A arquitetura dos intervalos – por Francesco Perrotta-Bosch

A arquitetura dos intervalos
por Francesco Perrotta-Bosch

Lina Bo Bardi. Estudo preliminar – Esculturas praticáveis do Belvedere do Masp, 1968. (Coleção Masp/Masp).

 

A execução de 4’33” por uma orquestra sob o vão do Masp seria uma ocasião interessante. Mesmo que pareça redundante a sobreposição de duas grandes obras com intenções semelhantes, no encontro entre o intervalo do tempo de John Cage e o intervalo do espaço de Lina Bo Bardi estaríamos na mais privilegiada situação para perceber os vários acontecimentos – “atividade do som”[1] – naquele rico e complexo ambiente em que o Masp se insere. Ambas as obras agem dentro do que é real, libertando aquilo que está “oprimido, mas não suprimido”[2]. Trabalhos sensíveis à participação do entorno dentro deles – estando dispostos à escuta – permitem que as exterioridades incidam fortemente sobre o que há de interioridade.

A própria arquiteta contava diversas vezes a história do encanto do compositor quando avistou o edifício do museu:

Quando o músico e poeta americano John Cage veio a São Paulo, de passagem pela avenida Paulista, mandou parar o carro na frente do Masp, desceu e, andando de um lado para outro do belvedere, os braços levantados, gritou: “É a arquitetura da liberdade!”. Acostumada aos elogios pelo “maior vão livre do mundo, com carga permanente, coberto em plano”, achei que o julgamento do grande artista talvez estivesse conseguindo comunicar aquilo que queria dizer quando projetei o Masp: o museu era um “nada”, uma procura da liberdade, a eliminação de obstáculos, a capacidade de ser livre perante as coisas.[3]

Aí está uma chave para a compreensão da singularidade do vão livre da edificação: espaço formado por entre o conjunto do solo da avenida Paulista com o volume suspenso e sua estrutura em “duplo pórtico” pintado de vermelho, enquadrando a massa de edificações da cidade de São Paulo, como um portal na escala da metrópole, que preserva e pronuncia a visão que a avenida tem da urbe. Uma moldura que ali interioriza as exterioridades paulistanas.

Todavia, seria superficial nos ater ao espaço que Bo Bardi denominava belvedere do Masp como uma “janela especial”. Alguns eventos abrigados ali indicam a especificidade do lugar. Exemplares são os vários protestos que ocorreram e reaparecem com força neste ano de 2013, aglomerações do povo contra problemas conjunturais ou o poder vigente. Nesse lugar, permite-se contestar a ordem, promover encontros, agregar diferenças, gerar choques, instaurar algum caos.

O vão livre também possibilita o abrigo ao lúdico, como nos meses em que o Circo Piolin nele se instalou; ao nostálgico, das feirinhas de antiguidades de todos os domingos; à arte em contato com as condições urbanas, como nos filmes ali projetados em festivais de cinema; à audição, entre o ruído dos automóveis e as notas dos músicos durante seus shows; às ocasiões esperadas ou inesperadas. Para o vão livre do Masp, adjetivos como cívico e monumental são corretos, porém ainda pouco justificam o lugar.

Por isso, retomemos o sentido da observação “arquitetura da liberdade” de Cage. Numa palestra de 1958 sobre música experimental, o músico americano afirmara: “Nessa nova música, nada acontece além de sons: os que são percebidos e os que não o são. Os que não são notados aparecem na música escrita como silêncios, abrindo as portas da música para os sons que existem no ambiente.”[4] O silêncio aqui representa a abertura da arte aos acontecimentos exteriores ao processo musical que é conduzido, por meio da partitura, por uma construção sonora criada por um autor. Com isso, Cage se permite ser atravessado pelo que não pertence a uma organização musical predeterminada e, por conseguinte, pelo que não é necessariamente do domínio da música, da arte.

