Viagem ao Tibete

Viagem ao Tibete

FRANCISCO BOSCO

 

A oposição China × Tibete representa, nos termos mais puros, o dilema com que se defronta o mundo contemporâneo, e de cuja resolução depende, pela primeira vez na história, não apenas o destino do mundo como a própria possibilidade de haver ainda um mundo. De um lado, o desenvolvimentismo e o gigantismo populacional situam a China, hoje, numa vanguarda produtiva e tecnológica que, da perspectiva da humanidade, para além de seus interesses nacionais, tem o sentido de um atraso. De outro, o Tibete, com os valores budistas de conser­vação da natureza, aparece, em seu atraso técnico mesmo, como uma espécie de vanguarda.

Em 2009, um ano e meio depois do levante tibetano em Lhasa, em plena semana de aniversário da República Popular da China, viajei pelo Tibete por 12 dias (no meio de uma viagem de 40 dias por várias cidades chinesas). Um antigo teórico da literatura, desses que hoje ninguém mais lê, dizia que cada escritor olha o mundo com os olhos do gênero que pratica. Este texto é portanto um relato de viagem de uma perspectiva ensaística. A pergunta que norteou os seus fragmentos, à medida que, viajando, eu os escrevia, foi a seguinte: “O que propõe essa civilização?”.

A seguir, as respostas de um viajante.

 

BUDISMO EM DETALHE

No monastério de Drigung, entre montes de areia e pedras, bem no meio do estreito caminho, impedindo a passagem, um cachorro dorme.

Os monges desviam, o trabalhador com o carrinho de mão cheio de pe­dras desvia – ninguém expulsa o cachorro.

 

DEVIR-MONTANHA

A arquitetura tibetana secular tradicional é simples e mo­nótona. As casas, nas cidades, são invariavelmente feitas de pedra ou tijolos caiados, têm a mesma fachada, dois andares, telhado plano (pouca chuva), sendo que, no campo, a essas características se acresce um pátio, no fundo da moradia, para os animais. A arquitetura sagrada, dos monastérios, é feita do mesmo material, pedras, e difere da secular, sobre­tudo pela estatura e a localização (geralmente os monastérios se situam em locais afastados ou encravados no alto de mon­tanhas, lugares silenciosos e propícios à meditação).

Em uma e outra percebe-se um sentido de integração ao ambiente. É uma arquitetura com aura (como toda arqui­tetura tradicional). O palácio de Potala, símbolo maior da arquitetura tibetana, ressai da montanha como sua continu­ação natural, embora humana. Ele não domina a montanha ou a cidade abaixo, mas, junto da montanha, paira sobre a cidade, velando-a. Mais radicalmente, pode-se mesmo dizer que o palácio é um devir-montanha: ele se transforma em montanha, e a montanha, em palácio, fazendo surgir esse palácio-montanha que é o Potala. Sua simbiose com a natu­reza é estabelecida tanto no nível material (as pedras de sua construção emergem da pedra da montanha) quanto no formal (a forma trapezoide do Potala é um prolongamento da mesma forma da montanha) e principalmente no espiri­tual: um monastério é sempre uma habitação que aspira a pensar como uma montanha.

Com esses princípios contrasta-se a arquitetura chinesa, sobretudo em Lhasa: grandes prédios, ao pior estilo sovié­tico, compactos, robustos, exprimindo um ideal buro crático e autoritário (a que os vidros opacos conferem uma suple­mentar atmosfera neokafkiana), feitos de materiais e com formas absolutamente alheios à natureza do lugar e às carac­terísticas de sua civilização. Por meio dessa dissolução bru­tal da aura, a arquitetura chinesa presta sua contribuição ao massacre simbólico sistemático do Tibete.

 

SKYBURIAL

Nada me parece ser mais revelador da civilização tibetana que a prática do sky burial.1 Em vez de enterrarem, crema­rem ou embalsamarem seus cadáveres, os tibetanos fazem um ritual em que o corpo do morto, após ser velado e rezado por um grupo de monges, é carregado – pelo amigo mais próximo – até o alto de uma montanha, onde é despe­daçado e servido a abutres.

