Cultura do déficit de atenção – por Christoph Türcke

Cultura do déficit de atenção
por Christoph Türcke

O filósofo alemão Christoph Türcke

Seres humanos são reincidentes. E mais: é apenas por terem sido reincidentes que se tornaram seres humanos. Por menor que seja o conhecimento da origem da humanidade, uma coisa é certa: a formação dos costumes é parte integral da hominização, cuja origem são os rituais sagrados, que, por sua vez, têm uma raiz comum: o ritual de sacrifício. E sacrificar é repetir. De início era a mais sangrenta e desesperada repetição. Imolavam-se reiteradas vezes sujeitos da própria tribo e ani­mais “preciosos” para amenizar o horror e o pavor das forças da natureza, ou, teologicamente falando, apaziguar poderes superiores. A lógica do sacrifício segue a mesma lógica fisioló­gica da compulsão à repetição. Por meio da repetição constante, o insuportável torna-se aos poucos suportável, o inconcebível, compreensível, o extraordinário, ordinário. O sacrifício realiza algo horroroso que livra do horror. É uma primeira e desajei­tada tentativa de cura de si mesmo. No paleolítico, conside­rando-se a duração da vida de um único homem, essa tenta­tiva não rendeu muito. Mas 20 ou 30 milênios de repetição foram o suficiente para que se desenvolvesse seu efeito tran­quilizante, atenuante, para que se comprovasse que a repeti­ção foi, por excelência, a fundadora da cultura.

Rituais, costumes, gramáticas, leis, instituições são sedimentos da compulsão à repetição – tanto sedimentos de seu efeito quanto de sua diminuição progressiva. Ela é atenuada neles; neles ela se acalma. Ela submergiu na cultura, literalmente. Persiste como um resto inquieto, como um estorvo esporádico, um resíduo patológico de tempos remotos –— num ambiente que é composto de seus sedimentos. A própria compulsão à repetição é horripilante, e seus sedimentos são pre­ciosos. Toda cultura precisa de rituais sublimes, hábitos confiáveis, rotinas diárias. Eles são a base de cada desenvolvimento livre e individual. Até o início dos tempos modernos, repetição era o mesmo que abrandamento e tranquilização. Em seguida, fez-se uma invenção revolucionária: a máquina. Desde que existe homem, existem instrumentos. No entanto, os instru­mentos automáticos, que se movimentam sempre da mesma maneira, por si mesmos, existem desde os tempos modernos. Eles assumem movimentos humanos. E, apesar disso, são muito mais rápidos, precisos e perseverantes que os homens, sem que nunca sejam manipulados por eles, sem que tais homens se igualem a seu movimento padronizado, sem que se identifiquem com eles. A identificação, contudo, destina-se sempre a uma instância supe­rior que possui algo que falta ao sujeito.

A máquina a vapor assumiu processos de movimentação. A máquina de imagem assumiu processos de percepção. Assim como o olho, na retina, faz surgir imagens, a câmera o faz mediante superfícies quimicamente prepara­das. Nessas superfícies, ela capta luz, retendo as imagens assim como elas se configuram. Elas são imaginadas, literalmente, nessa superfície, e, além disso, tornam-se acessíveis aos olhos de qualquer um. Que progresso na história da imaginação! Enquanto as pessoas, na passagem de criança a adulto, pre­cisam percorrer, com muito esforço, das impressões difusas à percepção dis­tinta, da percepção à imaginação, até que aprendam a conservar e modificar imaginado como representação interna e, além disso, compartilhar suas representações somente de modo indireto, por meio de gestos e palavras, a câmera consegue tudo isso de maneira direta e simultânea – graças a um novo e fundamental poder: a faculdade da imaginação técnica. É compreen­sível que a identificação com tal maravilha tenha sido incomparavelmente mais intensa se colocada ao lado da máquina a vapor.