Qualquer som, barulho ou ruído pode ser compreendido como música, segundo essa concepção de Cage: “A experiência do som que prefiro em relação a todas as outras é a experiência do silêncio. E o silêncio em quase todos os lugares do mundo agora é tráfego. Se você escutar Beethoven ou Mozart, você verá que é sempre o mesmo, mas se você escutar o tráfego, você verá que é sempre diferente.”[5] John Cage esteve atento à percepção dos acontecimentos, desses eventos não organizados nem controlados por um indivíduo ou por um grupo. Por não conterem um caráter especial, podem até ser vistos como banais. Introjetados à cotidianidade como um “pano de fundo” – “cenário” – às coisas nas quais foca-mos nossas atenções. Sua composição mais instigante está diretamente ligada a essa reflexão: 4’33” é composta por três movimentos sem a execução de qualquer nota, para que possamos perceber os sons do ambiente – environment –, abrindo a composição à indeterminação e aos acontecimentos correntes no cotidiano.

No vão livre do Masp, percebemos que a arquiteta não determinou um sistema que domestica a apreensão do espaço pelo visitante. As pessoas não terão ao seu redor um espaço constituído por uma composição plástica, como uma obra sonora concebida por Beethoven ou Mozart, mas por um espaço – um intervalo – onde se está livre para perceber o ambiente que o envolve da maneira como ele é, sem que seja agregada ou sobreposta qualquer informação de caráter imagético, tátil, sonoro etc. Lina Bo Bardi não intenta dominar todo o processo de ocupação e transformação daquele lugar. Aquele “nada” é um local liberto à recepção de diferentes sensações pelo ser humano, sendo assim um lugar privilegiado para a percepção da vida, da coletividade, da metrópole paulistana, do mundo.[6]

Ao se liberar para o que não pertence ao universo arquitetônico stricto sensu, a arquiteta questiona certos paradigmas do ato projetivo tidos como certeza no modus operandi da arquitetura. No vão livre do Masp, da maneira como ele se apresenta, Lina Bo Bardi não se coloca no papel de arquiteta que pretende impor seu desenho ao mundo; ao contrário, ela quer abrir sua arquitetura ao outro, para que este possa interagir com ela. Assim, possibilita a incorporação de outras lógicas, diferentes da elaborada por si mesma como autora. Bo Bardi parece com isso pôr em dúvida a ideia do arquiteto como uma espécie de demiurgo, ou seja, o artífice com o poder de determinar o mundo material e o comportamento das pessoas que o habitam. A “arquitetura da liberdade”, verificada por Cage no vão livre do Masp, relativiza certos princípios do ato de projetar vistos como demandas naturais, mas que são, na verdade, formulações culturais. Para isso, é válido considerar uma lógica aparentemente contrária à de Lina Bo Bardi.

“A disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço”, escreve Michel Foucault em Vigiar e punir: nascimento da prisão.[7] Os três termos-chave da afirmação – disciplina, distribuição, indivíduos – nos orientam a diversas questões. Processos disciplinares são métodos de controle das operações, por meio da manipulação calculada de cada elemento, estruturando-os para que sejam submissos e obedientes a um sistema de poder. A ênfase ao indivíduo deve ser, primeiramente, conferida pela óptica antagônica: a da coletividade. A formação de grupos de pessoas é vista como uma abertura ao descontrole: “É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração”.[8]

A individualização facilita o entendimento do conjunto, ou seja, é pela análise de cada elemento que se compreenderá e se dominará o todo. Intenciona-se a decomposição dos agrupamentos para que não haja misturas, aglomerações, confusões, caos. A partir do ato de decompor, obtêm-se as individualidades que serão distribuídas de acordo com um sistema. Essa divisão e distribuição se encaixa numa lógica espacial – arquitetônica – e impõe, por consequência, o posicionamento dos indivíduos e a articulação deles. Assim, mecanismos disciplinares fragmentam e ordenam as operações para que haja maior controle sobre as pessoas e os processos, com a finalidade de maximizar os rendimentos conforme a lógica da cadeia produtiva, do trabalho.

Com isso, tendo os meios e os objetivos bem identificados, alguns outros aspectos que complementam esse processo devem ser ressaltados. A decomposição das operações, ao se sequenciarem elementos distintos, também regulariza temporalmente as ações: “Anulação de tudo o que possa perturbar e distrair; trata-se de constituir um tempo integralmente útil”[9]. O ser humano – o indivíduo – passa a ser penetrado ao máximo por esses mecanismos disciplinares, tornando-se parte controlada e não autônoma de um conjunto ordenado. O resultado é um sistema que se pauta por questões funcionais e divisões hierárquicas, traduzido por códigos interiores à disciplina da arquitetura.