Essa parte do ritual é conduzida pelos rogyapas (palavra tibetana que significa os quebradores de corpos): um deles tritura, com uma espécie de enorme martelo de pedra, até moer, os ossos do cadáver, mistura esse pó de osso à farinha de cevada (um dos principais alimentos locais) e o serve pri­meiro aos abutres. O outro rogyapa, com um cutelo, corta e fatia a carne humana, que, depois dos ossos moídos, é ser­vida, como prato principal, aos mesmos abutres (se come­rem antes a carne, sou informado, não se interessam pelos ossos). Durante o trabalho dos rogyapas, dezenas de abu­tres esperam pacientemente, pousados diante deles com as enormes asas fechadas arqueando-lhes as costas, que lhes seja servido o repasto. Do lado oposto, um grupo de amigos do morto (os familiares são proibidos de participar da ceri­mônia) assiste ao ritual, sem manifestar pesar.

É impressionante, mesmo visto a distância, o trabalho dos rogyapas, sob o olhar expectante dos imensos abu­tres (cuja envergadura, de asas abertas, pode chegar a dois metros). Os monges não me concederam permissão para ver o ritual, só para passear pela montanha do sky burial, mas não pude resistir e, desrespeitosamente, pendurei-me na grade e estiquei a vista para a cena interdita. O ritual é realizado num espaço cercado por grades, mas o entorno é belíssimo, todo ornado de prayer flags.2 Enquanto des­cia a montanha, deparei com um grupo de uns dez abu­tres, refestelados no chão. Um monge me disse: “Depois de comer, não conseguem voar”.

Os sky burials não são, portanto, propriamente um “enterro celeste”, mas uma espécie de reterro, uma volta do corpo hu­mano não à terra como pó, inanimado, mas à terra como vida, vida dos animais terráqueos. Existem razões práticas para a realização de sky burials no Tibete: a madeira necessária para cremar os corpos é escassa, bem como o solo é, em geral, ou muito duro, ou muito raso para enterrá-los. Mas a razão pri­mordial é mesmo simbólica: trata-se de doar o corpo humano aos animais, retribuindo o alimento de que os humanos, em vida, se serviram. Os ocidentais reciclam lixo e outros mate­riais; os tibetanos reciclam o corpo humano.

 

AMS

Logo que deixei o espaço pressurizado do avião, no corredor do aeroporto rumo à retirada das bagagens, já senti a pres­são, ou melhor, a falta de pressão atmosférica dos mais de 3.700 metros de altitude de Lhasa. Um zumbido no ouvido e a diferença de resposta do corpo ao fazer ainda que peque­nos esforços físicos (como andar rápido ou abaixar-se para levantar uma mala pesada) apresentaram o cartão de visi­tas do topo do mundo. No caminho para o hotel, entretanto, me senti bem e fui conversando animadamente com o guia (na medida em que a realidade oprimida do Tibete, logo se confirmando, permitia um bom estado de ânimo).

Quando cheguei ao hotel, voltou-me o barulho de motor de geladeira dentro da cabeça, acompanhado de um pouco de tontura. Ainda assim, pedi o jantar e comi com razoável apetite. Como, entretanto, aqueles sintomas me incomodavam, resolvi tomar um remédio que trou­xera do Brasil (prescrito por um médico a quem consultei antes de viajar), Diamox, prescrição clássica para os casos de AMS.3 Meia hora depois de ingerir o remédio, passei a ter fortes náuseas e iniciei uma saison en (haut) enfer – 30 horas seguidas de vômitos regulares, insônia, dor de cabeça e tontura. Ou seja, fui agraciado com quase todos os sinto­mas comumente observados nos casos de AMS. (Só depois de tomar fui checar a composição química do Diamox, e, a julgar pelo sufixo do princípio ativo, desconfio que seja o mesmo do Tylenol, que me faz ter náuseas e vomitar. Nunca poderei saber o que teria me acontecido se não tivesse tomado.)

