Anônimo, vanguarda, imperceptível – por Rodrigo Nunes

Anônimo, vanguarda, imperceptível

por RODRIGO NUNES

A crise da democracia e da representação impulsiona o ativismo de código aberto, que prescinde de lideranças explicitamente identificadas ou estruturadas

 

PRIMEIRA VARIAÇÃO: DEVIR-ANÔNIMO

Anota aí: eu sou ninguém 1

 

O fôlego curto da memória de nossas análises midiáticas rara­mente soube vê-lo, mas o levante do Exército Zapatista de Li­bertação Nacional (EZLN), que completou 20 anos em 1o de ja­neiro de 2014, é um elemento importante na genealogia das revoltas que agitaram o mundo desde  Primavera Árabe, e que, a partir de junho de 2013, chegaram também ao Brasil. É perfeitamente provável, claro, que as inovações introdu­zidas pelo zapatismo mais cedo ou mais tarde fossem produzi­das em outros lugares. Mas elas constituem uma prefiguração de, no mínimo, três características essenciais do atual ciclo global de lutas – que não seria, portanto, uma novidade abso­luta, como foi tantas vezes pintado.

Em primeiro lugar, o EZLN, dependendo de atrair aten­ção e apoio internacional para se proteger do poderio mili­tar muito superior do Estado mexicano, inovou em seu uso da internet, que na época começava a se popularizar.2 Em segundo lugar, inovou ao conceitualizar essa conexão com outros grupos e coletivos pelo mundo como um sistema–rede, uma rede de redes sem centro, em expansão e em mutação contínuas.3 Nas palavras de seu porta-voz, Subco­mandante Insurgente Marcos, “nós somos a rede, todos nós que resistimos” .4 Por último, inovou na figura de seus líderes, em particular na do próprio Marcos, o mais conhecido de­les: a partir daí, ser anônimo e não ter rosto constituiriam o traço recorrente de movimentos posteriores. Nada mais ade­quado, portanto, que um dos grupos ou identidades coleti­vas mais importantes a aparecer nos últimos anos se chame, justamente, Anonymous; e que seu rosto visível seja a más­cara de Guy Fawkes vestida por uma espécie de antecessor ficcional de Marcos, o personagem V, da graphic novel V de vingança, de Alan Moore.

Mecanismo de defesa contra táticas de contrainsurgência que operam isolando lideranças e, ao mesmo tempo, uma maneira de performatizar a abertura da política a todos e todas,5 a anonimização tem sido desde então um elemento-chave no desenvolvimento daquilo que se pode chamar, em uma analogia com o software livre, de ativismo de código aberto. Em tempos como os nossos, de aguda crise dos me­canismos da democracia liberal e de desconfiança pervasiva de todo tipo de representação, é notável que convocatórias sem autores tendam a obter maior adesão que aquelas as­sinadas por uma ou mais organizações. Em parte, trata-se, sem dúvida, de uma consequência da suspeita quase para­noica que a política hoje provoca. Quando uma das maiores clivagens a dividir a sociedade é aquela entre os sub-repre­sentados (a grande maioria) e os sobrerrepresentados (elites corporativas, financeiras em particular, cuja influência é des­mesurada mesmo sobre aqueles outrora reconhecidos como partidos da esquerda), a adesão que um chamado à ação é capaz de angariar se torna inversamente proporcional à sus­peita de que ele possa servir a interesses que não sejam de todos. É sobretudo aquilo que parece estar vindo de lugar nenhum – e que poderia portanto estar vindo de qualquer lugar – que tem chance de ser ouvido.

Isso implica, com efeito, um duplo devir-anônimo da iniciativa política. Por um lado, a necessidade de “manifes­tar a inocência de sua função”6 de que falava Pierre Clastres sobre a chefia indígena; isto é, de fazer profissão de fé de sua submissão a um interesse comum que não possa ser apropriado ou instrumentalizado por esse ou aquele grupo organizado. Mas também, por outro, um novo modelo de liderança, característico dos movimentos sociais de novo tipo, que se assemelha, em sua fragilidade, tanto à reali­dade descrita por Clastres quanto ao mandar obedeciendo dos zapatistas.7 Uma liderança que lidera apenas na medida em que é seguida e, para tanto, deve não apenas manifestar constantemente sua inocência, como também ser capaz de mobilizar mensagens e afetos que se comunicam com um mal-estar social amplamente compartilhado, propondo iniciativas que, estendendo-se a analogia com o software li­vre, se apresentem como plataformas nem tão abertas que sejam ostensivamente inviáveis, nem tão fechadas que cada indivíduo não possa ver aí a possibilidade de encontrar um espaço para si.

Mas existe um limite temporal bastante claro até onde o devir-anônimo, tomado como ideal de prática política, é capaz de ir. Não se pode ser anônimo para sempre e, com efeito, a capacidade de se manter anônimo é inversamente proporcional ao sucesso da iniciativa que se propõe. Mesmo que não conheçamos o rosto que lhe está por trás, a más­cara de Marcos é imediatamente reconhecível como o rosto da maior liderança do EZLN; ao passo que, se os indivíduos que participam dos diferentes núcleos Anonymous podem na maioria dos casos permanecer anônimos, a coletividade chamada “Anonymous” ela mesma não pode.

Basta um pouco de permanência – consequência na­tural de uma iniciativa bem-sucedida –— para que, com o tempo, a máscara substitua um rosto, “Anonymous” subs­titua um nome, e assim por diante. Isso porque há uma di­ferença importante entre uma intervenção localizada que age como catalisador para um protesto e o trabalho contí­nuo, de mais longo prazo, de uma campanha ou grupo, seja este mais ou menos coeso e estruturado. No segundo caso, tornar-se identificável é inevitável, do mesmo modo como, por quanto mais tempo dure uma intervenção, mais prová­vel é que, por mais informal que seja um formato organiza­cional, estruturas internas e lideranças emerjam. É evidente que a invisibilidade e o devir-anônimo têm um limite: só é possível manter-se anônimo até certo ponto.

