então. O onírico penetra o universo fechado, ignora as convenções de gênero do filme de ação, do suspense elegante. Um coiote atravessa a rua. Aparece sem explicação e desaparece sem explicação [2].  Uma maneira de pensar Miami Vice é imaginá-lo como um filme composto de cenas como a do coiote; um filme caótico cujo realismo duro é constantemente interrompido pelo onírico; um filme cuja narrativa segue uma lógica poética. Mas Miami Vice não é um filme independente feito por um casal de artistas da Bósnia, mas um blockbuster que todos apostavam que faturaria centenas de milhões em bilheteria.

OBSESSÃO E OBSESSÕES

Michael Mann é obsessivo. É o que dizem todos os atores que já trabalharam com ele, é o que afirma F.X. Feeney no livro dedicado ao cineasta, uma edição da Taschen em que as imagens são mais importantes do que texto, o que parece muito adequado nesse caso. Consta que, durante a filmagem de Manhunter, Michael Mann passou tanto tempo desenhando a mancha de sangue que circundava um corpo caído no chão que o operador de câmera caiu no sono.

No making off de seus filmes, vemos um cineasta que vaga pelas locações com uma câmera na mão, que vai fotografar uma parede esverdeada para afirmar que deseja capturar exatamente aquela tonalidade de verde. A imagem de Mann segurando uma câmera fotográfica talvez seja essencial para compreender sua obra: ele é, antes de tudo, um fotógrafo que filma. Os planos de seus filmes sempre são meticulosamente enquadrados e não são raros os frames que lidam com focos bem marcados (uma cabeça diante de um cenário desfocado, um braço, uma mão).

São várias as anedotas contadas pelas equipes. Mann vê um carro na rua e decide que precisa daquele carro; não pode ser um carro parecido, não serve o mesmo modelo, o mesmo ano: precisa ser aquele. Toda obsessão tem, no entanto, seu preço. Assistindo às cenas por trás das câmeras de Miami Vice, vemos um diretor mais preocupado com o azulejo de um banheiro que com as atuações dos protagonistas. A sorte de Mann é ter trabalhado com grandes atores, pois, quando dirige alguém inferior a Al Pacino ou Robert DeNiro, o resultado é notavelmente pior. A atuação de Colin Farrell em Miami Vice tende ao constrangedor – é uma performance reminiscente da que teve em O novo mundo, filme de outro cineasta obsessivo, Terence Malick, em que sua função primordial é olhar para o mundo com a tristeza de um cachorro faminto. Jamie Foxx também está muito pior em Miami Vice que em Colateral, em que demonstra apenas uma expressão: a do homem com o cenho franzido.

A obsessão que domina Mann trouxe resultados ainda mais nefastos em relação a Miami Vice. Dois meses após a estreia, o diretor decidiu alterar o corte do filme, produzindo a chamada “unrated director’s cut”, que aparece em algumas versões em blu-ray e streaming. As mudanças são pequenas, mas de grande impacto – negativo, a meu ver. A primeira é que Mann decide começar o longa com uma bem filmada, porém insípida, corrida de lanchas, em vez de jogar o espectador diretamente na ação [3]. A segunda é que, antes do clímax do filme, o tiroteio que decidirá tudo, escuta-se, na versão do diretor, um cover tenebroso de “In the air tonight”, canção de Phil Collins que definiu o seriado. Enquanto a versão dos anos 1980 da música era sombria, lenta e na veia do rock “cerebral” do Genesis, o cover é um metal farofa que aniquila qualquer possibilidade de criação de suspense, e transforma clímax em anticlímax.