No dia seguinte, virado, sem poder comer, fraco, tonto e prestes a vomitar a qualquer momento, fui a um médico. O doutor, tibetano, apenas olhou para mim, apertou meu estômago (eu assenti com a cabeça), me receitou dois remé­dios, escreveu a posologia na caixa (2/1 e 3/2, isto é, duas vezes por dia um comprimido e três vezes por dia dois com­primidos, respectivamente) e me despachou. Em algumas horas eu estava bem.

Daí em diante, ao longo de toda a viagem, permaneceu a dificuldade de fazer esforço físico (como subir as esca­das íngremes de monastérios) e retornavam outros sinto­mas –- como insônia e zumbido no ouvido –- quando dor­mia em altitudes bem maiores que as de Lhasa (cheguei a subir mais de 5.300 metros, e dormir a cinco mil. Para dar uma referência, o acampamento de base para escalar o monte Everest é só um pouco mais alto, a 5.500 metros, do lado tibetano).

 

DOIS PARADIGMAS

A cozinha tibetana pareceu-me simples e limitada (como disse um viajante, “ela tem mais a ver com sobrevivência que com prazer”), mas, talvez por isso mesmo, menos estra­nhável. A chinesa, por sua vez, é rica, variada, complexa, divina em lugares mais sofisticados (que não sei se existem no Tibete) –— porém, para mim, quase intragável nos “restau­rantes” de beira de estrada onde muitas vezes fui parar (tor­cendo para que houvesse um restaurante tibetano, em vão, já que os vilarejos são dominados por chineses).

Do que provei da cozinha tibetana tradicional, a carne de iaque é deliciosa, os legumes (só ligeiramente cozidos, por isso quentinhos e crocantes) idem, a manteiga e o iogurte de iaque são também excelentes. O famigerado chá de man­teiga de iaque não me desceu tão mal quanto alardeava sua fama. Já a onipresente barley flour,4 quando misturada ao leite, como eles fazem, não desceu de jeito nenhum, mas quando sólida, roasted, tem um gosto bom de milho seco.

Da cozinha chinesa no Tibete, os momos fritos (espé­cie de pastéis recheados de legumes) me aprazem, mas os cozidos não. Na China, o paradigma dominante da comida me pareceu ser o do úmido: quase tudo é steamed, cozido no vapor, ou stewed, cozido na água, sendo que a comida tem um aspecto molhado, e em muitos pratos os sólidos vêm banhados num caldo ralo. Outro paradigma, mais que dominante, absoluto, é o do quente. Toma-se chá a todo momento, durante as refeições e fora delas. Se, para acompanhar uma refeição, se pede uma Coca-Cola, ela vem morna, e o chá não deixa de ser servido. Diferentemente de nós, para quem a bebida tem um sentido rítmico-contrastivo (pausas do líquido ao sólido e do frio ao quente) que esca­lona a refeição e permite ao paladar reiniciar-se periodica­mente, para eles o chá parece ter função apenas digestiva durante a refeição. Logo, o paradigma do quente é funcio­nal-fisiológico, não tem relação, creio, com a temperatura (na China pode fazer muito calor).

 

PRAYER FLAGS

As prayer flags são o instrumento mais visível de resistên­cia simbólica do povo tibetano. Elas estão em toda parte. Sinalizam locais sagrados, como os sky burials, enfeitam montanhas, atuam como marcos nas passagens mais altas. Os tibetanos acreditam que o vento espalhará os mantras, as orações e os símbolos inscritos nas bandeirolas, levando sorte e sabedoria a todos.

Elas foram, para mim, um objeto amoroso. Primeiro por­que ocupam o espaço tibetano como uma mistura de insta­lação e land art, transfigurando montanhas, embelezando e alegrando o espaço com sua delicadeza e suave alegria. Depois, e principalmente, por sua capacidade de carnava­lização, por meio da qual se trava a luta possível contra a presença chinesa: nos postes de eletricidade, nos monu­mentos chineses, as prayer flags se alastram como trepadei­ras simbólicas, cobrindo o poder material com seu manto espiritual rizomático.