A fantasia dos pioneiros do cinema e de seu público, sobretudo, deu um impulso atrás do outro, por meio da realização da imaginação técnica. Novas formas de percepção e de expressão surgiram, imagens pareciam adquirir uma força imprevista. Alguma coisa escapou, no entanto, aos por­tadores de esperança nos novos meios: o quanto sua própria imaginação ainda era formada por meios e espetáculos tradicionais, de caráter mais contemplativo, como carta, jornal, livro; ou ainda festa popular, concerto, teatro. A partir daí se formava a faculdade de imaginação, que esses pio­neiros levaram consigo ao cinema. E as projeções de filmes foram de início raras: noites festivas ou eventos de fim de semana. Entre um filme e outro, havia muito tempo para se deixar sedimentar o que foi vivido. A pessoa não era impelida a seguir imediatamente para a próxima faixa, o próximo programa de auditório ou o noticiário.

Os espectadores de filme ideais são os anacrônicos: aqueles capazes de ir narrando integralmente o filme visto, capazes de refletir sobre ele, de dis­cuti-lo e até mesmo de resenhá-lo; em suma, pessoas que o acompanham com perseverança e o cercam com comportamentos que aprenderam nos trabalhos manuais e nos jogos de habilidade infantis, na observação e na pintura de imagens, na leitura e na escrita de textos, mas não apenas com o próprio filme, cujo princípio foi claramente visto por Walter Benjamin: a contínua “mudança de lugares e ângulos, que golpeiam intermitentemente o espectador”. “De fato”, diz Benjamin, “a associação de ideias do espectador é interrompida imediatamente com a mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema.”

O efeito de choque se abranda de verdade apenas quando as telas passam a ser cenário de todos os dias, mas a intermitente “mudança de lugares e ângulos” não para de modo nenhum. Ela se tornou onipresente. Além disso, cada corte de imagem atua como um golpe óptico que irradia para o especta­dor um “alto lá”, “preste atenção”, “olhe para cá”, e lhe aplica uma pequena nova injeção de atenção, uma descarga mínima de adrenalina – e, por isso, decompõe a atenção, ao estimulá-la o tempo todo. O choque da imagem atrai magneticamente o olho pela troca abrupta de luzes; ele promete inin­terruptas imagens novas, ainda não vistas; ele se exercita na onipresença do mercado; seu “olhe para cá” propagandeia a próxima cena como um vendedor ambulante anuncia sua mercadoria. E já que a tela pertence tanto ao computador como à televisão, ela não só preenche o tempo livre, mas atra­vessa a vida toda, também durante o tempo de trabalho; o choque imagético e o trabalho coincidem. Os dados, que de início eu acesso, apoderam-se de mim retroativamente, de modo que me obrigam ou a trabalhá-los ou a correr o risco de ser demitido.

Por tudo isso, o choque da imagem se tornou o foco de um regime de atenção global, que embota a percepção justamente por uma contínua exci­tação, um contínuo despertar. Os criadores de programas televisivos não contam mais com um espectador mediano que acompanha longos progra­mas do início ao fim. Eles calculam de antemão que ele mudará de canal à menor queda de tensão percebida, e ficam felizes quando conseguem retê-lo ao menos nos destaques do programa, que são anunciados com chamadas espetaculares. Esse espectador representa o regime de atenção do choque imagético, e dita o modelo até para o leitor de hoje, mesmo o leitor intelec­tual. Cada produto impresso, se quiser ser observado, precisa se comportar de modo semelhante a uma imagem fílmica diante do olho. Nas últimas duas décadas, todos os grandes jornais estão cada vez mais parecidos com as revistas ilustradas. Sem fotos grandes eles não podem mais concorrer. Toda a diagramação supõe que ninguém tem mais concentração e resistência suficientes para ler um texto da primeira à última página, linha por linha.

Tudo isso são sintomas manifestos de déficit de atenção. O chamado transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) é apenas um caso bem grosseiro dele. São crianças que não conseguem se concentrar em nada, nem se demorar em algo, nem construir uma amizade, nem per­sistir em uma atividade coletiva, crianças que não concluem nada que come­çam. Elas são impelidas por uma agitação motora constante, não acham nenhum refúgio, nenhuma válvula de escape, e se transformam em estorvos constantes para escola, família e colegas. Não obstante, há um meio muito eficiente para deixá-las quietas. “Quando crianças que não podem ficar quie­tas, que movem os olhos para a direita e para a esquerda, procurando alguma coisa e evadindo-se, sentam-se diante de um computador, seus olhos tor­nam-se claros e fixos”, escreve o terapeuta infantil Wolfgang Bergmann. Elas se movimentam nos jogos e contatos on-line “com uma segurança de que não dispõem na chamada ‘primeira realidade’, no dia a dia de sua vida”. Com o computador, diz Bergmann, “bastam poucos movimentos da mão para obter um objeto desejado dentro do campo disponível, ou chamar alguém para a troca desta ou daquela fantasia, deste ou daquele contato”. Porém, “tudo é direcionado para sua própria satisfação imediata. Logo que ela tenha chegado ao seu objetivo”, quando objetos ou parceiros não a inte­ressam mais, “com um movimento manual, um clique no teclado, eles se afastam […] como se nunca tivessem estado ali”.