O arquiteto se põe no papel de mestre que estabelece previamente os códigos que levam a uma resposta obrigatória e única dos indivíduos. Isto é, a disciplina aparece inserida de maneira natural em demandas do programa, e os arquitetos a traduzem por meio do instrumento do desenhoem espaços. Foucaulttambém nos apresenta um histórico dessa estrutura social pautada em mecanismos disciplinares, evidenciando que esses, na verdade, são criações modernas e relativamente recentes na história da humanidade: “Aparentemente, não passa de solução de um problema técnico; mas através dela [da disciplina] se constrói um tipo de sociedade. A Antiguidade foi uma civilização do espetáculo. ‘Tornar acessível a uma multidão de homens a inspeção de um pequeno número de objetos’: a esse problema respondia a arquitetura dos templos, dos teatros e dos circos. Com o espetáculo, predominavam a vida pública, a intensidade das festas, a proximidade sensual. […] A Idade Moderna coloca o problema contrário: proporcionar a um pequeno número, ou mesmo a um só, a visão instantânea de uma grande multidão. Numa sociedade em que os elementos principais não são mais a comunidade e a vida pública.”[10]

A partir de John Cage e Michel Foucault, defendo que Lina Bo Bardi tinha em mente que certas prerrogativas do ato de projetar, vistas costumeiramente como inerentes à profissão do arquiteto, são construções culturais modernas, e não verdades absolutas e irrefutáveis. Ela estava tentando um caminho diferente do determinismo próprio ao funcionalismo dos modernistas da primeira metade do século 20. É necessário lembrar o período histórico em que o Masp foi projetado (entre as décadas de 1950 e 1960) e, com isso, posicionar Bo Bardi em um contexto em que se buscava dar uma resposta distinta ao paradigma colocado pela primeira geração de arquitetos modernos: “A regra das localizações funcionais vai pouco a pouco, nas instituições disciplinares, codificar um espaço que a arquitetura deixava geralmente livre e pronto para vários usos. Lugares determinados se definem para satisfazer não só à necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil.”[11]

Lina Bo Bardi não faz essa conversão descrita por Foucault: o belvedere do Masp não é resultante de demandas funcionais ou programáticas. Não há possibilidade de responder de maneira pragmática à pergunta sobre qual seria a função daquele lugar formado pelo vão livre, pois não foi dada uma utilidade clara e específica a ele na sua concepção. Tampouco se mostrou possível, nos mais de 40 anos de sua existência, que aquele espaço fosse controlado por um sistema arquitetural específico e excludente.

O vão livre é uma espécie de antipanóptico: não existem mecanismos que separem os indivíduos e organizem as unidades em um sistema que visa ao maior rendimento no trabalho. No lugar em questão, o ser humano não é visto como uma peça de máquina maior totalmente controlável, isto é, pela óptica da produtividade e do rendimento. O projeto é subversivo à lógica taylorista. A arquiteta insere a ideia da convivência. Contrapondo-se ao culto às individualidades, Bo Bardi dá liberdade a ocasiões em que ocorra o contrário: desde os atos coletivos, as aglomerações, os encontros não programados, até o caminhar do transeunte solitário. No vão livre, temos um vazio impregnado de possibilidades ao ser humano: o ócio, o lúdico, o afeto. Assim, opõe-se aos “não podes”: contrariam-se proibições, vigilâncias e imposição de normas. É difícil que qualquer instituição responsável pela ordem tenha controle daquele lugar, já que não há um ponto de observação privilegiada do todo, pois esse todo não está esquadrinhado, fragmentado e distribuído sequencialmente segundo uma lógica espacial e temporal. Ali parecemos estar sempre nos preparando para algo que não está organizado – e nunca estará –, em um eterno momento de latência que precede algo que não se completa nem se encerra.