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SEGUNDA VARIAÇÃO: DEVIR-VANGUARDA

Hemos acampado en la Puerta del Sol y no nos vamos hasta que lleguemos a un acuerdo.8

Mas como falar de “liderança” em movimentos que são uni­versalmente descritos como “sem líderes”? Justamente, trata­-se de outra forma de compreender a liderança, passada pelo filtro de um devir-anônimo (e, como veremos, de um devir–imperceptível). Pois como não falar de “liderança”, por exem­plo, para descrever as cerca de 40 pessoas que decidiram, após a pujante manifestação de 15 de maio de 2011 em Madri, acam­par na Puerta del Sol –— gesto que seria seguido, em poucos dias, por milhares de pessoas não apenas em Madri, mas em toda a Espanha? Aqueles que tiveram a iniciativa de propor essa manifestação – grupos como Democracia Real Ya! e Juventud Sin Futuro, eles mesmos “líderes” nesse sentido –— a tinham convocado para a data que batizaria o movimento que ficou conhecido como 15m sem que tivessem qualquer ideia do que ocorreria a seguir. Foi o exemplo daquelas poucas pessoas que ocuparam a praça no centro de Madri que efetivamente deu ao 15m uma existência continuada no tempo, consti­tuindo-o efetivamente como movimento e criando, assim, as condições para tudo que passou depois.

É que, na verdade, a descrição desses movimentos como “horizontais” e “sem líderes”, que ouvimos tanto da parte dos meios de comunicação quanto dos próprios ativistas, é ine­xata. A inexatidão tem, é claro, motivos distintos em cada caso: se indica a superficialidade da análise no primeiro, ela nomeia um ideal regulativo no segundo. Contudo, exami nados do ponto de vista da topologia de seu sistema-rede, esses não são movimentos horizontais – se por “horizontal” enten­demos uma rede inteiramente plana, na qual cada nó está à mesma distância de todos os outros e tem o mesmo potencial de influência que todos os demais – e sim distribuídos.9 Isso significa que não são uma multiplicidade homogênea, mas in­ternamente diferenciados, possuindo zonas onde as conexões são mais densas (clusters) e outras onde são mais esparsas; al­guns nós ou clusters mais ativos, outros menos, num processo de diferenciação permanente, que altera constantemente sua topologia, mas não o tipo de topologia (distribuída). É por isso que a horizontalidade só pode ser um ideal regulativo: embora ela implique um princípio válido – um máximo de democra­cia, abertura e participação –, esse princípio, irrealizável em termos absolutos, pode servir apenas como orientação para a prática, nunca como fim em si.

A uma topologia distribuída corresponde uma liderança dis­tribuída: uma circulação da função de liderança que, com am­plitude variável e apontando em direções variáveis, passa por diferentes nós e clusters em diferentes momentos. Não se trata, portanto, da fantasia simetricamente inversa à da horizontali­dade absoluta – em que o discurso midiático, às vezes, e o go­vernamental, quase sempre, recaem –, que consiste em buscar paranoicamente a conspiração de líderes que, como titereiros ocultos atrás dos panos, são responsáveis por aquilo que vemos nas ruas. Trata-se, ao contrário, de indicar aquilo que está escon­dido simplesmente por estar à vista de todos: que não há ausên­cia de lideranças, mas de grandes lideranças, e uma proliferação de lideranças de médio e pequeno porte, bem como uma re­lativa abertura à possibilidade do aparecimento de novas lide­ranças. E que, em vez de ser tomada em grandes e fotogênicas assembleias, a maioria das decisões que quebram impasses e apontam novas direções de ação depende da iniciativa de gru­pos às vezes muito pequenos operando na ausência de proce­dimentos de tomada de decisão universalmente reconhecidos.

Nessas ocasiões em que iniciativas “vindas do nada” logram condensar a atenção e o esforço coletivos, atraindo apoio e gerando efeitos exponencialmente superiores a suas condi­ções iniciais, podemos dizer que uma funçãovanguarda se manifesta no interior de um sistema-rede, ativando-o como um todo ou em parte. O conceito aqui nada tem em comum com a concepção teleológica de vanguarda cuja ascendên­cia sobre a tradição marxista engendrou a prática política destrutiva que denominamos “vanguardismo”. Falar em função-vanguarda é, justamente, falar de uma função, que pode ser ocupada por diferentes núcleos de ação (grupos e, excepcionalmente, por indivíduos) em diferentes momentos; ela é objetiva no sentido de que, uma vez que a modulação introduzida no sistema-rede tenha se propagado, é possível identificá-la como a causa anômala por trás de um número crescente de efeitos. Mas não no sentido de uma transitivi­dade necessária entre uma posição objetivamente definida (classe ou fração de classe) e a ocorrência de uma irrupção de subjetividade política (consciência ou evento). A função–vanguarda é como aquilo que Deleuze e Guattari chamam de “ponta de desterritorialização”10 de um agenciamento, uma coletividade ou uma situação: a parte que, tendo introduzido uma modulação no comportamento do todo, abre uma nova direção e, à medida que se propaga e comunica a outros, pode se tornar algo a ser seguido, desviado, resistido etc. – “imitado, adaptado, oposto”, diria Gabriel Tarde. Ela é o ponto por onde a inovação passa no sistema-rede; a vanguarda como devir.

A função-vanguarda é, portanto, uma direção, no duplo sentido de que abre um novo caminho e exerce uma função de liderança num instante determinado. Por “direção” não se entenda aí um título vitalício adquirido por conta de um pa­pel exercido em lutas passadas, ou uma propriedade mágica que aderiria a estruturas formais (partidos, sindicatos). É sim­plesmente o nome que se dá a quem demonstra, na prática, ser capaz de direcionar o curso de um movimento em dado momento: direção é quem dirige, no momento em que dirige, ao apontar um caminho que será seguido. Direção imanente, portanto, temporária e espontânea, se por isso entendemos que ela se manifesta sem que nenhum procedimento ou es­trutura formais lhe atribuam tal condição –- o que não significa que alguns núcleos de ação não possam ter mais condições de ocupar essa posição na medida em que são mais reconhecidos e respeitados, têm maior capacidade organizacional etc.

