A galeria vazia – por Bea Espejo

A galeria vazia

por BEA ESPEJO

De Monet ao coronavírus, os museus são um alvo histórico de ataques que, lembra a crítica de arte do jornal El País, botam em questão sua legitimidade e seu sentido

Este artigo faz parte da série #IMSquarentena, que reúne ensaios do acervo, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia

“Work No. 227: The lights going on and off” (2000), instalação do britânico Martin Creed vencedora do Turner Prize

Hoje é um vírus, mas muito antes foram os próprios artistas que esvaziaram o museu. Na verdade, a destruição está inscrita nas origens de uma instituição que nasceu, no Antigo Regime, da pilhagem laica e republicana dos bens da monarquia e da igreja. O conflito vem de longe. Ainda no século 19, não nos esqueçamos, os impressionistas se queixavam dos jurados oficiais dos Salões parisienses. Enquanto Claude Monet bradava “não vão aos museus, sejam como as crianças!”, Eugen Kalkschmidt escrevia, em 1906, O museu do futuro, incentivando a criação de uma União Contra a Visita a Museus para travar uma batalha contra o tédio que lhe causava percorrer de cima a baixo salas repletas de sarcófagos etruscos. “Queremos destruir os museus!”, dizia Marinetti, em 1909, no Manifesto futurista.

Notório inimigo das pinacotecas, Paul Valéry também sentia falta do “bom tempo que fazia lá fora”. Não lhe faltava razão. Foi o que levou Valéry a escrever, em 1927, A conquista da ubiquidade, um texto breve, bastante profético, no qual anunciava a chegada de uma “sociedade para a distribuição de Realidade Sensível a domicílio”, uma empresa em que o fornecimento das imagens então custodiadas pelos museus funcionasse como o abastecimento de água, gás ou eletricidade. Uma rede que prenunciava o serviço de arte em domicílio. Uma ideia utópica que hoje parece uma profecia.

Tristan Tzara também professava essa ideia com o Cabaret Voltaire, que em 1916 abriu as portas em Zurique concebido como um antimuseu. “Há uma tarefa destrutiva por fazer; varrer, limpar”, escreveu ele em 1918. Nesse ano, quando explodiu a gripe espanhola em meio mundo, o Dadaísmo também era um vírus. As mostras em que Duchamp foi curador mais lembravam barracas de feira. Na Exposição Internacional do Surrealismo, realizada em 1938 no salão principal da Galerie des Beaux-Arts de Paris, ele fez tudo o que pôde para que o acesso às obras de arte se transformasse num esforço quase impossível para o visitante. Pendurou 200 sacos de carvão no teto e um braseiro no centro. A verdade é que nem os sacos continham carvão nem o braseiro brasas, mas a pesada presença dos sacos fez com que o público sofresse sob a ameaça de 3 mil quilos de carvão sobre sua cabeça e a possibilidade de que tudo voasse pelos ares.

Exposição “First Papers of Surrealism”, realizada em 1942, em Nova York

Em 1942, retomou essa ideia de “exposição pesadelo” com First Papers of Surrealism, mostra realizada na Whitelaw Reid Mansion de Nova York. Gastou 25 quilômetros de barbante para fazer uma teia de aranha que não se conseguia atravessar. Um exagero que despertou todo tipo de reação entre os artistas incluídos na mostra: Remedios Varo ficou inconsolável, Man Ray se aborreceu por não ter sido convidado. Anos depois, Nova York ficou repleta de irascibles, grupo de artistas dissidentes que em 1950 se insurgiram contra o Metropolitan Museum e cuja história está confinada nas salas da Fundação Juan March de Madri.

Outros artistas optaram, por sua vez, pela negação do museu num sentido oposto. A sala vazia, de Yves Klein, data de 1961. Os anos 1960 marcam o momento em que o ataque ao museu como paradigma deu um grande salto. A crítica institucional deixa aí grandes exemplos de clara oposição ao establishment das instituições culturais: Daniel Buren, Michael Ascher, Lawrence Weiner, Dan Graham, Marcel Broodthaers, Hans Haacke… Na Argentina, Graciela Carnavale propôs, em 1968, um confinamento dentro do Ciclo de Arte Experimental. Num anúncio publicado em jornal, convidava o público para sua exposição no número 22 da galeria comercial Melipan. Quando todos estavam lá dentro, a artista saiu, trancou a porta e foi embora. A única forma de sair dessa exposição, também vazia, foi quebrar a vitrine da galeria.

Em 1970, Emilio Hernández Saavedra cria no Peru uma das obras míticas a partir da ideia do vazio museológico: O museu de arte apagado. Um espaço vazio que, em 2002, Sandra Gamarra retoma como LiMac: um museu que não existe em uma sede física, mas que se apresenta como “real” através das diversas formas pelas quais os museus reais chegam a Lima –  em souvenirs, catálogos e cartões.

Se há um nome-chave na ideia de destruição do museu esse é Chris Burden. Em 1985, o artista montou na Henry Art Gallery a instalação Samson, em que um motor de cem toneladas conectado a uma roleta e a uma viga dupla de madeira extensível pressiona fortemente as paredes da galeria. A cada visitante que passa pela roleta, aumenta a pressão sobre as paredes, até rachá-las. Quanto mais visitantes, mais destruição na obra que remontou em 2004 na galeria nova-iorquina Zwirner & Wirth e em Inhotim.

Instalação “You” (2007), de Urs Fischer, na galeria Gavin Brown’s Enterprise

A demolição de paredes das galerias feita por Urs Fisher na Bienal do Whitney de 2006, intitulada Day for Night, seguia essa linha de levar o museu ao limite. Um ano depois, Fisher escavou o chão da Gavin Brown’s Enterprise e batizou a obra de “You”,  um buraco gigante por 250 mil dólares. Em 2008 houve a Bienal de São Paulo mais singular, quando Ivo Mesquita deixou vazio o terceiro andar do edifício de Oscar Niemeyer, que foi invadido por jovens e teve as paredes grafitadas.

Uma reflexão sobre o possível desaparecimento dos museus não pode ignorar o exame de suas metas e objetivos, de seus limites. A isso a Fundação Antoni Tàpies de Barcelona dedicou, em 1995, uma extensa exposição acompanhada de debates. Lembro um dos curadores, Thomas Keenan, definindo os museus como instituições em declínio e propondo um museu que assuma seu esvaziamento e renasça de sua desconstrução como um “museu de museus”. Aquilo soou como uma fênix da cultura moderna.

Talvez a partir dessa disfuncionalidade possa se entender o casamento de Shristi Mittal e Gulraj Behl, celebrado no Museu de Arte da Catalunha em 2013. Uma disfunção lembrada por Beyoncé e Jay-Z no Louvre e cantada por Rosalía em Fucking Money Man, dando uma piscada para o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, o Macba. Excessos e imperfeições museográficos. As luzes e as sombras. Martin Creed ganhando o Prêmio Turner de 2001.

 

Bea Espejo é crítica de arte, curadora e colaboradora do jornal El País, onde este artigo foi originalmente publicado

Tradução de Luis Carlos Cabral

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