No presente, quando andamos pela avenida Paulista e entramos no vão livre do Masp, estamos em um lugar com virtudes libertárias muito singulares, enfatizadas pelo contraste com o caráter da maioria das edificações do entorno. Por ser um espaço assimilativo ao acaso e aberto à indeterminação das intenções e dos movimentos de pessoas distintas que, por qualquer motivo, ocupam aquele lugar de maneira sempre efêmera, esse vazio parece supor o esvaziamento da noção de autoria. A Lina Bo Bardi coube definir o piso de paralelepípedo, o teto de concreto rude e um vão livre de aproximadamente80 metros. Quanto ao vazio, a arquiteta deixa a incumbência de ocupá-lo (ou não) da maneira que for conveniente aos desejos pessoais ou coletivos dos cidadãos da metrópole.

Quando faz do intervalo entre os espaços fechados do Masp um “nada”[12], Bo Bardi encontra uma limitação presente na concepção moderna de arquitetura – como vimos com Foucault –, pois afronta a noção de projeto como ato que determina claramente uma realização futura de índole transformadora. Há o início de um movimento que põe em questão seu papel de autora, pois ela não se apresenta como agente única originante – e, sob certo aspecto, autoritária – do que ocorrerá naquele lugar. Lina Bo Bardi ensaia um deslocamento do papel de arquiteta como pessoa em posição privilegiada a definir um ambiente da vida humana, num ato de submissão às eventualidades. Ela relativiza a autoridade do arquiteto como especialista – numa prática em que o arquiteto tem como atribuição definir formas, espaços, funções, técnicas etc. – a partir do momento em que se abre para uma espécie de “funcionalismo invertido”, com o uso sendo definido pelo usuário e não pelo conhecedor específico.

Pensar naquele espaço como algo totalmente livre à indeterminação da vida pode ser fruto da observação de como ele é hoje; porém, uma análise da obra completa da arquiteta mostrará que essa pretensão libertária é parte de uma maneira de concepção que envolve a noção de autoria, mesmo que esta seja distinta da atribuição mais comum dada a quem exerce a arquitetura. Bo Bardi quebra a divisão hierárquica que vê no arquiteto a figura do especialista, porém não abre mão por completo de seu “instinto individual” no projeto, isto é, da força de seu gesto.

A imagem-chave para dar uma guinada nessa apreciação sobre Lina Bo Bardi é o croqui feito por ela do belvedere do Masp. O primeiro aspecto a se frisar, corroborando o que já foi aqui enunciado, é a ênfase dada ao plano do belvedere: a imagem sinaliza e justifica a relação de importância atribuída ao vão livre, deixando como fundo a “caixa suspensa” e o embasamento construído que abrigam os espaços interiores do museu. O segundo ponto é que o vazio é ocupado. A priori, o fato também é coerente com tudo o que foi anteriormente defendido. Porém, aqui nasce um ponto de crise na argumentação elaborada.

Lina Bo Bardi apresenta o que vai ser do vão livre, o “como” ocupar o belvedere, por mais efêmera que seja essa ocupação. Ela propõe ocasiões determinadas. Pensa que o lugar pode ser totalmente livre para escutar o entorno, mas que também pode ser ocupado por eventos que deem caráter ao ambiente e o construam, surgidos através da convivência entre diversos pequenos elementos interativos e as pessoas que os acionam.

Para sustentar essa hipótese, temos de expandir nosso campo de observação para além do vão livre do museu, posicionando-o comparativamente perante o salão da Casa de Vidro, o interior dos antigos galpões fabris do Sesc Pompeia com as exposições organizadas pela arquiteta, além da própria pinacoteca do Masp.

Comecemos pela Casa de Vidro, no Morumbi, atendo-nos aos objetos que habitam a sala de Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi: o mobiliário projetado por ela própria misturado a quadros do barroco italiano que dividem espaço com objetos artesanais do Nordeste do Brasil e utensílios domésticos do cotidiano. Não há organização compositiva dos objetos segundo qualquer lógica cronológica, estilística ou decorativa. Não há edição na escolha ou manutenção das “coisas”. Há a liberdade para a assimilação, de acordo com a história da vida do casal Bardi. É uma construção de um conjunto feita segundo a memória, o intelecto e o afeto dos dois por esses objetos.