É fácil observar, contudo, que o relativo declínio das orga­nizações de massa multiplica o fenômeno ao invés de fazê-lo desaparecer; se até recentemente a mobilização de massa era quase monopólio dessas organizações, e seu apoio era decisivo para o sucesso ou o fracasso de uma iniciativa, o que vemos nos últimos anos é, cada vez mais, grandes efeitos de cascata produzidos por pequenos grupos e, no limite, até mesmo por indivíduos isolados. Se é possível falar em “ocaso do van­guardismo”,11 este parece decorrer, ironicamente, não do fim, mas da proliferação de funções-vanguarda, da aurora das vanguardas difusas. O paradoxo é apenas aparente, pois é natural que, à medida que a capacidade de mobilização das organizações de massa perde força e a mediatização da vida cotidiana (incluindo a popularização de plataformas digitais como Twitter e Facebook) se expande, essa potência se torne ao mesmo tempo mais difundida e mais facilmente ativável.

Por maior que seja a amplitude alcançada por uma modulação, ela sempre se propaga a partir de um ponto, por maior que este seja; mesmo que ela chegue a afetar ou a se espalhar pelo todo, sua origem é sempre na parte. À figura de linguagem na qual a parte se faz passar pelo todo damos o nome de siné­doque; e seria impossível pensar a política sem ela, a não ser que nos permitíssemos a ficção de uma mudança que se efe­tua toda de uma vez ao longo de uma multiplicidade humana, sem que se expandisse, complicasse e modificasse ao longo do tempo. O problema de um “devir Príncipe da multidão ”12 permanecerá um mau problema, porque malposto, enquanto não se entender que nunca é a multidão como tal, como um todo, que devém Príncipe; mas sempre alguns vetores dentro dela que a agitam e engendram nela uma nova forma, sendo Príncipes de fato sem que necessariamente se cristalizem como Príncipes de direito.

Pensar o problema nos termos propostos aqui, contudo, faz ver outra coisa: mesmo a expressão política mais multitudiná­ria – a política das massas, feita nas ruas, em que momentanea­mente se dissolvem os mecanismos de representação – envolve a sinédoque. Afinal, quando um número, mesmo um grande número de pessoas ocupa uma praça, como a Puerta del Sol ou Tahrir, elas não estão ali em nome de todas as pessoas que gostariam de estar, não estão assumindo a pretensão de falar em nome de toda a população de um país? Como observou Jodi Dean, “Occupy Wall Street não é realmente o movimento dos 99% da população dos Estados Unidos (ou do mundo) contra o 1% mais poderoso. É um movimento que se mobiliza em torno de uma Wall Street ocupada em nome dos 99% .”13 Ou, como fez notar Alain Badiou, “por maior que seja uma manifestação, ela é sempre arquiminoritária”,14 composta de “uma minoria ativa e pensante”15 cuja irrupção torna visível o antagonismo social até então oculto ou ignorado. Nessas con­dições, “o ‘país profundo’ desaparece e toda a luz é dirigida àquilo que poderíamos chamar de minoria massiva”.16 Badiou chama um fenômeno assim de contração: “A situação se contrai numa espécie de representação dela mesma, uma metonímia da situação total”17 – o que é, com efeito, um caso particular de metonímia, precisamente aquele que chamamos sinédoque.

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Conclui-se daí que, mesmo na modalidade mais informal e menos representativa de ação política, é impossível eliminar a sinédoque – que, sendo o movimento pelo qual uma parte se faz passar pelo todo, é o grau zero da representação. É à luz da constatação desse “resto indivisível” da política que devemos repensar a oposição absoluta (e, por isso mesmo, abstrata) que se costuma traçar entre os tipos de movimentos que vemos hoje e a representação. Não que não se possa fazer uma distinção en­tre o processo dinâmico pelo qual um vetor que emerge em um ponto de um sistema-rede se propaga, que talvez pudéssemos chamar de expressão, e a relação estática que é a representação em sua forma mais cristalizada. Da mesma maneira, podemos distinguir entre uma prática em que a expressão trabalha para evitar sua própria transformação em representação (ou em que a representação trabalha para se manter aberta à expressão e se superar na direção de uma política não representativa) e uma prática que busca sua própria estabilização como política repre­sentativa. O importante é compreender, justamente, que não apenas a diferença entre uma e outra coisa não é de natureza, e sim de grau – de modo que é possível passar de uma a outra de maneira progressiva e sutil –, mas igualmente que a avaliação que permite distinguir uma coisa da outra é ela mesma insepa­rável de uma perspectiva subjetiva: aquilo que é expressão para uns pode ser representação para outros e vice-versa.

Para pensar a complicação dessa fronteira, podemos tomar o exemplo de como uma parte, os black blocs no Rio de Janeiro, funcionou em relação ao sistema-rede criado pelos protestos de junho de 2013 naquela cidade e no restante do país. Foi no Rio que as manifestações continuaram por mais tempo, man­tendo grande intensidade até outubro daquele ano, muito por conta dos black blocs e da alta capacidade de convocação que eles possuíam apesar da informalidade de sua organização. Nesse sentido, eles expressaram o desejo de muitos outros mili­tantes, não necessariamente praticantes dessa tática, de seguir ocupando as ruas e manter aberta a brecha que junho criara. Ao mesmo tempo, porém, para os meios de comunicação, para boa parte da população e mesmo para muitos que estiveram antes nas ruas, a prática black bloc passou a ser cada vez mais repre­sentativa daquilo que os protestos haviam se tornado –— choques quase ritualizados com a notoriamente violenta polícia carioca, cuja agenda e rumo eram cada vez menos evidentes. A relação expressiva dos black blocs com outros setores do movimento teve seu ponto alto na greve dos professores municipais, em que seu apoio à luta dos docentes foi crucial e lhes conferiu em troca uma nova legitimidade, além de abrir possibilidades inéditas de diálogo. Esse momento, contudo, foi interrompido pela pesada repressão à manifestação do Dia dos Professores, a maior vista desde o auge dos protestos de junho, abortando as novas possibilidades ali sinalizadas 18. Como o nível de confron­tação seguia crescendo, e a tática empregada nos protestos não variava, estes passaram cada vez mais a ser constituídos apenas por black blocs, que àquela altura se autonomizaram por com­pleto em relação ao desejo dos demais manifestantes.

