A dupla ameaça aos povos indígenas – por Aparecida Vilaça

A dupla ameaça aos povos indígenas

por APARECIDA VILAÇA

Nas aldeias, a covid-19 devasta os corpos e destrói toda uma concepção de mundo, replicando a violência da ação predatória dos invasores

Este artigo é parte da série #IMSquarentena, que reúne ensaios do acervo, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia. 

Parque Indígena do Xingu, MT, c. 1975. Foto de Maureen Bisilliat / Acervo IMS

Em quarentena no Rio de Janeiro, tenho muitas vezes meu pensamento levado à Amazônia e seus habitantes. Em primeiro lugar, pelo medo de que o vírus atinja as aldeias, o que é provável, dado o descaso das autoridades com os indígenas e, no caso do presidente da República, com o vírus em si. Já há seis casos de indígenas contaminados segundo o observatório do Instituto Socioambiental.

Caso o vírus não seja contido por meio de ações que controlem a entrada de não-indígenas nas aldeias, a tragédia terá uma dimensão inimaginável, pois as relações sociais indígenas são impensáveis sem a proximidade física, a partilha de comida e os cuidados diários. Os próprios atos de carinho, concebidos por eles como constituintes de pessoas saudáveis e plenamente humanas, tornaram-se, com o vírus, vetores da doença e da morte.

Quando as epidemias chegaram aos Wari’, trazidas pelos forasteiros no momento dos primeiros contatos, entre 1956 e 1962, os efeitos foram devastadores. Gripe, pneumonia, parasitos intestinais e infecções de diversos tipos dizimaram mais da metade da população do povo indígena do sudoeste amazônico. Eram doenças desconhecidas, para as quais os xamãs não tinham meios de cura.

O som no entorno, contaram-me os que sobreviveram, era de uma tosse constante, acompanhada de gemidos, que se ouviam ao longe. Como agravante, viviam então quase sem comida, pois tinham abandonado suas roças, em fuga dos seringalistas e capangas que há mais de uma década invadiam suas aldeias armados, às vezes com metralhadoras, e matavam quase todos os habitantes. Os que conseguiam fugir precisavam lidar com a dor de deixar seus mortos para serem comidos por urubus. A impossibilidade de um funeral adequado é dilacerante e, vemos hoje, seis décadas depois, uma situação análoga exibida quase diariamente na televisão: caixões empilhados em caminhões e enterrados sem a presença dos parentes. Os Wari’ conhecem bem a dor dos italianos.

Os assassinados por arma de fogo eram associados por eles à caça: os predadores não os enxergavam como humanos – “éramos como queixadas”, costumavam dizer-me. As novas doenças, entretanto, não podiam ser vistas assim, pois não constituíam atos de predação explícita. Sem conhecer ou mesmo conceber a existência de vírus, protozoários e bactérias, pequenos seres vivos ou semivivos com ação própria, os Wari’ não entendiam a causa do enfraquecimento ou das mortes. Referiam-se à “grande doença dos brancos” e tentavam se manter vivos, fugindo para o interior da floresta. Para eles, a doença não deve ser enfrentada, mas evitada; é preciso ir para longe dela. Com isso, tornavam-se inacessíveis às injeções de antibióticos que os próprios portadores das doenças tentavam aplicar-lhes, causando assim o alastramento da epidemia.

No auge do surto, cuidavam de seus doentes enquanto tivessem forças, fazendo-os repousar a cabeça no colo, massageando seu corpo, acariciando seus cabelos e falando com eles todo o tempo. Para os Wari’, o doente só pode se curar por meio desse cuidado, associado aos tratamentos xamânicos ou, atualmente, aos remédios alopáticos. Um doente abandonado, sem atenção, será mais rapidamente levado para o mundo dos mortos, pois, aborrecidos com os vivos por não cuidarem de seus parentes, os mortos chegam para buscá-lo.

Mesmo hoje, após mais de 60 anos de experiência com essas doenças exógenas e de ouvirem à exaustão conselhos de médicos e enfermeiros, especialmente no caso da tuberculose, endêmica na área, não compreendem, ou não suportam, a ideia do “distanciamento social” como profilaxia. A medida seria ineficaz até por conta de seus princípios sociofisiológicos, pois, para os Wari’, os corpos continuam se comunicando mesmo sem contato direto. Como entre diversos outros grupos indígenas, os parentes de um doente, mesmo vivendo longe, obedecem a uma série de restrições alimentares, pois aquilo que comem pode afetar o corpo da pessoa fragilizada.

Em meio à leitura e escuta diária de notícias sobre a pandemia, fui surpreendida por uma conexão que me pareceu totalmente inusitada: a cloroquina, remédio usado há longa data no tratamento da malária vivax, também endêmica na Amazônia, vem agora sendo testada, ainda sem qualquer comprovação clínica, como uma possibilidade no tratamento das infecções causadas pelo vírus. Certamente não há antropólogo, médico ou outro profissional que trabalhe na Amazônia que desconheça o nome desse remédio, seja porque já o utilizaram ou por guardarem-no consigo para o caso de um surto de malária. Ainda que, por sorte ou excesso de cuidados, eu nunca tenha contraído a doença, muitas vezes presenciei meus amigos Wari’ sofrendo em consequência da malária. Meu medo de ser picada era tão grande que só saía do mosquiteiro bem depois do amanhecer, e me abrigava nele novamente ao entardecer, evitando os dois momentos de grande atividade do mosquito transmissor da doença. De resto, passava parte do dia de calças compridas, camiseta e tênis. Por um bom período da minha vida, a malária me assombrou tanto quanto o coronavírus me assombra hoje.