Essas “coisas” que representaram algo de especial e valioso para o casal se apresentam juntas e colapsadas em um só lugar e momento e, assim, a vida conjunta dos Bardi se faz presente concretamente diante dos olhos. Por isso, o projeto arquitetônico original da Casa de Vidro, fruto de uma elaboração intelectual de dois anos, desapareceu sob a coleção de pequenas coisas que fizeram parte do cotidiano do par durante mais de 40 anos. Para entender Bo Bardi, deve-se olhar para essa multiplicidade de objetos contrastantes, porém absolutamente justificáveis. A casa em si, enquanto objeto arquitetônico, se desfaz ao ser absorvida pela história pessoal criada pelo casal.

A disposição de objetos no interior da sala da Casa de Vidro deve ser diretamente relacionada à pinacoteca do Masp. O grande espaço destinado à exposição do acervo permanente da instituição foi elaborado com uma planta totalmente livre de estruturas e divisionamentos. Com o suporte dos painéis-cavaletes de vidro, os quadros se despedem do plano bidimensional das paredes para coabitar as três dimensões do interior do segundo pavimento da “caixa suspensa”, mesclando-se e aproximando-se das pessoas que ocupam e dão vida àquele espaço. Com uma lógica curatorial com a mesma liberdade das “coisas” no salão da Casa de Vidro, a obra de arte deixa de ser vista como relíquia para se posicionar como objeto próximo, interativo e lúdico. O visitante nunca se põe somente diante de uma única obra, mas de um conjunto de objetos expostos e de pessoas. Incentiva-se que não haja espectadores que recebam passivamente um suposto conhecimento proveniente das obras de arte e predeterminações historiográficas, mas que todos sejam atores conscientes do rico mundo que se apresenta à sua volta e que sejam capazes de criar a própria memória.

Também é necessário olhar para o Sesc Pompeia, sobretudo para o interior dos galpões da antiga fábrica que a arquiteta reconfigura. Ali a estratégia de projeto é bem evidente: mantêm-se a estrutura, as paredes de tijolo aparente, as tesouras com o antigo conjunto do telhado, e limpa-se todo o interior. Nesse núcleo esvaziado, a arquiteta destina intervenções de pequena escala, efêmeras ou móveis. São dispositivos heterogêneos que configuram o espaço, mas sempre partindo do princípio de subverter um lugar originariamente destinado ao trabalho por meio do lúdico: poltronas e sofás para o ócio, mesas para jogos, estantes para uma pequena biblioteca comunitária, um espelho d’água com pedrinhas no fundo, isso em meio a um vazio impregnado de possibilidades, onde tudo se centraliza numa lareira com o fogo que parece convergir para aquele universo simbólico. Esse vazio sempre disponível a acontecimentos foi penetrado por outros pequenos objetos em exposições feitas por Lina Bo Bardi – Entreato para crianças, Mil brinquedos para a criança brasileira, Caipiras, capiaus: pau a pique – ou outros artistas: dispositivos lúdicos prontos para serem ativados num grande jogo que alimenta o imaginário coletivo, possível somente a partir da presença das pessoas. Um mosaico de citações e colagens com origens e qualidades tão díspares que provocam a imaginação e incentivam a construção de histórias.

Após ampliar o foco para outros trabalhos de Lina Bo Bardi, é importante retornar à imagem que instigou a questão inicial. O desenho à mão sem qualquer intencionalidade de ordem técnica para o grande vão do Masp, numa primeira observação, apresenta o belvedere ocupado pelas pessoas que usufruem do lugar e por dispositivos lúdicos propulsionadores de ações recreativas que incitam ao divertimento, de maneira semelhante aos projetos analisados antes.

A imagem desenhada pela arquiteta contém uma exuberância proveniente da profusão de pessoas e elementos, todos retratados de forma diminuta – a ênfase não está no indivíduo –, mas que configuram um momento pujante como em um quadro renascentista flamengo de Pieter Bruegel. É uma estratégia de desenho de que Lina Bo Bardi faz uso em diversos projetos: distanciar-se levemente do ambiente retratado para ter uma visualização geral do conjunto em processo de concepção. É fundamental também enfatizar essa linguagem do desenho um pouco naïve, ingênua, descompromissada, sem a intenção de ser arte, no sentido de que não se pauta unicamente por referências que indicariam erudição artística. Possível é fazer um paralelo com os quadros de Guignard que retratam as cidades interioranas brasileiras ou as bandeirinhas de Volpi, exatamente por assimilarem matrizes populares no interior do campo artístico.