Vemos aí como a representação pode existir de maneira relativamente independente da existência de mecanismos para fazê-la funcionar e até mesmo do desejo de representa­ção. Embora os black blocs fossem radicalmente contrários a qualquer forma de representação –— e jamais tivessem sido designados representantes por quem quer que fosse –, a rela­ção dinâmica de expressão que estabeleceram com os demais manifestantes acabou por congelar-se numa espécie de repre­sentação para, em seguida, romper-se numa espécie de “não nos representam” dirigido contra eles.

Aquilo que foi descrito antes como o limite natural do de­vir-anônimo pode, então, ser entendido como a progressiva estabilização de uma função-vanguarda como direção, sendo que o primeiro sintoma seria justamente uma série de siné­doques: a máscara pelo rosto, o nome “Marcos” pelo EzLN, o nome “Anonymous” por uma massa de anônimos… Não há nada de errado em si nesses processos, que são naturais e até certo ponto inevitáveis – se quisermos chamá-los de “dege­neração”, que o seja num sentido biológico e não moral. Essa constatação nos força a mudar os termos dos problemas que os movimentos atuais frequentemente se põem. A questão é menos como evitar a representação a todo custo e mais como se beneficiar das vantagens dos processos de expressão/re­presentação evitando ao máximo seus riscos – e portanto seu congelamento, sua cristalização. Conversamente, a função- -vanguarda, ou a vanguarda pensada como devir, nos convida a repensar a dimensão subjetiva e estratégica da política em termos que sejam livres dos vícios do vanguardismo. Nova­mente os zapatistas: como criar e manter vanguardas sem vanguardismo, isto é, capazes de mandar obedecendo?

 

TERCEIRA VARIAÇÃO: DEVIR-IMPERCEPTÍVEL

What is our one demand?19
Play what’s not there.20

“A atividade do grupo militante”, escreve Félix Guattari, “não está lá para trazer uma resposta feita de antemão ou para empurrar razão goela abaixo de uma demanda suposta, mas, ao contrário, para aprofundar a problemática” .21 Por sua vez, Gilles Deleuze adverte que uma unificação que se opera “transversalmente, por meio de uma multiplicidade, não ver­ticalmente e de maneira a esmagar esta multiplicidade” deve desempenhar “um papel de analisador em relação ao desejo de grupo e de massa, e não um papel de síntese procedendo por meio de racionalização, totalização, exclusão etc.”22

Explorando também, à sua maneira, o isomorfismo entre ação política e atividade clínica, Slavoj Žižek observa que “a diferença entre o ‘líder totalitário’ e o analista é muito exígua, quase imperceptível”.23 Ambos são objetos da transferência por meio da qual o analisado (no caso do líder, o povo) pode vir a se apropriar de seu próprio desejo. Mas, enquanto o pri­meiro “sabe o que o outro realmente quer”, o analista, “em­bora ocupando este lugar de suposto conhecimento, o man­tém vazio”.24 Isso leva o filósofo esloveno a concluir que, assim como não existe autoanálise, dado que a mudança analítica só pode se dar por meio da relação transferencial com o analista, um líder é necessário para gerar entusiasmo por uma Causa, para produzir uma mudança radical na posição subjetiva [do povo], para “transubstanciar” sua identidade. 25

Essas três passagens, semelhantes sob muitos aspectos, dife­rem em um ponto essencial: enquanto em Zižek temos a díade analista-analisado, mediada pela transferência, em Guattari e Deleuze temos a tríade analista-analisador-analisado, em que o termo intermediário pode ou não coincidir com o pri­meiro. Essa diferença decorre do tipo de prática clínica que funciona como referência em cada caso: a relação privatizada do consultório no primeiro, a complexidade da análise insti­tucional, no segundo. Por “analisador”, a análise institucio­nal com preende “fenômenos sociais [ … ] que produzem, por sua própria ação (e não por conta da aplicação de uma ciência qualquer), uma análise da situação”,26 ou simplesmente “todo acontecimento, fato, experiência, dispositivo suscetível de re­velar as determinações reais da situação”.27 O termo assinala, assim, tratar-se não de um tipo específico de relação ou de uma posição fixa, definível segundo um conjunto de habilida­des adquiridas ou uma formação profissional, mas algo que é ao mesmo tempo uma função em princípio aberta a qualquer um no interior de um grupo ou configuração institucional e um evento capaz de emergir em qualquer lugar. “A interpre­tação pode ser dada pelo retardado da enfermaria [le débile du service] se ele se puser a protestar no momento em que [ … ] um tal significante [como aquele que ele põe em circulação] puder se tornar operatório no nível do conjunto da estrutura .”28