 

O GRAU ZERO DO FALO

A história tibetana é longa e complexa, tendo o país chegado a conquistar e dominar territórios adjacentes, até, séculos depois, sucumbir à invasão da China maoista (o Exército de Libertação Popular conquistou o Tibete em 1950). O Tibete independente, antes da queda, estava longe de ser uma civilização perfeita e livre de tensões político-religiosas e sociais: segundo historiadores, o Estado tibetano era uma teocracia, as diversas linhagens budistas disputavam o poder entre si, enquanto procuravam impedir a moder­nização do país, temendo que pudesse custar o controle secular do Estado.

Hoje, entretanto, sob as armas do exército chinês, opri­midos, vigiados, humilhados, cerceados, e sob a liderança humílima e manifestamente democrática do Dalai-Lama exilado, os tibetanos se apresentam como uma civiliza­ção do grau zero do falo. Por todo o Tibete, vemos essa gente apenas se prostrar na entrada e dentro dos templos, girar suas prayer wheels,5 cultivar o campo em pequenas propriedades, vender objetos em barracas ou lojas quase sempre modestas, passar a vida orando e estudando em monastérios (sendo esta última opção cada vez mais difícil, pois os chineses limitaram drasticamente a quantidade de monges nos monastérios).

Os chineses, ao contrário, tornaram-se, a partir da Revolução (e impul­sionados pela abertura econômica sob Deng Xiaoping, no final dos anos 1970), a civilização do grau máximo do falo: em Lhasa, os civis chineses falam alto, disparam a buzina do carro, dispõem das melhores lojas e res­taurantes, enquanto o exército marcha dando gritos intimidadores pelas ruas, sempre portando armas enormes com o dedo no gatilho. Por toda a China que conheci, ao longo de um mês e cinco cidades (fora aquelas no Tibete), o objeto mais recorrente, onipresente mesmo, foi o guindaste, sím­bolo ostensivo do falo.

A cidade fálica por excelência é Xangai. Seu símbolo maior, o skyline do Pudong, é um monumento ao anacronismo: os imensos arranha-céus não se dão conta de que o futurismo, hoje, é ideologicamente um atraso. A ele se opõe –— passivamente, ao modo budista – a civilização tibetana, fundamen­tada na conservação da natureza, à qual o homem se alia, e não submete.

 

BUDISMO EM DETALHE II

As botas tibetanas tradicionais têm o bico voltado para cima. “Para quê?” “Para matar menos besouros.”

 

AS PASSAGENS

O turismo no Tibete é extremamente controlado. Só se pode viajar pelo país acompanhado de guias registrados pelo governo chinês (embora eu saiba que algumas pessoas consigam burlar as proibições e circulem pelo Tibete por conta própria). As visitas aos principais monastérios são autori­zadas por postos burocráticos chineses, com dia e hora marcados. Mesmo para andar pela cidade de Lhasa é preciso estar acompanhado de um guia, do contrário a pessoa fica sujeita a revistas do exército chinês (sabe-se lá com que consequências).

O resultado é que a estrutura da viagem se petrifica em roteiros previsí­veis, em que longas viagens de carro conduzem a pontos turísticos naturais ou a mosteiros remotos. Para mim, entretanto, os mosteiros, com algumas exceções – como o Potala e o Sakya –, são todos parecidos uns com os outros, da arquitetura à iconografia. E não tenho grande interesse pela história e a sucessão das diversas linhagens, nem pelos diferentes budas e entidades.

Assim, nos primeiros dias de viagem, os melhores momentos para mim eram as passagens: pontos cruciais da geografia –— o topo de uma montanha, a dobra de uma cordilheira – de onde se descortinavam paisagens deslum­brantes e eu podia descer do carro e vagar pelas montanhas.

 

A CIDADE E O MONUMENTO

Um aspecto que me incomodara na viagem à Índia, alguns anos antes de conhecer o Tibete, fora a defasagem entre as cidades e os monumentos que elas continham. As cidades que conheci –— à exceção de Varanasi, por si só um monumento vivo – eram inva­riavelmente feias, pobres, sujas, decadentes, enquanto os monu­mentos ostentavam o esplendor de uma era passada.