Lina Bo Bardi desenha brinquedos como o carrossel colorido formado por bichos da fauna brasileira – tamanduás, tatus, tucanos –, macios escorregas vermelhos que se juntam em um nó que dá origem a um mastro com cata-ventos, tubos coloridos que brotam do chão criando um emaranhado a ser explorado, uma esfera indefinida e ilusória, com capacidade de encantar quem estáem volta. Entreesses dispositivos de escala irreal, porém própria da imaginação infantil, as crianças parecem instigadas a brincar de amarelinha, ciranda e outras danças. Objetos e pessoas se movem concomitantemente em um universo desordenado e fantasioso, num constante movimento proporcionado por uma rede de forças lúdicas com energia própria, que se renova pelo simples fato de existir. Por isso, seriam momentos de um cotidiano que se perpetuaria. Sem se perder de vista que o croqui representa algo efêmero, ele apresenta a intenção da arquiteta para o vão livre como um lugar de ocasiões.

Vemos nesses quatro projetos um certo padrão. Podemos definir que a arquitetura de Lina Bo Bardi se posiciona no limiar de um paradoxo entre as caracterizações de uma escala maior e geral do edifício e outra escala menor dos pequenos dispositivos que ativam um ambiente. Essa escala maior diz respeito à grande estrutura cuja intenção não é uma solução plástica rebuscada ou determinações de índole funcional ou programática. O propósito é abrigar algo próprio à vida humana, no sentido mais genérico e pouco específico dessa afirmação. Ou seja, é a grande escala que contém a “arquitetura da liberdade” – analisada no início do texto. É ali que Bo Bardi ensaia desafiar as noções de autoria e projeto, pois a relação de afeto que há naturalmente entre agente originante e objeto concebido é frágil quando o espaço em questão é tão franco ao acaso e à indeterminação.

As características assinaladas a respeito da interioridade dos edifícios de Lina Bo Bardi já esclarecem o que são esses dispositivos de menor escala. A arquiteta afirmaria que são fragmentos constituintes de “um organismo apto à vida”.[13] Pequenos objetos com caráter simbólico e dispostos não sistematicamente, que relutam a sujeitar-se a qualquer princípio organizacional pautado nas disciplinas esquadrinhadas na obra de Foucault. A potência não é proveniente dos elementos sob a óptica da unidade, mas do conjunto composto por esses “átomos” contendo em si uma energia própria, acionável somente pela presença das pessoas e do contato com elas – como um brinquedo. Essas fricções positivas entre as partes distintas e dispersas geram um movimento vigoroso. Lugares em contínua mutação pela simples presença do homem: não o autor único de tudo ali, como a figura do arquiteto, mas o ser comum que usufrui daquele espaço de maneira não passiva. Temos aqui um lugar onde a criação é coletiva. Assim, configura-se um conjunto não estático e em contínua transformação, constituindo formas que nunca se concluem.

“Até que o homem não entre no edifício, não suba os degraus, não possua o espaço numa ‘aventura humana’ que se desenvolve no tempo, a arquitetura não existe, é frio esquema não humanizado”, afirma Lina Bo Bardi.

“O homem o cria com o seu movimento, com os seus sentimentos. Uma arquitetura é criada, ‘inventada de novo’ por cada homem que nela anda, percorre o espaço, sobe uma escada, se debruça sobre uma balaustrada, levanta a cabeça para olhar; abrir, fechar uma porta, sentar e se levantar é um tomar contato íntimo e ao mesmo tempo criar ‘formas’ no espaço, expressar sentimento.”[14] Essa definição de arquitetura liga a existência da edificação à nossa apropriação dela. A citação acima e os pequenos dispositivos mostram a intenção da arquiteta de que a experiência de tomar o lugar para si, possibilitada a qualquer pessoa que esteja nele, seja muito próxima à narração. Narrativas, por princípio, têm caráter lúdico. Por serem um ato eminentemente criativo, elas demandam imaginação. Com isso, cumpre-se uma intenção explicitamente defendida pela arquiteta: evita-se a apropriação, por parte dos indivíduos, da história de outras pessoas, épocas ou lugares que não pertencem em nada a si ou à coletividade na qual estão inseridos. Narrar tem um sentido de criar memórias. Por outro viés, é possível entender a busca do gênero narrativo com o intuito de se contrapor à realidade factual, ou seja, uma suposta verdade. Podemos ver isso como uma espécie de confronto com o que é imposto, por meio da busca de uma vivência paralela. O que o senso comum tem como verdade absoluta pode ser postoem dúvida. Lina Bo Bardi parece buscar estratégias nas quais narrativas de caráter livremente ficcional se tornam verossímeis. É a tentativa de transformar a ficção em realidade que torna fantasiosas as interioridades dos edifícios que projeta.