IN MEDIA RES

Na primeira cena do filme que vi e até hoje persigo, um corpo dança frente a uma tela luminosa e colorida. Estamos em uma boate e a imersão é total. As luzes ofuscam, a música é alta demais, tudo que se entende é que há corpos em movimento por todos os lados fazendo algo que poderia ser chamado de dança. Os protagonistas estão em uma missão que não conhecemos. Eles não são apresentados ao espectador, apenas estão lá, na festa, junto conosco. Depois é possível compreender que o objetivo deles é desarticular uma rede de prostituição. Uma pancadaria discreta (pois ninguém na festa percebe) e artificial (pois, do nada, Jamie Foxx executa golpes complexos) ocorre, e a impressão é de que logo teremos uma estonteante cena de ação.

Corta para um personagem que ainda não conhecemos e que não está na festa. De uma varanda, ele opera equipamentos tecnológicos. Ele (e nós) é jogado contra a noite. Não é uma noite comum, não é aquela com que estamos acostumados a ver no cinema: ela é púrpura e cheia de nuvens.

O Cahiers du cinéma de julho de 2014 é uma edição especial dedicada à direção de fotografia. Entre as principais matérias, há uma entrevista com Dion Beebe, que fotografou boa parte dos filmes de Michael Mann. O título é mais que adequado: “A noite que irradia” (La nuit rayonne). Beebe discute Colateral, que apresenta “a noite de Los Angeles como personagem principal”, onde “o céu não é mais aquela coisa claustrofóbica que estamos acostumados a ver, mas um espaço imenso e aterrorizante que nos engloba para além dos limites do olhar”. Segundo Beebe, o desafio de Miami Vice, que o Cahiers anuncia como “muito mais vanguardista que Colateral”, foi equilibrar exteriores e interiores, entre a luminosidade fortíssima do mar e do céu e as partes escuras. Um processo totalmente orgânico graças às câmeras em hd, que permitem explorar e inventar soluções criativas durante a filmagem, sem planejamento prévio. [4]

Quando o entrevistador do Cahiers sugere que Miami Vice está muito mais próximo de um ensaio visual do que de uma superprodução, Beebe admite que, ainda que essa seja uma maneira de vê-lo, o filme é sobretudo uma história de amor, é assim que ele pode ser resumido. Enquanto Colateral responde bem ao programa hollywoodiano, Miami Vice é uma viagem visual por um grande número de paisagens e universos diferentes, com uma narrativa mais frouxa.

O que nos traz de volta ao início do filme: a sequência na boate é interrompida por um telefonema – antes mesmo de a missão começar a fazer sentido para o espectador. Esse telefonema arremessa repentinamente os protagonistas em outra drama, como se, numa mudança de canal, eles fossem parar em um episódio diferente do mesmo seriado.

A mulher de Alonzo, um agente que trabalhava para Crockett e Tubbs, foi sequestrada por um grupo neonazista [5]. Os agressores só a libertariam se Alonzo revelasse os segredos da polícia undercover, dos agentes infiltrados. Em pânico, ele aceita. Quando telefona para Sonny e Ricardo, Alonzo está dirigindo em alta velocidade para resgatar sua mulher em casa. Pede perdão por ter revelado os segredos. A dupla de policiais decide abandonar a missão na boate e sai em busca de Alonzo. Conseguem pará-lo no meio da estrada.

Essa nova subtrama, por sua vez, também é interrompida por uma cena de negociação de drogas no porto, cuja ligação com as tramas anteriores é tão repentina que mal se consegue assimilá-la. A cena, que reúne personagens não apresentados, logo desencadeia um tiroteio que ocorre, supomos, por causa da delação de Alonzo. A imagem dos corpos sendo alvejados dentro de um carro é de um realismo brutal e sem cores; a violência não tem glamour e a ação não tem ritmo.

Retornando ao eixo narrativo do encontro entre os policiais e Alonzo, o delator em crise, o filme se dirige a uma sequência fundamental para compreender o que há de tão único em Miami Vice.