No Tibete, coloca-se uma contradição análoga, porém con­tingencial: por causa do controle chinês, eu não podia passear só e livre pelas belas e aprazíveis áreas rurais, tendo que atravessá­-las sempre dentro de um carro a caminho de uma pequena cidade onde visitaria um antigo mosteiro.

As cidades tibetanas são todas feias, iguais, chinesas. Os cam­pos são lindos, multiformes, tibetanos – mas inacessíveis, desti­nados a ser apenas atravessados, de passagem. O grande recalque da viagem é a relação direta com o Tibete, com o que nele há de vivo. O circuito oficial interdita os interstícios, determina onde se deve ficar, por onde passar e o que ver; é censura à moda antiga, a parte totalitária, política, da economia dinâmica da China.

 

INCIDENTE

Barthes, em sua viagem pela China nos últimos anos da Revolu­ção Cultural, em 1974, queixava-se de que tudo era controlado demais –— os lugares visitados, os mesmos discursos oficiais dos guias etc. –, não dando brecha para o acaso de um incidente, isto é, de um acontecimento qualquer fora do previsto.

Em minha viagem, também controlada pela mão de ferro chi­nesa no Tibete, só aconteceu um incidente nos últimos dias, provo­cando uma mudança feliz no curso das experiências. Em Nam-tso (literalmente “lago do céu”, por ser o lago mais alto do mundo, a 4.900 metros), a temperatura caiu bruscamente para cinco graus negativos, desabou uma nevasca intensa, e eu, que estava abrigado numa espécie de trailer, tive que deixar o lugar às pressas. Fui pro­curar refúgio no monastério de Drigung, no alto de uma montanha, debruçado sobre um vale serpenteante. Ali, finalmente, tive liber­dade. Dormi no monastério, assisti às orações dos monges, tomei chá de manteiga de iaque com um deles, passeei pela montanha e testemunhei um sky burial. No dia seguinte, fui a um convento próximo, num lugar ainda mais bonito, encalacrado numa espécie de beco montanhoso de cujo solo jorram hot springs,6 onde tomei banho com tibetanos ancestrais. Enfim, o Tibete sem mediações.

 

LUTA SIMBÓLICA

No topo de cada casa tibetana: prayer flags.

No topo de cada casa chinesa: a bandeira da China.

(Entretanto: as prayer flags não são bandeiras de um país. Elas não representam uma mentalidade naciona­lista, mas universalista – e num sentido não cultural, mas, pode-se dizer, ontológico: o vento sopra a sorte por igual a todo ser.)

 

PRA INGLÊS VER

Nos monastérios, tinha pouco interesse e esforçada paciên­cia para ouvir as explicações do guia sobre as diferen­tes linhagens do budismo, os sucessivos lamas, as datas de construção e reconstrução dos prédios, o nome das entidades, dos protetores e o significado da iconogra­fia budista. Tédio acentuado pela apatia da vida monás­tica, isto é, por um esvaziamento de suas atividades em consequência da política de controle chinesa, que deter­mina desde o ingresso de novos monges até as regras de escolha (ou descoberta, para os tibetanos) de lamas reen­carnados. Na grande maioria dos monastérios, poucos monges, nenhuma discussão nas assembly halls,? nenhum canto, nenhuma oração. Ainda pior, a cena deprimente no monastério de Sera: o debate dos monges, caracterizado por seu gestual de aparência teatral, transformado em atra­ção turística – indicado como highlight pelo de resto exce­lente guia Lonely Planet –, é encenado, como uma farsa, pelos monges, que pareciam conscientes e deleitados de sua condição de “budismo para turista”.

(De resto, meu tédio também se devia a uma recusa, tipi­camente barthesiana, a olhar o que é estabelecido a priori como olhável, regardable. Paixão, ao contrário, por consti­tuir, pelo olhar, o objeto em princípio não olhável.)