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O que a interposição desse termo intermediário faz é sub­trair a analogia à relação de apenas duas direções que existe no consultório (que, em política, se traduziria como a oposi­ção entre um líder e uma massa homogênea, indiferenciada) para situá-la no contexto complexo de uma multiplicidade de atores e forças já diferenciadas e diferenciantes (como são o contexto institucional e, em geral, o da política). Dissociar analista e analisador é, justamente, assinalar uma espécie de devir ou função-vanguarda da posição analítica, o que implica, por sua vez, uma radicalização da distinção proposta por Zižek entre o líder totalitário e o analista. Enquanto o filósofo eslo­veno incorre num non sequitur – mesmo que admitamos ser necessário algum tipo de “liderança” para dar forma e direção ao desejo da massa, isso não implica necessariamente que esse líder precise ser “um novo Mestre”, menos ainda um líder in­dividual29 –, na concepção de intervenção política sugerida por Deleuze e Guattari, a função de analista circula na medida em que depende da capacidade das partes de um sistema-rede de, em certos momentos, propor ou funcionar como analisa­dores do todo. A tarefa do analista, em política, seja um indiví­duo ou um grupo, não é prescrever uma ação ao analisado, seja indivíduo, grupo ou massa, mas propor-lhe algo que funcione como um espelho em que este possa se enxergar, e a partir do qual possa se fazer perguntas, aprofundando a consciência de seu próprio desejo e de suas condições, e ampliando, por consequência, sua capacidade de agir sobre a situação dada.

Uma vanguarda não vanguardista seria justamente aquela que ocupasse tal função sem deixar de solapar-se a si mesma como objeto de transferência. Isto é, que visse seu papel como interno ao processo, e, portanto, importante na medida em que o ajuda a progredir, mas igualmente perigoso caso comece a se fixar na posição transcendente de “líder de massa”;30 e que, por isso, resistiria a se destacar como “sujeito suposto sa­ber”, permanecendo no “lugar vazio” do analista e, ao mesmo tempo, aberto a ser substituído a qualquer momento por ana­lisadores mais potentes.

Talvez possamos encontrar um caminho para pensar essa prática não vanguardista da vanguarda por meio do conceito de devir-imperceptível de Deleuze e Guattari. As “três virtudes” enumeradas pelos dois autores (“imperceptível, indiscernível, impessoal”)31 não parecem, à primeira vista, distinguirem­-se do anonimato, da invisibilidade ou da homogeneização. Mais do que isso, elas parecem sugerir exatamente o contrário da ação – uma espécie de passividade ou indiferença. Podemos nos sentir tentados a ver aí, como Peter Hallward, uma ten­dência “espiritual” preocupada com a “desmaterialização” e a “reorientação redentiva de qualquer criatura particular em direção a sua própria dissolução”.32 O que eu gostaria de su­gerir, contudo, é que devemos interpretar o conceito no sen­tido exatamente inverso: ao invés de uma exortação à inação, o devir-imperceptível pode nos oferecer critérios para pensar como agir e/ou liderar melhor.

Nesse sentido, a primeira coisa a salientar é que o conceito se refere a um tipo de ação ou esforço deliberado, não a um mero “seguir o fluxo”. Busca-se devir imperceptível ativamente, optando-se por “suprimir tudo aquilo que nos impedia de deslizar entre as coisas”, “eliminar tudo aquilo que excede o momento, mas botar tudo aquilo que ele inclui”, “reduzir-se a uma linha abstrata, um traço, de forma a encontrar a própria zona de indiscernibilidade com outros traços” .33 Mais que isso, o objetivo final do processo não é desaparecer ou deixar de ser, mas “entrar na hecceidade e impersonalidade do criador”, “fazer mundo, fazer um mundo” – que é algo que se faz não em isolamento, mas “conjugando, continuando outras linhas”.34 Assim, mesmo que uma espécie de “ascese” esteja inegavel­mente envolvida, ela tem a forma de um eliminar toda “super­fluidade” que “enraíza cada um (todo mundo) em si mesmo”. Não se trata de uma fantasia mística de fusão com o cosmos, e sua dimensão destrutiva não é absoluta, mas relativa: ela não é mais a precondição para um novo momento constru­tivo. E, se inicialmente diz-se que o devir-imperceptível é “ser como todo mundo”,35 tampouco se trata de conformismo ou da aurea mediocritas de um meio-termo, mas de uma “invo­lução criadora” que visa “produzir […] um mundo em que é o mundo que devém” .36

Podemos então conceber o devir-imperceptível como um esforço consciente para se manter na posição do “Anomal”, que é a ponta ou o vetor de desterritorialização de uma mati­lha, a propósito do qual Deleuze e Guattari dizem não se tra­tar “nem de indivíduo nem de espécie”, e que ele “não com­porta nem sentimentos familiares ou subjetivados, nem caracteres específicos ou significativos”: “Ele carrega somente afetos”.37 Por “carregar somente afetos” entenda-se: possuir uma sensibilidade aguçada às condições do ambiente e, por consequência, estar mais apto a detectar aí a latência de even­tos que se podem disparar por meio de uma intervenção que proponha questões, problemas, analisadores.

Isso não implica nem uma eliminação do eu, numa espécie de fantasia de fusão com o plano de imanência, nem a con­quista de uma perspectiva puramente objetiva, um God’s eye point of view sobre a totalidade da situação. Se é verdade que Deleuze e Guattari falam de um “plano de imanência que é percebido por sua própria conta”, ele o é “ao mesmo tempo em que é construído”, isto é, de maneira experimental, logo parcial, e não por meio de uma visão sinóptica.38 Construir, isto é: uma ação – não uma contemplação de ares místicos – através da qual se criam e selecionam conexões, produzindo­-se novos caminhos, novas direções.

Dada uma posição subjetiva constituída – meu grupo, minhas crenças, eu mesmo – diante de outras posições subjetivas cons­tituídas, o devir-imperceptível como prática política consiste em saber dar um passo atrás a fim de explorar o fundo comum contra o qual essas posições se situam umas em relação às ou­tras. É um esforço de escuta não daquilo que está sendo dito, mas – como faz o analista – do que não é dito; e também uma escuta direcionada a quem não está falando, mesmo a quem não é sequer identificado como pertencendo à situação ou ao movimento em questão. É subtrair-se às posições e oposições molares que já estão dadas – subtrair-se à representação, neste sentido –— para atentar às comunicações moleculares que lhes são transversais. Esse passo atrás é, então, condição para um novo passo à frente, em que é possível perguntar-se: o que está faltando? O que não está lá? Quais potenciais latentes seriam ca­pazes de transformar este campo e as posições nele recortadas?