Alonzo, desvairado, sai do carro no meio da estrada:

Sonny e Ricardo se aproximam dele:

Alonzo explica melhor a situação. A cidade, no fundo, está completamente desfocada:

Surge esta imagem na tela, com uma paleta de cores totalmente diferente. Dois eixos narrativos concomitantes: um é este, da equipe policial entrando na casa de Alonzo, o outro é o da estrada:

Ricardo telefona para um dos policiais da cena, unindo os dois eixos:

Voltamos a casa onde entrou a equipe de policias. No canto direito do plano, percebe-se as pernas de um corpo no chão. É uma cena sutil que dura pouco. Por meio dessa imagem, o espectador compreende que a mulher de Alonzo morreu:

Ricardo informa Alonzo que ele não precisa mais voltar para casa. Contraplano de Alonzo recebendo a má notícia:

A sequência de imagens abaixo representa uma mudança de ponto de vista: em vez de manter a câmera onisciente, o espectador assume a visão de Alonzo, e acompanha seu olhar. A imagem fica borrada, como se enxergássemos através de olhos cheios d’água. Depois, foca na estrada, representando o seu raciocínio: a ideia impulsiva de se suicidar. Não há diálogos ou música, exceto um ruído abstrato, uma espécie de textura auditiva.

A sequência é cortada por uma imagem brevíssima de Alonzo em movimento:

No contraplano, passa um caminhão:

A brutalidade do suicídio só é percebida por espectadores muito atentos. Com o passar do caminhão, uma curta faixa de sangue é revelada por pouquíssimos frames, no canto direito do plano:

A cena toda durou pouco mais de um minuto. A confusão, nesse ponto, é generalizada: todas as cenas que apareceram no início do filme ficam inconclusas, mal explicadas [6], como se acontecessem simultaneamente, mas em um filme, que não é capaz de dar conta de uma totalidade, revelando-se uma linguagem precária para um mundo em que tudo acontece no mesmo segundo. O único fio amarrado na trama é essa cena com Alonzo, cujo desfecho – o suicídio do personagem – se dá de forma brusca e breve. A cena logo é cortada para outra imagem sem relação com o ocorrido (não registrando, portanto, como a dupla de policiais reagiu ao suicídio). Estamos em território nebuloso, onde a causa parece desconectada do efeito.

CONTROLE E DESCONTROLE (I)

Em meio à má recepção generalizada da imprensa brasileira, o crítico Luiz Carlos Oliveira Jr., sem meias-palavras, definiu Miami Vice como “obra-prima singular, efervescente, ao mesmo tempo brutal e sentimental”. Em sua análise, publicada na revista Contracampo, ele é preciso ao apontar o que torna o filme de Mann tão desnorteante:

“[O cineasta] se entregou a um princípio de desregulação do plano – instabilidade, movimentação errante, composições desequilibradas, fugas do estatuto comum da figuração – e de esfacelamento narrativo. Cortes bruscos transportam o filme de um personagem a outro, de uma situação a outra, de um continente a outro. Uma simples montagem em campo-contracampo, esta antiga e funcional ferramenta de construção dramática no cinema, pode por sua vez ganhar a forma de sutil agressão estrutural e ilustrar a dialética de uma trajetória (com a lancha em movimento, o filme corta de um personagem para o outro sobre um eixo em 180º, criando um conflito de direção na passagem entre os planos)”.

É curioso observar como um diretor tão obcecado por controle quanto Michael Mann resolve fazer um filme tão caótico. Cabe lembrar o que o diretor de fotografia disse sobre o seu trabalho em Miami Vice: a filmagem digital permitiu o improviso, tudo que foge do planejamento antecipado. E o contraste entre planejamento e caos acaba se revelando um dos principais temas não explícitos do filme.

A alternância entre dia e noite é central em Miami Vice. Negociações podem acontecer de dia, assim como corridas de lancha e histórias de amor. Tiroteio e morte, nunca; estes estão guardados para as cenas noturnas. O dia é cristalino e parece servir de demonstração das tvs de alta resolução na vitrine de lojas de eletrônicos; a noite, por sua vez, é tão, tão granulada, que a câmera de Mann parece se esforçar para registrar a cena. É a mesma técnica usada em Colateral, filmar com pouca luz e aumentar posteriormente a exposição, mas aqui, graças ao contraste com as imagens diurnas, ganha um novo significado.