Subentende-se que crianças com danos cerebrais, transtornos psicó­ticos manifestos ou experiências traumáticas comprováveis padecem de déficit de atenção grave, mas uma criança que não consegue se concentrar em nada, depois de um acidente de carro ou de um abuso sexual, deve ser diagnosticada seriamente como TDAH? Nesses casos, a origem do déficit de atenção é óbvia. A designação TDAH, no entanto, não é casual; ela sur­giu quando as causas não eram claramente reconhecíveis, quando era até duvidoso constatar que se tratava de uma doença, quando se enfrentava uma sintomatologia que se propagava rapidamente por todos os estratos sociais, ainda que não de modo uniforme; uma sintomatologia cujo símbolo é a fixação produzida pelas máquinas de imagem. Nesse campo de referên­cia – eu o chamo fornalha de TDAH –, lida-se sobretudo com crianças e jovens cujo déficit de atenção foi o que primeiramente eles mesmos vivenciaram. A atenção que eles não são capazes de dar foi antes retirada deles mesmos. Bebês não sabem o que é um regime de atenção, mas têm antenas ultrafi­nas para condições de atenção. E se toda sua vida infantil passou já cercada pelo cenário da televisão, todos eles têm chance de vivenciar desde cedo, traumaticamente, como a atenção se dispersa entre o círculo de pessoas próximas e esse cenário, como as reivindicações de atenção, que esse cená­rio cobra permanentemente, tornam superficial e irreal a dedicação pres­tada pelas pessoas que cuidam do bebê.

A privação traumática da atenção na primeira infância, que surge desse modo nada espetacular, dificilmente se revela com pesquisa empírica, assim como também não se sabe qual será o efeito na criança de mães que tele­fonam durante a amamentação ou de pais que checam e-mails constante­mente enquanto brincam com seus filhos. Eles não os maltratam e talvez nem se considerem insensíveis. Muitas vezes, crianças com TDAH não têm lesões manifestas nem sofrem de falta de cuidado ou ausência excessiva dos pais – no entanto, eles devem ter sofrido algum tipo de privação vital, caso contrário não haveria agitação motora contínua, uma busca constante por algo que ainda não adotou a forma de um objeto perdido. Só mais tarde, quando os envolvidos coletivamente passam a rodear máquinas de imagem como insetos ao redor da luz, fica evidente de onde vem a agitação. Muito antes de conseguirem perceber máquinas de imagem como objetos, a tela como coisa, eles vivenciaram o poder de seu brilho em absorver a aten­ção: como privação. E é preciso repetir essa privação para ultrapassá-la. Ela abranda o desejo dessas crianças retrocedendo ao ponto em que ela se origi­nou. E, assim, essas crianças procuram tranquilidade nas máquinas, as mes­mas que foram os agitadores cintilantes de sua tenra infância.

“O que eu temo é o que me atrai”, disse o psicólogo da religião Rudolf Otto, contemporâneo de Freud. Não há melhor fórmula para a compulsão à repetição traumática do que essa frase. Só que Otto não sabia disso. Ele não tinha nenhum conhecimento de Freud. Ele apenas esperava, com essa fórmula, descrever o sagrado. Mas a definição foi bem mais longe do que ele supunha. O sagrado é o produto de uma conversão de época. Quem se sente impelido ao que é pavoroso? Criaturas profundamente traumatizadas, que procuram proteção do terrível com aquilo que é terrível, que são pressiona­das e levadas a transformar a repetição em força salvadora. Dessa maneira, as gerações seguintes procuraram dominar o terror da natureza. Nas crianças com TDAH, esse padrão arcaico comemora sua ressurreição em alta tecnolo­gia. “Onde me roubam o cuidado é aonde vou. Onde me deixam inseguro será exatamente onde procurarei apoio.”