O tipo de prática que emerge corresponde àquilo que François Zourabichvili chama de atualizar, em contraste com realizar.39 “Realizar um projeto” é partir de uma imagem ou objetivo dados e trabalhar para moldar o que existe na forma concebida pelo agente. “Atualizar”, por outro lado, significa produzir a partir de potenciais latentes, de modo a criar algo qualitativamente distinto não apenas daquilo que veio antes, mas também daquilo que seria anteriormente imaginável como possível. No primeiro caso, o agente é concebido como externo a uma matéria inerte sobre a qual ele impõe uma ima­gem mental preexistente. No segundo, a matéria é concebida como uma trama de elementos em interação dinâmica, atra­vessada por potenciais, o que faz com que responda à ação, re­sista a ela, desvie-a, acelere-a, de modo que o resultado final seja efetivamente imprevisível.40 “Realizar um projeto não produz nada de novo”, diz Zourabichvili. “Aqueles que preten­dem transformar o real segundo sua ideia previamente con­cebida não levam a transformação em si em consideração.”41

Mais ainda: a matéria sobre a qual o agente intervém não apenas não é passiva, como é o próprio meio em que o agente se move – que age, portanto, de volta sobre ele, podendo inclu­sive transformar aquilo que ele pode desejar ou imaginar. Em vez de controlar esse meio ou determinar seus estados futuros por completo, o objetivo da ação é mais modesto: propor ou induzir uma mudança, introduzir um analisador, criar incen­tivos positivos e negativos capazes de gerar questionamentos e respostas cuja direção é indicada, mas jamais (porque seria im­possível) predeterminada.42 O agente aparece, assim, como um elemento tanto ativo quanto passivo em um meio complexo, e não um sujeito isolado que busca moldar uma matéria inerte conforme uma imagem preconcebida. Daí resulta um enfra­quecimento do investimento narcísico, individual ou de grupo, do agente como herói (“nós, os revolucionários”, “a ala radical”, “a vanguarda”). Nossa ação e identidade deixam de ser con­cebidas como motor ou condição indispensável de qualquer transformação para se situarem em um contexto mais amplo, em que o agente pode se relativizar a ponto de “colocar-se o problema de sua própria morte”43 – isto é, um contexto em que nos tornamos capazes de considerar a parcialidade e os limites de nossa própria intervenção, e até mesmo, conforme o caso, a necessidade de seu desaparecimento ou superação, quando ela se torna supérflua ou contraproducente.

Essa concepção de ação não é apenas mais aberta, ou menos dada a derivas autoritárias; ela também envolve mais atenção às condições da ação, e deste modo tende a ser mais flexível tanto em termos de conseguir estabelecer diálogo quanto de saber antecipar e reagir a mudanças no ambiente. Por mais etéreo que o conceito possa soar, pode-se dizer que o devir–imperceptível, se o compreendemos desta maneira, implica em tornar-se mais realista a respeito de si mesmo e dos verda­deiros potenciais e limites de um processo.

 

CODA

Ahora toca ganar preguntando.44

 

Pode-se perguntar, no entanto, quão original seria conceber a ação que se pretende apresentar aqui como condição para uma prática não vanguardista da vanguarda. Afinal, já se vão 20 anos em que o “caminhar perguntando” zapatista, con­signa antivanguardista por excelência, tem sido uma baliza importante de um sem-número de reflexões sobre a prática política .45 Já não faz duas décadas que o ativismo, assim como a arte, vem sendo pontuado por palavras-chave como “local”, “aberto”, “experimental”, “participativo” etc.?46 Para concluir, gostaria de indicar em seis pontos como o tipo de prática de­lineada aqui pode se diferenciar desses lugares comuns. Ao mesmo tempo, como sugere o slogan “ganhar perguntando”, recentemente proposto na Espanha, talvez possamos dizer que o problema consiste menos em distinguir entre dois ti­pos de prática do que refletir sobre as diferentes formas que a fidelidade ao evento do zapatismo pode tomar – e vem efeti­vamente tomando – nos últimos anos.