UNDERCOVER

Ainda não falei da trama do filme; ela está lá, embora seja tão esquecível que só consegui contar a alguém o enredo poucos dias depois que o revi. Após o caos narrativo dos primeiros vinte e poucos minutos, o espectador fica sabendo que todas as operações undercover do fbi e de outros grandes grupos policiais foram expostas e escancaradas graças às revelações de Alonzo. Entram em cena a dupla de policiais Crockett-Tubbs, que, por serem meros policiais locais do Miami-Dade, não tiveram suas identidades reveladas. Eles pretendem chegar ao grupo ariano que matou a mulher de Alonzo através de José Yero, um traficante anunciado como “de nível médio”, mas que se revela muito mais poderoso. Eles precisam oferecer a Yero um método de transporte rápido pelo mar, para carregar drogas. O roteiro segue, então, num modo bastante típico do cinema de ação: policiais disfarçados provando que são confiáveis para um criminoso, realizando uma operação com êxito, sempre um passo à frente dos vilões, correndo o risco de serem descobertos, o que previsivelmente acontece no final. Não bastasse isso, o mocinho se apaixona pela bandida – no caso, a personagem de Gong Li, uma “mulher de negócios” que tem uma relação ambígua com um grande chefe do tráfico, o superior de Yero.

Estamos em território do cinema de gênero, e por se tratar de Miami Vice, no da televisão também. Uma quantidade considerável de episódios da série televisiva girava em torno disso: policiais disfarçados ganhando a confiança de criminosos, revelações e por fim os tiroteios. Há também uma reviravolta tão recorrente na série que quase deixa de ser reviravolta: um policial que “se aproxima demais do lado escuro” a ponto de “perder noção de qual lado está”.

Em resumo: a dualidade central da série e do filme é identitária: quem a pessoa é na vida “séria”, “real” (o policial dedicado ao trabalho, sem família, pois os heróis de Mann nunca conseguem manter relações saudáveis e constituir um núcleo familiar), em contraste com o personagem inventado que precisa convencer os criminosos mais desconfiados. A série também fazia questão de exibir os protagonistas sempre com as roupas mais vistosas, os blazers mais modernos, os carros mais velozes e caros (isso não foi enfatizado no filme), mas, com um mínimo de reflexão, nota-se a inverossimilhança disso: Miami é uma cidade litorânea (na série, bastante ironizada como uma “cidade pequena” perto de Nova York) que dificilmente remunerará seus policiais com um salário de ceo de multinacional. Essa celebração da artificialidade, da ostentação, parece ser uma marca do contraste entre o real e o undercover, como se o policial, quando disfarçado, pudesse participar de um jogo de máscaras. O longa-metragem, no entanto, quase não mostra o cotidiano dos policiais, e esse jogo – dialético, sem dúvidas – se dá em outros planos. [7]

IN THE AIR TONIGHT

A maior diferença entre o seriado e o longa é o humor. Uma busca simples no Google Imagens já sinaliza essa distinção: o personagem Sonny Crockett aparece sorrindo na maior parte dos frames da série; já o representado por Colin Farrell, nas poucas vezes em que sorri, tem um daqueles sorrisos tristonhos que viraram a marca do ator. Na série, Crockett mora em uma lancha e tem, como animal de estimação e grande companheiro, um crocodilo chamado Elvis. Elvis é o alívio cômico por excelência; o assunto está pesado, lá aparece Elvis mastigando o barco de um vizinho de marina. O filme, por outro lado, é dominado por gravitas; tudo é sério, os atores interpretam com uma sisudez de quem adapta Shakespeare. Há poucos one-liners, esse recurso de “resposta engraçadinha” que é onipresente no cinema de ação americano, e dificilmente arrancarão uma risada do espectador.