Sem impor obstáculos, essa lógica da arquiteta assimila o imaginário, o desejo, o afeto, o lúdico e o surreal na constante construção de ocasiões poéticas. Isso só é possível pela liberação proveniente da indeterminação espacial. A distinção entre duas escalas serve como esclarecimento de uma contradição que há no ato projetivo de Lina Bo Bardi. Quando Cage elogia o vão livre do Masp como “arquitetura da liberdade”, ele enaltece parte da estratégia da arquiteta. A obra de Bo Bardi mostra que a indeterminação é um meio, porém não é a finalidade.

Por meio de seus desenhos, Bo Bardi explicitava seu lado autoral, demonstrado na idealidade das situações (mesmo que efêmeras) concebidas. Ela não se colocava como autora de uma forma plástica expressiva que configuraria rigorosamente um lugar, mas como uma pessoa capaz de proporcionar situações através de um conjunto de pequenos elementos. A arquiteta segue uma linha tênue entre a permissão ao acaso no interior de sua obra e a proposição de uma possibilidade de ocupação ideal. Portanto, há uma contradição positiva: Lina Bo Bardi não determina, para poder determinar após. Assim, durante sua trajetória, a arquiteta não questiona a noção de projeto, pois compreende a indeterminação como estratégia para que ocasiões possam ser concebidas por ela e pelas pessoas que ocupem sua arquitetura. Pode-se afirmar que Bo Bardi não se coloca como agente originante única, porém não abre mão de ser uma dessas agentes, o que a situa num grupo específico e pouco comum de arquitetos cuja matriz de projeto tem como essência possibilitar experiências, incitando a imaginação daqueles que invadem os espaços por eles iniciados.

 

 ***

Vencedor do 2º prêmio de ensaísmo serrote, Francesco Perrotta-Bosch (1988) é arquiteto. Editor-assistente do portal Vitruvius e pesquisador da X Bienal de Arquitetura de São Paulo, é coautor do livro Entre: entrevistas com arquitetos (Viana e Mosley, 2012). Em Paris, estagiou com Christian de Portzamparc e, desde 2010, colabora em projetos com o escritório SIAA.

 

Notas

1. “John Cage about silence”.

2. Olivia de Oliveira, Lina Bo Bardi: sutis substâncias da arquitetura. São Paulo/ Barcelona: Romano Guerra Editora/Gustavo Gili, 2006, p. 295.

3. Lina Bo Bardi, “Uma aula de arquitetura”, in Silvana Rubino e Marina Grinover (org.), Lina por escrito. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 166.

4. John Cage, Silence: conférences et écrits. Genebra: Héros-Limite, 2003, p. 11.

5. “John Cage about silence”.

6. John Cage, na palestra sobre música experimental, definiu algo que também justificaria o atributo de “arquitetura da liberdade” dado ao vão livre do Masp: “Uma peça sem finalidade […] é uma afirmação da vida sem que haja a tentativa de trazer ordem ao caos ou sugerir melhoramentos ao já criado, mas simplesmente uma maneira de acordar para a vida que estamos vivendo”.

7. Michel Foucault, Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 2008, p. 121.

8. Ibidem, p. 123.

9. Ibidem, p. 128.

10. Ibidem, p. 178.

11. Ibidem, p. 123.

12. Lina Bo Bardi, op. cit., p. 166.

13. Lina Bo Bardi, apud Olivia de Oliveira, op. cit., p. 367.

14. Ibidem, p. 358.

Uma resposta para A arquitetura dos intervalos – por Francesco Perrotta-Bosch

  1. Pingback: contemporânea » Blog Archive » A palavra é rolezinho

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *