L de livro

L de LIVRO

por WALTERCIO CALDAS

 

Meu primeiro livro está perdido na memória ou talvez nunca tenha existido. Quando me dei conta de sua exis­tência, eles já eram muitos na estante. Com o tempo, pude perceber que esse fato era normal em objetos cujas multi­plicação e diversidade fazem parte de sua natureza, uma natureza paradoxalmente precedida de autores.

Para nos certificarmos de que os livros são exatamente aquilo que conhecemos, não necessitamos de argumen­tos: uma simples leitura nos convence de seu princípio ativo, de seu funcionamento. Mas é quase certo que os livros também nos leem. Esses objetos de papel não são apenas estruturas para textos e imagens, mas partes de um espantoso mecanismo, e nenhuma máquina é mais complexa que uma biblio­teca. Certos aspectos nos fazem acreditar que livros são objetos da família dos espe­lhos e dos relógios, que se multiplicam por refração e, sendo maiores por dentro que por fora, têm ritmo, sequência, tração de leitura em desdobramentos variados. Sendo objetos circulares, criam ambientes propícios para a visitação e resistem, ou res­pondem, às atividades físicas e imaginárias do leitor. Sua presença constante na vida de todos nós comprova a tese feliz, e nada absurda, de que podem até mesmo enfren­tar à altura tudo que desconhecemos.

Esse caminho impresso começa por onde quisermos; não há portas nesse ambiente onde tudo é espaço; páginas não são imposi­tivas, apenas numeradas; e no uso distraído dos livros não percebemos que eles também falam sua própria língua. Significativo é o fato de que, na leitura, estamos habituados a um par de páginas, e isso é um exercício nos livros com ilustrações, pois compara­mos sempre as estampas entre si. A uma distância aproximada de30 a40 centíme­tros, os livros nos propiciam, pelo formato e o tamanho das folhas, um certo grau de intimidade que justifica o conforto na lei­tura. A união entre as páginas – o vértice da encadernação — nos faz conservar o objeto nas mãos, mantendo-o tensionado… e fun­cionando. Essas observações não teriam importância se fossem apenas circunstan­ciais, mas esse objeto, já disse, é um meca­nismo. Quem faz um livro inventa um lugar impresso, e é por ali que segue.

A primeira lembrança que tenho desse encontro veio dos livros infantis — espe­cialmente de alguns nos quais uma lacuna entre o texto e as imagens se apresentava de forma intrigante. Dou exemplo: uma casa desenhada na floresta ilustra um conto de fadas, mas a legenda desorienta: “Algo inusitado acontecia ali”. Basta a sugestão do texto para que a aparente singeleza da imagem dispare a imaginação do leitor. A partir desse flagrante, a história não é mais a mesma, passa a ampliar seus limites narrativos. Essa nova circunstância criada entre a imagem e seu texto parece levar a um mundo existente apenas nos livros. É lamentável que descrições literais de juízos ligeiros, hoje tão comuns numa lite­ratura de resultados, pareçam estar longe desses espantos legíveis.

Quando tive a oportunidade de projetar meu primeiro catálogo, vi que as esculturas da mostra, todas tridimensionais, haviam sofrido uma alteração radical quando impressas, “traduzidas” que foram para figu­ras planas, sem lados e sem volume. Nessa transfiguração, haviam perdido a dimensão original e estavam reduzidas à sua notícia, a uma simples fotografia de sua aparência.

Essa divergência entre um objeto e sua representação chamou minha atenção para um fato surpreendente: havia um “estado de imagem” em todas as coisas, e isso me lembrou de imediato o intervalo significativo mencionado anteriormente entre o desenho da casa e a legenda. Tive a confirmação de que as versões impressas determinavam novos e vários aspectos nos objetos e criavam, na verdade, uma lingua­gem complexa, uma gramática visual que, em vez de mostrar as coisas como são, dava uma noção alterada delas. Concluí que essa redução dos objetos a seu “estado de ima­gem” havia determinado o caráter de mui­tas das minhas experiências anteriores com livros. Agora, não só as figuras mas também os textos me pareciam suspeitos em suas pretensões descritivas, e o realismo da lín­gua não passava de ficção. A poesia já havia me alertado para o fato, mas, com a dúvida instalada, passei a considerar tudo o que via, ou lia, de uma nova maneira. A partir desse momento, o idioma dos livros pas­sou a fazer parte dos materiais tratados em minha prática artística.

Talvez tenha vindo daí a importância que dou à simbiose entre palavras, livros, objetos e imagens. A história do livro ilus­trado moderno, que começa com a publi­cação das poesias de Edgar Allan Poe tradu­zidas por Stéphane Mallarmé e ilustradas pelo pintor Édouard Manet, já aponta para essa combustão entre todos os elementos de um livro, que viria a inaugurar, junta­mente com as experiências da vanguarda russa, as artes gráficas do período. Mas, se estamos a quase 140 anos dessa obra, podemos hoje celebrar as infinitas possi­bilidades das formas impressas. Os poetas, que sempre puderam tudo por palavras, podem agora até mesmo utilizar termos especiais, imagens invertebradas ou de superfície, sem as quais alguns textos pare­ceriam incompletos, palavras que não apontam sequer para o que sugerem e que estão aptas a desdenhar de toda e qualquer solução. Numa hipótese divertida, essas palavras seriam capazes de extrair das afirmações tão somente a certeza e, sem desqualificá-las, reiterar a eficácia de sua eloquência com o objetivo explícito de deflagrar outras formas de indução.

Creio que a esta altura, e a propósito do que foi dito antes, posso sugerir ao lei­tor que imagine algo como um número transparente e, seguindo essa hipótese, pedir que multiplique o número inicial por um outro, múltiplo da mesma origem, mas opaco. Como resultado, poderíamos obter uma cifra imaginada que, embora líquida, seria a síntese de outra equação, ainda mais longínqua. Aprendemos então que as pala­vras nos levam exatamente aonde querem chegar… e que miragens incalculáveis estão na prosa das leis.

Livros podem explorar regiões sem alfa­betos, criar figuras de linguagem impen­sáveis na ficção e, usando apenas palavras, são até mesmo capazes de legitimar rela­ções inaugurais entre um autor que não escreve e um leitor que não lê. Se isso nos leva a concluir que um autor é o seu leitor no verso da transparência, os livros são esta comprovação.

 

Este verbete tem origem na fala de WALTERCIO CALDAS (1955), um dos principais artistas brasileiros, no lan­çamento da serrote #10. Especialmente para aquele número, Waltercio produziu o ensaio visual “Ficção nas coisas”.

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