A cena mais conhecida do seriado, considerada por muitos críticos um dos melhores momentos da história da televisão, não é nada cômica e está no episódio piloto de uma hora e meia. É uma sequência na qual a dupla de policiais dirige em alta velocidade pelas ruas. Eles estão indo enfrentar o grande vilão Calderone, o clima é tenso, de expectativa. Começa a tocar “In the air tonight”, de Phil Collins. Quase não há diálogos, e o rosto dos atores denuncia um abatimento, embora seja uma cena, também, de camaradagem masculina (os dois, após brigas e socos, enfim se aliaram para atacar o traficante). O recurso de usar uma música para definir a atmosfera da cena era então raríssimo na tv e a partir dali virou uma marca do programa, que foi em seguida bastante copiada. A sincronia música-imagem é – digo sem medo de virar motivo de piada – de uma beleza assoberbante. A voz de Phil Collins aparece em um sussurro quando Ricardo Tubbs começa a carregar a sua espingarda de cano duplo. Sonny pergunta a ele: “Quanto tempo nós temos?”. Ricardo olha o relógio e responde, sombrio: “Vinte e cinco minutos”. O silêncio volta. Um plano do carro visto de cima, a estrada iluminada pelos faróis. A noite. Sonny para o veículo em frente a um orelhão e telefona para a ex-mulher. É uma cena de quem sente que está condenado, de que não sobreviverá àquela noite. “Aquilo foi real?”, pergunta Sonny. Eles voltam ao carro e dirigem pela escuridão. A música aumenta. É, ao mesmo tempo, uma das cenas que mais representam o kitsch dos anos 1980 e uma bela sequência carregada por uma melancolia opressora [8]. Em Miami Vice, o longa-metragem, essa cena não é apenas uns quatro minutos no meio de um seriado de várias temporadas. Nele essa sensação pavorosa é uma constante. A de que a noite é a realidade e o dia é apenas um alívio ocasional.

CONTROLE E DESCONTROLE (II)

Os diálogos do longa seguem, em parte, o padrão de roteiro fraco de ação, com frases como “seu cérebro na parede vai parecer um quadro de Jackson Pollock”; mas muitos deles têm uma peculiaridade: a precisão das informações. Ao discutir tipos de lancha, velocidade de um jato, ou informar as horas, são oferecidas siglas, jargão tecnológico, enumeração de modelos, números exatos, medidas precisas. A tecnologia está por toda parte, e os policiais parecem sempre equipados com o que há de mais moderno em termos de telecomunicação.

Ao atualizar uma trama dos anos 1980 para os dias de hoje, é preciso levar em conta o surgimento dos celulares e da internet. O filme se esforça em mostrar que tudo está conectado – prova disso é a cena inicial, quando três acontecimentos se dão simultaneamente e o espectador tenta acompanhar todos. Os personagens estão sempre fazendo isso – tentando controlar a situação, estar a par do que se passa em países distantes, percorrendo milhares de quilômetros de avião, carro esportivo, ou com um pen drive, uma filmagem de celular.

“Quanto tempo nós temos?”, pergunta Sonny na cena mais famosa do seriado. “Vinte e cinco minutos”, responde o seu parceiro. Essa cena, essa preocupação obsessiva com o tempo, questão de segundos, pontua toda a narrativa. É necessário usar a tecnologia como forma de controle, do contrário as forças do caos, ou seja, da noite, vencerão. “Probabilidade é como a gravidade”, Crockett afirma, para lembrar que não se negocia com a gravidade. Mas, no filme inteiro, tudo que a dupla de policiais faz é negociar riscos, discutir estatísticas.

A história de amor, que pode ser considerada o verdadeiro centro da trama, é marcada por isso. Mocinho e bandida têm apenas horas furtivas para se encontrar, um amasso no banco de trás de uma limusine, um único dia idílico de amor em um apartamento em Havana. A frase mais repetida do filme é “time is luck”, tempo é sorte. Quando os dois se separam, Sonny comenta: “a sorte acabou”. Quase todas as cenas de amor se passam de dia, [9] e nelas fica clara a maneira como Michael Mann lida com o cinema de gênero: a trilha sonora é digna de uma comédia romântica açucarada, os diálogos são no máximo aceitáveis, mas o que a câmera registra são detalhes, não planos gerais: uma lágrima que escorre tenuamente do olho da personagem, as mãos entrelaçadas, uma mão sobre o ombro… [10] E é durante a noite, no tiroteio final, que a identidade de Sonny é revelada, e a criminosa entende que não poderão ficar juntos. Quando o casal é separado, Sonny entra no carro e a personagem de Gong Li embarca na lancha que a levará a um lugar seguro. O céu está mudando de cor, e a próxima imagem (que encerra o filme) mostra que anoiteceu.

O controle da direção meticulosa de Mann e o descontrole do cinema digital, o controle da tecnologia e o descontrole de tudo aquilo que foge da probabilidade, o controle do dia e o caráter indeterminado da noite. Uma história de amor na qual o amor nunca é declarado, mas se mostra num perpétuo jogo de sedução, sedução que sobrevive no terreno da ambiguidade.

O COLAPSO DAS IDENTIDADES

Antes do tiroteio final, o grupo de policiais discute que chegou a hora de mostrar os distintivos, revelar que são tiras, não criminosos, e aceitar o embate. “Fabricated identities and what’s really up collapses into one frame”, afirma Ricardo Tubbs. Numa tradução literal, “Identidades fabricadas e o que acontece realmente se colapsam em um só quadro”. Ou seja: os dualismos, a tese e a antítese, entrarão em confronto. No original, é utilizada a palavra frame, tão comum no jargão cinematográfico, como se a solução desse jogo dialético ocorresse mesmo nesse plano, o do frame, da imagem, do cinema. “Você está pronto para isso?”, Tubbs pergunta a Crockett. O filme todo caminhou em direção a isso, da mesma maneira como todo filme de ação ruma ao tiroteio final. Mas no caso de Miami Vice a frase ganha contornos metafísicos: você está pronto para o dia fundir-se com a noite, o falso fundir-se com o real, o controle com a ausência de controle?

O tiroteio acontece, e no primeiro disparo a música cessa, a escuridão da noite é iluminada pelas armas de fogo, e a câmera registra não uma batalha tradicional, com causa e efeito perfeitamente interligados, mas o rosto das pessoas que atiram – expressões não de coragem, mas de medo e tristeza.

Os policiais se saem melhor na batalha a tiros. Os bons vencem, os vilões são derrotados, receita de um final feliz. Sonny retira a mulher amada da cena e, assim, salva a vida dela. Mas o casal não poderá ficar junto. É o preço a se pagar. É o momento Casablanca. Cada um vai para um lado, Sonny em seu carro esportivo, ela em uma lancha que ele chamou por celular; meios de transporte moderníssimos afastando pessoas, não aproximando. No outro eixo narrativo, o parceiro Ricardo aguarda a mulher que ama despertar de um coma no hospital. Ela mexe a mão, está viva, tudo vai ficar bem.

***

Na clássica biografia de James Joyce, Richard Ellmann conta em detalhes a grande dificuldade que foi escrever Finnegans Wake, considerado até hoje um dos romances mais herméticos e experimentais já feitos. Após ter revolucionado a linguagem com Ulisses, Joyce queria ir além, queria implodir a língua inglesa. A primeira resposta dos leitores foi desanimadora. Não entendiam aonde Joyce queria chegar com aquilo. O autor irlandês explicou: Ulisses se passa durante o dia, Finnegans Wake, durante a noite. A linguagem da noite não é a mesma do dia, ela é mais confusa, caótica. Não haveria outra maneira de escrever aquele romance.