 

LINGUAGEM E VAZIO

Desde o início, as mais belas e impressionantes paisagens: lagos azul-turquesa, cristalinos rios coleantes, montanhas arrombando o céu, alvíssima neve etc. etc. E, no entanto, ao fim de alguns dias, tédio insuportável: a natureza não é um signo. Como instaurar uma relação erótica com esse lugar?

Como se pode fundar uma escrita –— o significante, para andar, precisa de vazios – no seio da plenitude?

A natureza não é um signo. Pode-se apenas mostrá-la, descrevê-la, mas não desdobrá-la, adensá-la, comentá-la. A natureza é tautológica, referencial e plena. Reduz a linguagem a interjeições, topônimos – e finalmente ao silên­cio. Vem-me então à mente o poema célebre de Goethe “Canto noturno do andarilho” [“Wanderers Nachtlied”] (“Sobre todos os cumes/ Quietude…”). Em face da perfeita paisagem (toda paisagem é perfeita), penso: isso aqui é coisa para poetas. Ensaístas escrevem sobre o que está latente; só poetas podem escrever sobre o ser em sua plenitude. Só poetas podem escrever o ser. A escrita ensaística depende da existência de uma realidade fraturada em dois níveis: um plano visível, outro oculto, cujo sentido deve ser ilumi­nado pela linguagem. Mas a natureza tem uma única dimensão, plena, sem falhas, a um tempo translúcida e, por isso mesmo, opaca à minha escrita. Minha matéria são os homens e suas relações. Mas bastava, para a felicidade do escritor que sou, uma única prayer flag pendurada na porta de uma casi­nha tibetana para mobilizar na minha mente as décadas seguidas de domi­nação chinesa e a resistência simbólica. Então à natureza se sobrepõe toda uma realidade a decifrar. A escrita começa quando acaba a natureza.

 

OUTRO INCIDENTE

Tendo acordado tarde, peguei o café da manhã já no final. Enquanto me sirvo, os últimos hóspedes vão indo embora. Como calmamente. As tibeta­nas que trabalham no restaurante põem-se a arrumar o espaço, recolhendo a comida, limpando as mesas, empilhando cadeiras. Suavemente, come­çam a cantar enquanto trabalham. Saboreio o chá. A música transfigura o trabalho em ludismo. Ouço as vozes delicadas enquanto se dissolve uma camada que me separa da vida do outro.

 

TURISMO

O que não é turismo, na viagem, é o que dá errado. Mudança súbita de clima em Nam-tso, quartos precários, frio cortante, espeluncas chinesas de beira de estrada, comida nojenta, banheiros sem vaso, onde se tem que cagar acocorado, fossas fétidas, sem esgoto, infestadas de moscas, falta de água quente, dias seguidos sem tomar banho, vulnerabilidade e angústia de ser o único estrangeiro em meio a centenas de chineses, alguns deles xenófobos e autoritários.

Superioridade epistemológica do ruim, do errado, do desconforto: isso é de verdade, isso é assim mesmo, isso não foi feito artificialmente para parecer o que quer que seja.

 

FORMAL X INFORMAL

No dia 1o de outubro, aniversário de 60 anos da fundação da República Popular da China, entrei novamente em Lhasa com alguma apreensão, depois de dias viajando pelo interior, tendo passado por sucessivos check­points. Chegando ao hotel, imediatamente liguei a Tv, em busca de ima­gens da aguardada parada oficial. O que mais me chamou a atenção nas imagens foi a obsessão formalizante: tudo é enfileirado, alinhado, disposto em simetrias, exato até o mínimo detalhe. É claro que todo desfile implica simetria, mas tamanha obsessão (a capa do China Daily era a foto de um oficial medindo com olhar agudo a altura dos comandados, para alinhá­-los) remete inevitavelmente à mentalidade totalitária da China, a unifor­midade formal revelando a uniformização subjetiva e ideológica.

Tão inevitável quanto pensar isso é lembrar que o desfile mais carac­terístico da civilização brasileira é o do Carnaval (o 7 de Setembro não interessa nem a nós mesmos), cuja formalização crescente é objeto de amplo repúdio. Em outras palavras, em oposição simétrica à China, nos esforçamos para ser o mais informais possível. O ganho é óbvio – e o pre­juízo também.