  1. Se a experimentação é sempre “local”, no sentido de que sempre parte de um ponto e tem o tamanho que sua capaci­dade de intervenção lhe permite, não se depreende daí que ela pertença necessariamente à pequena Termos como “local” e “molecular” referem-se menos à dimensão ou pro­porção do que ao tipo de relação que estabelecem com o todo. Um devir-molecular – ou anônimo, vanguarda, imperceptí­vel – pode afetar multiplicidades de grandes dimensões; como uma mônada tardeana, ele tende a expandir-se até os limites de sua capacidade. É evidente, por outro lado, que o cresci­mento em escala comporta riscos: a estratificação, a transfor­mação do dinâmico em estático, a representação; quanto mais se cresce, mais cuidado é necessário para manter essas tendên­cias sob controle. Ou seja: o problema da grande escala não é que ela seja moralmente , mas o fato de que ela traz perigos. A oposição entre escalas se dá, portanto, nesse sentido relativo (cálculo de riscos), e não em termos absolutos (valores morais).
  2. É evidente que a “experimentação” não deve ser motivada apenas pelos desejos ou interesses dos agentes que a propõem. Experimenta-se numa situação, como um participante agindo sobre os potenciais que estão nela disponíveis, e não sobre uma situação, como um outsider desinteressado que pode entrar e sair quando bem O devir-imperceptível marca, pre­cisamente, a diferença entre um e outro tipo de intervenção: enquanto o primeiro comporta uma transformação do próprio agente, no segundo o agente mantém sua identidade intocada, o que lhe permite extrair-se do processo a qualquer momento.
  3. Portanto, ser realmente experimental exige rigor na pre­paração de uma intervenção. Talvez devamos passar a pensar o termo “experimental” em sentido científico mais do que artístico. Aquele que experimenta o faz para descobrir algo, não para produzir um resultado predeterminado; porém, ao mesmo tempo, não o faz sem estipular cuidadosamente as condições do experimento, levando em conta aquilo que este exige ou pode envolver, dividindo-o em etapas progres­sivas, buscando antecipar possíveis impasses e revisando seus caminhos, ou mesmo os critérios segundo os quais julgá-lo 47 Mesmo que nada disso esteja imune às transforma­ções que a própria intervenção acarreta, e tampouco se deva ter muito apego a qualquer plano ou projeto, isto significa que experimentar de verdade não é fazer qualquer coisa, e cer­tamente não é uma desculpa para o diletantismo (que supõe, justamente, que a identidade daquele que experimenta não se transforma com a experimentação). A política deve ser “ex­perimental” no sentido de “um ato cujo resultado é desconhe­cido”,48 e não no sentido de estar “sempre experimentando, nunca descobrindo nada, sempre examinando, mas nunca vendo – sempre mudando, sempre permanecendo igual” .49
  4. Também a abertura exige algum grau de estruturação. Pa­rafraseando aquilo que Deleuze e Guattari dizem da música con­temporânea, há sempre um risco de que, enquanto se crê estar abrindo a política “a todos os eventos, todas as irrupções, [ … ] o que se está reproduzindo no fim é uma confusão que impede qualquer evento de acontecer”.50 Pior ainda: nada garante que, diante de coisas deixadas inteiramente em aberto (para que se faça “aquilo que vem naturalmente”), não se acabe reproduzindo padrões de comportamentos entranhados altamente problemá­ticos.51 Por exemplo: uma reunião sem qualquer estrutura pode facilmente acabar sendo controlada por algumas pessoas com mais experiência, ou não conduzir a nada além de frustração; ela não é necessariamente mais aberta que uma reunião bem estru­turada. A solução está sempre em tentar manter um máximo de tensão: suficiente estrutura para que as coisas funcionem (tanto quanto a tarefa exigir), mas sem sufocar a transversalidade das relações e a possibilidade do imprevisível. Trata-se de garantir o contexto para que todos possam “tocar o que não está lá”.
  5. A complexidade de uma questão é proporcional à profun­didade do questionamento pretendido. Por maiores que sejam o trabalho e os riscos envolvidos, em última análise, é mais fá­cil promover uma plataforma ou ocasião para que as pessoas se unam em torno de uma demanda negativa ou indetermi­nada – “Ben Ali, dégage”, “o povo quer que o regime se vá”, “se a tarifa não baixar, a cidade vai parar” – do que dar partida a um processo por meio do qual um conteúdo positivo possa ser determinado. Nesse último caso, um experimentalismo mais estruturado tende em geral a se fazer necessário.
  6. “Fazer perguntas” não deve ser tomado em sentido literal. Uma estratégia bem planejada, uma ação improvisada, um texto amplamente difundido, um trabalho de arte bastante conhecido podem ser muito mais efetivos para provocar respostas e fazer o papel de função-vanguarda ou analisador do que algo excessi­vamente vago ou ostensivamente formulado como interrogação.

Por exemplo: independentemente do que se pense a respeito, a ocupação da sede do Partido Conservador britânico em 10 de novembro de 2010 instigou uma mudança qualitativa no movi­mento estudantil inglês daquele período, a qual se manifestou na série de ações e ocupações dos meses seguintes .52 Nesse sentido, por mais que tenha sido uma surpresa na época, e que os meios de comunicação o tenham demonizado, aquele gesto foi uma pergunta que funcionou.

Que uma ação que foi bastante divisiva à época tenha energi­zado e radicalizado aquele movimento, transformando-o em algo bastante distinto do que tinha sido ou prometera ser até ali, nos leva a uma questão levantada por Jodi Dean, que mais recente­mente também tem explorado os paralelos entre a psicanálise e a política. Para ela, o que importava em Occupy Wall Street, por exemplo, não era a suposta superação da representação ou a plu­ralidade e inclusividade, pois ela é “perfeitamente compatível” com o que chama de “capitalismo comunicativo”. 53 Além disso, segundo Dean, a crença de que cada indivíduo só pode falar por si mesmo (porque “apenas o indivíduo pode conhecer e representar claramente seus interesses”), de que ninguém pode falar em nome do movimento ou de que o movimento deve buscar ser indefini­damente inclusivo denega tanto “as maneiras como os sujeitos são internamente divididos, não inteiramente conscientes dos desejos e pulsões que os motivam”, quanto a realidade da “divisão entre pessoas”, isto é, diferenciais de poder, classe, oportunidades, prestígio etc .54 “A sociedade capitalista já é dividida”, motivo pelo qual não se pode ignorar a divisão ou fazer de conta que ela não está lá.55 Por isso, o verdadeiro feito de Occupy estaria em oferecer uma “nova política da representação” por meio da “ativa e autole­gitimante afirmação da divisão”, na qual “a divisão não é apagada, deslocada ou superada” mas “afirmada e conectada ao antago­nismo fundamental do capitalismo: a luta de classes”.56

Podemos usar o exemplo da ocupação da sede do Partido Con­servador em Londres para corroborar esse argumento, demons­trando que, de fato, um movimento não só não deve temer como pode mesmo abraçar a produção ou asserção de divisões, a come­çar por aquela que o separa daquilo a que diretamente se opõe – e, portanto, os antagonismos fundamentais que o levam a ser o que é e que se tornam visíveis nele. Não é pelo fato de a agência política pensada como atualização ser mais modesta (se comparada com a suposta onipotência de uma subjetividade pensada como do­mínio) que devemos concluir que os objetivos devem ser sempre acanhados ou que as ações devam ser sempre cautelosas. Justa­mente porque o meio em que o agente intervém é dinâmico –, isto é, não linear –, não há como conhecer de antemão todos os seus potenciais e, portanto, nem a quantidade de força necessária para fazer o que quer que seja, nem a dimensão dos efeitos que uma ação qualquer pode produzir. Mas, por isso mesmo, ainda que se esteja de acordo com a necessidade de afirmar e produzir divisões, questões importantes se impõem a respeito de como fazê-lo: onde e como cortar.