A imagem final de Miami Vice é, para qualquer padrão, anticlimática. Sonny Crockett acaba de abandonar a mulher por quem se apaixonou. Anoiteceu. O espectador enxerga o hospital onde está o parceiro Ricardo. Sonny está de costas. Ele caminha em direção a um retângulo branco, uma porta banhada de luz. É aí, entre a noite e a luz branca do hospital, que Michael Mann faz um corte brusco, suspendendo a imagem tão carregada de indeterminação, elegendo-a como plano final, condenando um jovem que assistiu ao filme no cinema por acaso em2006 a anos de obsessão, e a tela fica preta e aparece pela primeira vez, em azul néon, o título do filme. Sobem os créditos.

Incluído na antologia Os melhores jovens escritores brasileiros da revista Granta, ANTÔNIO XERXENESKY (1984) é autor de Areia nos dentes (2008), A página assombrada por fantasmas (2011) e F (2014), todos publicados pela Rocco.

Notas:

[1] Pode ser visto como um truque barato do diretor este de escolher um ator galã (Russel Crowe, Tom Cruise) e deixá-lo gordo e grisalho, como se suas atuações melhorassem apenas porque o foco foi desviado de sua aparência.

[2] Em entrevista, Tom Cruise diz que quando leu o roteiro e se deparou com a parte do coiote – uma única frase – se perguntou o que diabos Mann faria com aquilo. Ao ver o resultado final, comenta que há muita poesia na cena, é um momento dotado de certa “qualidade hipnótica”.

[3] Na faixa de comentário em áudio na edição americana do blu-ray, Mann afirma que queria lançar a plateia do cinema “diretamente na ação”, mas que isso não era necessário para quem assiste a um filme em casa.

[4] Curiosamente, a entrevista com Beebe é precedida na edição por uma entrevista com Janusz Kaminski, o premiado diretor de fotografia responsável, entre outros, por A lista de Schindler. Uma das perguntas é: “O que você acha dos filmes de Michael Mann filmados em HD?”, e a sua resposta direta é: “Miami Vice é um filme terrível. É monstruoso. Michael Mann é um grande narrador visual, mas comete erros de vez em quando.”

[5] Em 20 minutos de filme, o espectador foi exposto a três “vilões”: prostituição, drogas e agora neonazistas.

[6] Exceto se o espectador assiste à lamentável edição do diretor, que começa com a corrida de lanchas e deixa um pouco mais clara a ação dos policiais na festa. Não à toa, essa cena mais clara e explicativa ocorre em um dia ensolarado.

[7] Apesar de ter criticado a versão do diretor, devo admitir que o plano que Mann escolheu para abrir essa versão do filme tem sua carga simbólica. Os créditos se dão na escuridão completa, na tela preta; logo o espectador entende que a câmera está debaixo d’água, mas não é capaz de enxergar o que está submerso: não há rastro de luz. Com um movimento vertical, a câmera sobe um pouco além do nível do mar, onde vemos lanchas rapidíssimas disputarem uma corrida, o nome da marca estampado em cores vibrantes no casco branco. Dualidades: o luxo de uma lancha de corrida em uma praia paradisíaca singrando um mar que oculta, abaixo do nível da água, uma escuridão absoluta.

[8] Recomendo, a quem não conhece a cena, que a assista no Youtube.

[9] Os encontros amorosos da subtrama do caso entre Ricardo e uma colega de trabalho também.

[10] Mãos é outra obsessão do cineasta e recebem um destaque desmedido em diversos filmes. Apenas para citar dois casos bastante simbólicos: em Fogo contra fogo, quando policial e bandido reconhecem sua semelhança no grande esquema das coisas, eles se dão as mãos no plano final do longa; em Inimigos públicos, a belíssima cena inicial, na prisão, termina quando o protagonista interpretado por Johnny Depp finalmente aceita que precisará soltar a mão do companheiro baleado, que vinha sendo arrastado pelo carro. É uma cena longa e dolorosa, as mãos ocupam a tela inteira, o plano é cortado por outro que, em novo ângulo, e sob outra luz, mais alaranjada e resignada, foca no momento em que uma mão solta a outra. 

2 respostas para A metafísica de Miami Vice

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