Linhas e trilhos

Também era constrangedor que o serviço social arrancasse os dentes deles. Diziam que não havia verbas pro tratamento. Nas aulas, aquelas gen­givas rosadas ou castanhas, ou cor de fumaça, viravam um alvo fácil. Os que tinham dentes caçoavam dos desdentados. Era muito chato. E os desdenta­dos, quando tinham dentadura, colocavam a dentadura na ponta do lápis, não sei como conseguiam, acho que amarravam, e faziam careta para os que tinham dentes, fingindo que não ligavam.

Mas não era só isso. Havia microfones nas salas levando ao gabinete do diretor. Ele queria saber, era preciso fiscalizar o que era ensinado àquela gentinha. Aqueles meninos só iam crescer pra dar trabalho, inda mais se ficassem espertos. Com muito orgulho, dizia em voz alta que tinha recebido ordens expressas das autoridades. Fiscalizar. Quer saber mais? – a espuma do cuspe crescia no canto da boca como uma flor desabrochando –, o Brasil está, quem foi que disse isso?, hein?, o Brasil está a um passo do abismo.

Sei que aquela situação marcava o ritmo do poema, povoava meus sonhos, seguia o trem, o chocalhar das correntes nas curvas, as sandálias rebentadas e blusas sem botão quando eu saltava na gare, os gritos dos meninos vendedores de amendoim. Manda uma franguinha aqui pro meu balaio, imploravam alguns, antecipando a bolina exigida pelo aperto e pelo balanço dos vagões. As folhas soltas dos meus livros voavam contra as pare­des da estação enquanto o trem sumia atrás do barranco. “Incha, incha”, gri­tavam os homens em coro, se jogando de costas contra as portas nas para­das do percurso. Não podia ser diferente, porque não entra uma pessoa só, entram 100, gente é feito água.

Ela disse que qualquer um podia notar o cansaço deles. Não tinha qualquer ambiguidade. Não era, por exemplo, o meu cansaço por mais cansada que eu estivesse. Era um estado de cansaço, uma condição, como ser criança ou estar doente.

Na parada de Bangu, o calor soprava o céu, que tremia feito um pano. Ele entrou e ficou encostado na porta rebentada. O vento agitava a camisa azul, ele mesmo azul cor de carvão, retinto, opaco, a luz batia e escorria, brilhava nos olhos. O homem da foto. Mas seria o homem da foto? Qualquer repetição faz cismar. Mas a verdade é que se eu não tivesse conservado a imagem na memória, não ficaria assim. Não adianta perguntar pelos motivos. Eu sei do que se trata. Mas se você perguntar do que se trata, não vou saber explicar.

Quando desci em Matadouro ele se aproximou, com os sapatos rangendo na areia grossa, e, contra todas as expectativas, me entregou os documentos. Disse que era para eu ver que se tratava de um trabalhador. Seria verdade? Sentia uma zoeira na cabeça. Pensava no mimeógrafo dentro da carroci­nha, mas aquele homem era outro, não era? Tinha uma pedra pesada no meu peito, talvez fosse uma cilada, eu não podia arriscar. Mas li seu nome, Laudelino Santana. A calma de um nome tão antigo, quem teria escolhido? Li também que era gari, quem sabe um sinal de salvação? Mesmo assim o chão insistia em fugir, o trem a gritar, eu não podia esquecer aqueles gritos, esses permanecem, vão permanecer para sempre, disse Polari. Pra disfarçar, devolvi os papéis. Será que somos parentes? Seu sobrenome é igual ao meu, só que escrito diferente.

Laudelino não ligou. O negócio é o seguinte, disse, gostei muito de você e acho que fui correspondido. Não sei como arranjei coragem, cada vez mais suada, falei tão baixo, tive que repetir. É, você é mesmo muito atraente. Então pronto, ele disse. Então pronto não, tenho que trabalhar, as crianças estão me esperando.

Marcaram um encontro no bar da Central, que hoje é aquele McDonald’s. Laudelino puxou a cadeira para ela sentar e pediu à garçonete: leite para a moça. Para mim, uma Brahma bem gelada.

Teve vergonha de demonstrar a humilhação depois de tanta panfletagem defendendo igualdades, olhou com despeito o copo dele, embaçado pela cerveja dourada e branca, as bolinhas subindo soltas, fugindo da gaiola para o céu azul. Olhei tanto, sem parar, e nem assim ele compreendeu. Sosseguei um pouco, podia ser uma homenagem. Ora, por que homenagem? Tomei leite a tarde toda, isso foi bem chato.

Mudei de assunto: como é que eu faço para descer do trem às 6 horas da tarde na estação da Central? Foi a vez da surpresa dele. Você é professora e não sabe descer do trem? Expliquei que eu ficava diante da porta, o povaréu entrava e eu voltava o caminho todo.

Como acontece nos romances, a um pedido de ajuda o cavalheiro atende: gentilmente disse para eu ficar não em frente, mas encostada rente à porta; que deixasse o povo entrar; quando o vagão estivesse cheio, que segurasse no cinto de um homem para ser rebocada para a gare. Eu disse, ele vai pen­sar que quero roubar. Não, disse Laudelino, ele só pensa em saltar do trem. Sozinha você não vai ter força. Hoje pode segurar no meu cinto.

Isso resolveu em parte, mas não tudo. O tempo passava, as tardes cres­ciam e se dobravam, ficavam imprestáveis, não adiantava ele insistir. Por trás da beleza vinha a desconfiança, o pessoal do trem também olhava com des­prezo, principalmente algumas mulheres mortas de cansaço, viam os livros que ele passou a carregar, ela não queria de jeito nenhum, os livros não eram pesados, com certeza pensavam que ela não passava de uma branca que­rendo faturar um negro. E ele? Querendo também faturar uma branca com lucros calculados? Ele disse, não, tem muitas outras razões, mas pra você entender só num tremendo particular.

Havia um ar de súplica nos copos brancos e amarelos, lado a lado sobre a mesa, no corpo de veludo ardendo no calor. Seriam assim tão lindas as coisas impossíveis? Mas não queria errar, se prevenia com todas as forças contra o perigo do erro. Então se esquivava e dizia, não te conheço. E se ele respondia, você só me conhece me conhecendo, reparava que a tardinha baixava de asas abertas e começava imediatamente a correr para pegar o trem. Os desdentados esperavam, a flor de cuspe desabrochava, o último apito ainda boiava no ar.

Não tenho certeza do momento, os momentos não são claros, mas disse finalmente que não, era preciso acabar com aquela lenga-lenga, e além disso também disse que não queria leite, que preferia as taças cristalinas de água prata (como se houvesse taças). A essa altura o dia já parecia uma montanha de sucata.

Uma última dúvida antes que o vagão derradeiro desaparecesse atrás do barranco: por que será que gari bebe tanto? Ele disse, é o desprezo, o cheiro do lixo, ninguém aguenta, lavando não sai, é preciso esquecer.

É preciso esquecer, repeti, tentando decorar o compasso.

Na relação com o mundo, afirmava o poema, as rimas são sempre inte­riores. Por isso andamos todos perdidos.

Eu acho que ele já morreu.

 

VILMA ARFAS é professora de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas e autora, entre outros livros, de Clarice Lispector com a ponta dos dedos (São Paulo: Companhia das Letras, 2005) e Trouxa frouxa (São Paulo: Companhia das Letras, 2000). Como ficcionista, recebeu o prê­mio Jabuti duas vezes, pela novela Aos trancos e relâmpagos (São Paulo: Scipione, 1988) e pelo livro de contos A terceira perna (São Paulo: Brasiliense, 1992).

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