 

CROSTAS

O clima tibetano é, em geral, muito seco. Em alguns lugares, eu acordava várias vezes no meio da madrugada porque não conseguia produzir saliva e a garganta secava completamente.

O muco do nariz, ao longo da noite, petrificava-se, formando grandes crostas nas paredes das narinas, dificultando a respiração. Pela manhã, prazer inenarrável de assoar o nariz com violência e ejetar placas de muco envoltas em sangue, liberando súbita e completamente a respiração. (Prazer suplementar de contemplar a excreção, quanto maior e mais san­grenta, melhor.)

 

SEM PAU

Durante os 12 dias no Tibete, não tive uma ereção sequer, nem um sonho erótico, nada. A tristeza pela cultura sitiada, o cansaço físico, a pobreza dos tibetanos, a falta de beleza nas pessoas (não me lembro de ter achado nenhum homem ou mulher belos, no sentido de atraente), as roupas absolutamente deserotizadas dos tibetanos, meus lábios crestados, quase pretos de tão secos, e ainda minha barba grande e espessa, cobrindo o lábio superior – tudo isso fez que minha experiência no Tibete fosse asse­xualizada, meu pau tendo sido para mim, nesse tempo, algo como o dedo do meio do pé.

 

TÉDIO E ANGÚSTIA

A estação de trem de Lhasa é uma estilização moderna do Potala Palace; é a única construção chinesa de que gostei em todo o Tibete. O trem Lhasa–Chengdu levaria 45 horas. Mal entrei na estação, comecei a me sentir angustiado. Como sempre, dezenas de policiais, revistas, olhares opressivos dos funcionários (na China, todo funcionário público parece ser policial). Na sala de embarque, em meio a centenas de chineses (pobres, na grande maioria), todos olhavam para mim, o único estrangeiro. A angústia aumen­tou. Mesmo dentro da cabine do trem, tensão permanente: minha cabine era invadida no meio da madrugada por chineses querendo dormir lá, que eu tinha que afugentar com gritos e gestos veementes (no fundo com medo, pois não sentia meu direito assegurado ali).

Quando estive na Índia não senti angústia. A Índia agride fisicamente, maltrata simultaneamente todos os sentidos: sol chapado na cabeça, misé­ria e sujeira onipresentes, mau cheiro etc. O Tibete, propriamente, também não me angustiou. O Tibete não agride: até o desconforto que ele coloca é passivo. E esse desconforto é sempre amenizado por alguma delicadeza: em Nam-tso, sob cinco graus negativos, delicioso iogurte de iaque à beira de uma chaleira quente.

Mas bastava ter um contato mais próximo com a China que já ficava angustiado. A China, no Tibete, agride moralmente. Para mim, não há nada pior que o totalitarismo, o autoritarismo, a opressão arbitrária. Por mais admirável que seja seu crescimento econômico, que tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza, nada justifica a imposição, à força, da cul­tura chinesa sobre a tibetana. Como disse o Dalai-Lama: “Tenho sempre declarado que, em última instância, só ao povo tibetano cabe dispor sobre o próprio futuro, e o do Tibete”.

 

 

FRANCISCO BOSCO (1976) é ensaísta, autor de E livre seja este infortúnio (2010), Banalogias (2007), Dorival Caymmi (2006) e Da amizade (2003).

 

 

1. “Enterro celeste”. As expressões que designam práticas e objetos tibetanos virão, em geral, neste texto, em inglês, por ser essa a língua utilizada lá para descrevê-los aos turistas.

2. Literalmente, “bandeirolas de oração”.

3. Acute mountain sickness, ou altitude sickness: “doença aguda das montanhas” ou “mal da altitude”; nome dado aos sintomas causados pela altitude.

4. “Farinha de cevada”; alimento tibetano tradicional.

5. “Rodas de oração”; pode ser manual ou fixa (neste último caso, fica na entrada dos mosteiros); girar a prayer wheel tem valor de oração para os tibetanos.

6. “Fontes quentes”.

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