É evidente que aquele fenômeno difuso, para o qual o TDAH é mais a designação de um embaraço que um diagnóstico patológico bem deli nea do, não pode ser entendido fora de uma perspectiva teórico-cultural mais abrangente. O TDAH não é só uma doença em um ambiente saudável. Ao contrário: apenas onde já existe uma cultura do déficit de atenção é que existe TDAH. Bilhões de pequenos choques audiovisuais estimulam a aten­ção humana o tempo todo – e por isso a desgastam. Essa é a lei do déficit de atenção, cuja dinâmica permeia toda a nossa cultura. Ainda é possível se defender de seus efeitos, evitá-los, mas em breve isso não será mais possí­vel. Segundo estimativas cautelosas, a cada seis crianças, uma é afetada pelo TDAH; e a tendência é esse número aumentar. O que atualmente se estabe­lece sob a sigla TDAH é somente uma abertura: um anúncio, um prenúncio do que ainda virá – exatamente como na música.

Na verdade, é preciso deslocar o regime de atenção altamente tecnoló­gico para uma perspectiva cultural global, e evidenciar qual corte de época se insere na história da repetição humana. Sendo reincidente, o Homo sapiens pôde desenvolver um singular sistema de processamento de exci­tações. Em inumeráveis surtos de repetição, que exigiram boa parte de sua pré-história, ele mobilizou esforços de condensação, deslocamento e inversão sem precedentes para formar alguma imagem mental dos terro­res traumáticos, para amortecer, restringir, contornar sua imagem difusa a partir de várias outras subsequentes, para sintetizar essas imagens e, final­mente, desenvolver o mundo interior da imaginação. E, um belo dia, veio a maravilha da imaginação técnica e tudo isso passou a acontecer num só golpe, de uma maneira espantosamente simples: pela captura de luz em superfícies quimicamente preparadas.

Mas, com isso, uma nova forma de compulsão à repetição se apoderou da humanidade. Uma perfeita maquinaria audiovisual técnica passou a fun­cionar 24 horas por dia, a repetir ininterruptamente a irradiação de seus impulsos de atenção. Contudo, ela não mais repete aquele tipo de movimen­tação que se sedimentou em rituais e costumes. Ao contrário, ela os des-sedimentou. A excitação traumática, que outrora impulsionou a formação e a repetição de rituais, o desejo de se livrar dessa excitação e a busca pela paz, tudo isso é estranho à compulsão pela repetição técnica. Esta se desen­rola de modo meramente mecânico; sem dor, sem cansaço, sem desejo, sem objetivo. E do imenso poder de seu desapego e autossuficiência não se segue nada menos do que a inversão da lógica da repetição humana. Até os tempos modernos, ela resultou em redução, em sedimentação e no efeito calmante. Agora, a imaginação técnica se desenvolve contra a imaginação humana e vem retrocedendo seu caminho.

A imaginação técnica atrai porque suas imagens são genuínas, sen­suais, apresentáveis, impressões diretas da realidade exterior, que podem ser exteriorizadas exatamente da mesma maneira. Por isso ela envergo­nha a imaginação humana, que sofre por não poder apresentar a palidez de suas imagens. Mas vai ainda mais longe: ela desfaz uma das maiores conquistas da imaginação humana: a diferença entre alucinação e repre­sentação. As imagens mentais só se tornaram profundamente pálidas e abstratas quando se distanciaram da alucinação, quando se purificaram na esfera da representação e deixaram para o pano de fundo sua própria fornalha alucinatória. E aí surgiu esta inversão paradoxal: somente homens com avançada capacidade de abstração e representação poderiam inventar uma imaginação técnica, que agora mostra às representações humanas sua própria palidez, apresentando para elas, por meio de suas imagens fartas, cheias, intrusivas, a seguinte questão: quem vocês pensam que são, hein, caras-pálidas? Que tal se renderem logo de uma vez?