Embora formada em biologia, não tenho contato com a disciplina há mais de 30 anos, de modo que em nada posso contribuir para a discussão sobre o uso do medicamento malárico para o tratamento do coronavírus. Como antropóloga, entretanto, pareceu-me interessante aproveitar as informações amplamente difundidas sobre as atuações de protozoários e vírus como metáforas que nos permitem pensar tipos diferentes de “ação patológica”.

Na malária, o Plasmodium, protozoário introduzido no corpo humano pela saliva da fêmea de um mosquito Anopheles, atua simplesmente invadindo as células humanas – primeiro as do fígado e depois as do sangue – e se reproduzindo dentro delas até destruí-las. Os sintomas e resultados são desordens hepáticas, febre alta e fraqueza, podendo evoluir para o coma e a morte. Para os Wari’, entretanto, a malária tem uma causa visível a olho nu: o mosquito. Pode-se evitá-lo ou esmagá-lo com as mãos. Não se diz que as pessoas devem se afastar umas das outras, apenas que evitem os mosquitos. Nesse sentido, as duas doenças que associo à cloroquina são radicalmente diferentes. O vírus, tão invisível quanto o protozoário, tem nele embutido um princípio antirrelacional, por eleger como transmissor justamente quem não pode ser concebido como tal pelos indígenas: o parente, aquele de quem se deve ficar perto no dia a dia.

Outra diferença significativa entre esses dois tipos de seres invisíveis a olho nu, que é o único olho acessível aos indígenas, está nos modos radicalmente diferentes de ação. Enquanto os protozoários entram nas células para fazerem-nas explodir de tão cheias, os vírus entram para enganá-las, para fingir que são parte delas, e então usar seu código genético para se reproduzir. São ladrões da identidade, tais como falsificadores de documentos, ou hackers, que usam a senha dos usuários e se passam por eles. Lévi-Strauss diz que o vírus, embora não seja um ser vivo propriamente dito, pois não contém a sua própria forma de reprodução, tendo que se valer de seu hospedeiro, é mais evoluído do que formas superiores de vida, pois necessariamente posterior a elas. Nós somos os programadores, eles os hackers.

Saindo do universo biológico-digital e passando ao contexto intercultural, o contraste entre o modo de ação dos vírus e aquele dos agentes patológicos indígenas permite outras associações interessantes. Para os Wari’, as doenças mais comuns são causadas por espíritos animais, que na verdade são seres humanos como eles, embora não possam ser vistos dessa forma, a não ser pelos xamãs, que têm um olhar especial. Esses espíritos estão sempre interessados em tornar os Wari’ parte de sua própria comunidade, e para isso os agridem, flechando ou introduzindo em seus corpos parte de si, como garras, alimentos ou enfeites corporais. A doença é concebida como um processo de transformação em animal, que pode ser interrompida pelo xamã ou então levar à transformação definitiva, quando a vítima vai viver entre os animais. Não se morre, mas se vira outro.

A metáfora da colonização viral serve-nos assim para conceber o seu oposto: não são os vírus – lá os espíritos animais – que se transformam em pessoas ao roubar o seu código genético, a síntese mais pura de sua identidade, mas são as pessoas que se transformam em animais, que são simplesmente outro tipo de humanos. Os agentes da doença se oferecem como possibilidade de existência, inserindo partes de sua identidade – o seu DNA ou RNA, para continuarmos nas metáforas científicas – na vítima. Além disso, trata-se de uma relação ou disputa que, embora se passe no plano corporal, é essencialmente social. Os animais querem gente para si.

Os que invadem as terras indígenas, assim como os vírus que continuam a trazer consigo, fazem-no para reproduzirem-se, usando os substratos locais: a água, a floresta, os minérios. Deixam um rastro de devastação e morte por onde passam. Como dizem alguns dos importantes porta-vozes indígenas da atualidade, como Raoni, Davi Kopenawa e Ailton Krenak, eles destroem o que na verdade é também seu corpo, como fazem os vírus. Cada vez que um corpo é destruído, ou mesmo antes disso, passa-se ao outro, como os portugueses e espanhóis, prosseguindo de um povo para o outro em busca de pau-brasil, ouro, prata ou mesmo de corpos a serem escravizados, o equivalente atual da busca por minérios e madeira. Em algum momento, sabemos, os recursos vão acabar, e a devastação será tão grande quanto aquela deixada pelo vírus em seu corpo hospedeiro. Como disse Davi Kopenawa: “Toda essa destruição não é nossa marca, é a pegada dos brancos, o rastro de vocês na terra”. Somos os vírus comendo o nosso próprio corpo.

 

Aparecida Vilaça (1958) é antropóloga e professora do Museu Nacional da UFRJ. Por mais de 30 anos vem estudando os Wari’, povo indígena que vive em Rondônia. É autora de Comendo como gente, Quem somos nós – Os Wari’ encontram os brancos, Strange enemies: Indigenous Agency and Scenes of Encounters in Amazonia Preying and Praying: Christianity in Indigenous Amazonia os dois últimos inédito no Brasil. Em 2018 lançou o relato autobiográfico Paletó e eu – Memórias de meu pai indígena (Todavia). Dela, a serrote #33 publicou o ensaio “Por que os indígenas são um alvo?”

 

 

 

 

 

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