Imagens de filmes, não importa se ficcionais ou documentais, penetram no espectador com intensidade alucinatória. Ele as vê, querendo ou não, através do olho mecânico da câmera, que não distingue percepção e repre­sentação. Não diferenciar percepção de representação: é exatamente o que a alucinação faz. O olho da câmera funciona, de certo modo, em nível psicó­tico. Quem entrega seu olhar à câmera se introduz numa perspectiva óptica exteriorizada, num cenário de sonho tecnicamente preciso um cenário que já foi prontamente sonhado para nós.

O espectador não precisa primeiro, por si próprio, condensar, deslocar e inverter os motivos latentes, e por isso mesmo pode sonhar com facilidade, porque só se deixou do sonho o lado exterior: o conteúdo manifesto do sonho. Não há dúvida de que o filme abriu uma nova dimensão da experiência do mundo com seu tipo especial de similaridade com o sonho. A famosa definição de Paul Klee para suas grandes obras é válida sem restrições: “Arte não retrata o visível, ela torna visível”. Porém, isso tem um preço alto. A imaginação técnica tampouco diferencia, em suas grandes obras, percepção e representação – e por isso mesmo trabalha necessariamente para desfazer essa separação própria à imaginação humana. Ela tem uma tendência psicotizante.

Quem dera o retrocesso à indiferença se restringisse a somente algu­mas horas. Todos precisam de fases de regressão, da relaxante e dis traída queda num estado em que se confundem ludicamente representação e alu­cinação, justamente para estabilizar as forças e enfrentar a realidade, assim como todos precisam do sonho, o que Freud denominou uma vez de “psi­cose inofensiva”. O problema está na distração concentrada: o regime. Nos grandes filmes, ele festeja seus momentos gloriosos. Na superfície do dia a dia, a proximidade da representação à alucinação toma a figura da dor e da miséria. Disso são testemunhas as crianças-ΤDΑΗ. Suas representações difi­cilmente vão além dos apêndices do que elas vivenciam e desejam. Ao se abandonarem nesse aqui e agora, ao se perderem em seu cintilar palpitante, elas se aproximam de um novo modo de sonho diurno. Não é, certamente, aquele sonho diurno contemplativo, no qual representações, como usadas livremente, imergem nas imagens e ganham, por momentos, plasticidade alucinatória; é, isto sim, um cintilar nervoso de sonho e vigília, que não deixa os envolvidos sonharem mais intensamente nem lhes permite chegar a uma conduta desperta mais estruturada. O espaço mental de represen­tação, isto é, o espaço interno de vigília, não ocupa mais um volume digno de menção, tampouco o espaço do sonho. Ele não mais submerge em um back office mental em que os restos diurnos não elaborados pela consciência desperta serão elaborados posteriormente, possibilitando algo de que o sis­tema nervoso humano precisa não menos do que o sono: a retenção mental.

As antigas escolas autoritárias puniam crianças rebeldes com retenção. Elas tinham de ficar mais tempo na escola. Felizmente, hoje isso não acon­tece mais. Mas elas permanecerão sempre sentadas, em qualquer lugar onde houver dever de casa. E isso porque as lições são trabalhadas por meio de repetição, retificação, variação. E quanto menos se assimila o conteúdo nas aulas, mais tempo se fica retido no dever de casa. Que seja frequente não se ter vontade de fazer o dever de casa, é muito natural. Mas uma outra coisa é seu aparelho sensório-motor ser incapaz disso. É tão fatal quanto não poder dormir ou sonhar. Sim, não é exagero dizer: retenção é a mais antiga técnica cultural. O Homo sapiens não chegou à cultura senão por meio do trabalho repetitivo posterior a catástrofes naturais. Uma cultura que não pode mais se reter desiste de si mesma.

Aprender a reter e ter tempo livre para isso é a base de toda formação. Educadores e professores que praticam com muita paciência e calma rit­mos e rituais comuns, que nesse percurso passam o tempo comum com as crianças que lhes são confiadas; que se recusam a adaptar a aula a padrões de entretenimento da televisão, com contínua troca de método; que reduzem o uso de computadores ao mínimo necessário; que ensaiam pequenas peças de teatro com as crianças, apresentam a elas um repertório de versos, rimas, provérbios, poemas, que são decorados, mas com ponderação e entendi­mento; que não se servem permanentemente de planilhas, mas fazem os alunos registrarem caprichosamente o essencial num caderno: eles são membros da resistência de hoje. A cópia de textos e fórmulas, outrora um sinal muito comum das escolas autoritárias, de repente se torna, diante da agitação geral da tela, uma medida de concentração motora, afetiva e men­tal, de exame de consciência, talvez até uma forma de devoção. E quanto mais cedo é praticada a atmosfera dessa devoção profana, tanto menos as aulas corretivas precisam compensar os defeitos de TDAH. Nas palavras de Nicolas Malebranche: “Atenção é uma oração natural”. Tornar as crianças capazes de orar, nesse sentido figurativo, capazes de imergir em alguma coisa, de modo a se esquecer de si mesmas, mas justamente tendo nisso um vislumbre do que seria preencher o tempo: essa é talvez a mais urgente tarefa educacional de nossa época.

Por isso eu proponho uma nova disciplina escolar. Chamo proviso­riamente de “estudo de ritual”. Aos alunos iniciantes serviria, antes de tudo, como uma paciente e criteriosa prática de conduta. Além disso, daria a toda a rotina escolar um eixo ritual, quer dizer, toda a matéria de aula se condensaria em intervalos regulares de pequenos atos. É preciso ensaiar apresentações; ao ensaiar, aprende-se a repetir, aprende-se a se aprofundar em algo. Quem apresenta qualquer coisa aprende a apresen­tar a si mesmo: dar à sua conduta uma estrutura. O eixo ritual permearia toda a matéria da aula também em classes avançadas. No nível avançado, no entanto, as apresentações tenderiam mais à forma da palestra do que da apresentação teatral. Sobretudo, o estudo de ritual emergiria agora como uma disciplina própria, na verdade como a principal disciplina, que abran­geria todo o conteúdo de sociologia, ciências da religião e ética, revelando todas as estruturas sociais, os assuntos religiosos e os motivos éticos a par­tir de suas manifestações rituais, enfim, a partir daquelas práticas vivas, das quais artigos de fé, valores, constituições e instituições são somente coisas abstratas. Uma disciplina de escola que é amplamente mediada pelo ritual e, ao mesmo tempo, não negligencia sua penetração crítica, poderia ser a chave para solucionar conflitos religiosos e multiculturais; poderia superar a separação abstrata da esfera sacra e profana – até ateus conservam certos objetos no plano do sagrado – e poderia constituir uma das colunas de todo o ensino. Ao menos seria uma ótima aliada para a retenção sensata.

Muitos falam de sustentabilidade, mas não há sustentabilidade sem retenção. Retenção tem um apelo miserável, mas, em tempos em que sua própria existência está ameaçada, também tem a chance de se tornar vir­tude, como nunca antes. Somente é preciso ser usada com sensatez. Aí pode ser de fato revolucionária. Como escreveu Benjamin: “Marx afirmou que as revoluções são as locomotivas da história mundial. Mas talvez sejam algo totalmente diferente. Talvez as revoluções sejam a alavanca para o freio de emergência da humanidade, que viaja nesses trens.”

 

CHRISTOPH TURCKE (1949) é professor emérito de filosofia da Hochschule für Grafik und Buchkunst (HGB) de Leipzig, onde lecionou de 1995 a 2014. Considerado um dos maio­res renovadores da teoria crítica, abordando materialismo e teologia, meios de comunica­ção e formas de percepção, história e psicanálise, é autor de Sociedade excitada (Unicamp, 2010) e Filosofia do sonho (UNIJUÍ, 2010). Pelo conjunto da obra, ganhou o prêmio Sigmund Freud de Cultura, promovido pela Deutsche Psychoanalytische Vereinigung (DPV) e pela Deutsche Psychoanalytische Gesellschaft (DPG), em 2009.

Tradução de EDUARDO GUERREIRO B. LOSSO

A saturação de informações está na raiz da obra do francês RAYMOND HAINS (1926-2005), que nos anos 1950 começou a realizar as colagens que o tornariam célebre pela utilização de restos e cartazes afixados nos muros das cidades.

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