“Ao negar a oposição fundamental que divide [Occupy] da po­lítica que o precedeu”, escreve Dean, “a celebração da multiplici­dade procede como se fôssemos exatamente a mesma coleção de indivíduos, com as mesmas posições e opiniões de antes”. Dessa forma, prossegue, “os participantes são encorajados a enfatizar suas opiniões individuais ao invés de cultivar uma opinião geral, coletiva.”57 É inegável que uma certa “desconfiança em relação à coletividade ”58 esteja em ação aí. Mas considerá-la um obstá­culo político a ser simplesmente removido para poder avançar pressupõe, como a passagem parece sugerir, que o evento se dá todo de uma vez e que, nesse caso, o evento já se deu – uma di­visão clara e inequívoca entre antes e depois está dada, faltando apenas reconhecê-la. Contudo, não é justamente um dos prin­cipais desafios da prática política, bem como uma das fontes da ansiedade em relação à coletividade, o fato de que o evento não se dá todo de uma vez, atualizando-se diferentemente em dife­rentes pessoas? A composição entre os diversos modos como se atualiza e os múltiplos sentidos que lhe são atribuídos não são precisamente aquilo que faz do evento algo que efetivamente segue acontecendo –— isto é, que permanece sendo público e comu­nicável, e do qual, em princípio, todos podem se tornar sujeitos, em vez de objeto fixo de uma interpretação feita a partir de uma perspectiva privilegiada?

Em outras palavras, o fato de que não possamos abrir mão das divisões não necessariamente nos diz quais divisões afirmar nem como fazê-lo – embora talvez possamos dizer desde já como não fazê-lo: de modo vanguardista.

Vejamos o que escreve o ativista egípcio Wael Ghonim, criador da página de Facebook Somos Todos Khaled Said”, que teve um papel importante na mobilização dos protestos de janeiro de 2011:

Havia muitos ativistas mais atuantes, corajosos e radicais, e algumas
das outras páginas que desafiavam o regime inicialmente tinham mais seguidores. Mas no fim era o grande meio da população que precisava superar seus medos e acreditar que a mudança seria possível. Eu con­seguia me comunicar com aquele meio porque eu era um deles. 59

As memórias de Wael Ghonim são fascinantes por uma série de motivos, entre eles o fato de que, em que pese sua insistência no sentido contrário, ele parece sair do processo com suas con­vicções políticas relativamente inalteradas. Mas aqui ele aponta para uma questão extremamente importante para um “ativismo de código aberto”: se ele era capaz de encontrar as pessoas “na metade do caminho”, era porque ele mesmo estava “na metade do caminho”. Um dos sentidos de se pensar um devir-vanguarda como devir-anônimo e devir-imperceptível é, em última aná­lise, o de desenvolver a capacidade de se tornar suficientemente “na metade do caminho” para encontrar as pessoas –— ou melhor, encontrar não quem elas já são, mas quem elas podem se tornar. Não é deixar de impor divisões, mas fazê-lo de tal modo que es­tas não se tornem uma imposição de si mesmo, a afirmação da própria identidade, em vez de um problema realmente colocado para (e envolvendo) o outro. É tornar-se suficientemente dester­ritorializado, de maneira a poder enxergar-se, por assim dizer, “de fora”, e, assim, revisar e adaptar a própria posição – descobrindo­-se, portanto, o grau certo de tensão a introduzir no ambiente a cada momento, para modulá-lo. Podemos dizer que a política é a arte de encontrar as pessoas na metade do caminho; mas, justa­mente por isso, onde fica a metade do caminho é o que é preciso renegociar a cada instante.

 

RODRIGO NUNES (1978) é professor de filosofia moderna e contemporânea no Departamento de Filosofia da Universidade Católica do Rio de Janeiro (puc-Rio). Autor de Organisation of the Organisationless. Collective Action After Networks (Mute, 2014), recentemente editou um dossiê sobre o cenário político brasileiro após os protestos de 2013 para Les Temps Modernes. Foi o segundo colocado no Prêmio de Ensaísmo serrote de 2011, com “Terra em transe, cinema e política: 45 anos”. Este texto é a tradução de um artigo que será publicado na próxima edição da revista Rue Descartes.

O artista conceitual RIRKRIT TIRAVANIJA (1961) nasceu em Buenos Aires e vive hoje entre Nova York, Berlim e a Tailândia. Conhecido por performances e instala­ções, Tiravanija tem obras nos acervos dos principais museus de todo o mundo, incluindo o Palm Pavillion montado em Inhotim. Os Demonstrations Drawings reúnem mais de 200 desenhos realizados por jovens artistas tailandeses a partir de fotos de manifestações publicadas no International Herald Tribune.

 

NOTAS

 

1 Militante do Movimento Passe Livre, citado em: Peter Pál Pelbart, “Anota aí: eu sou ninguém”, Folha de S.Paulo, 19.07.2013. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/119566-quotanota-ai-eu-sou­ninguemquot.shtml.

2 Ver, por exemplo, Harry Cleaver, “The Zapatistas and the Electronic Fabric of Struggle”, in: John Holloway e Eloína Peláez, Zapatista! Reinventing Revolution in Mexico. Londres: Pluto, 1998.

3 “Sistema-rede” designa um sistema de diversas redes – de indivíduos, de grupos (temporários ou permanentes, formais ou informais), de perfis (individuais, coletivos, pseudônimos) em plataformas digitais, páginas web, espaços físicos etc. – que compõem uma série de camadas que interagem entre si sem que possam ser reduzidas ou superpostas umas às outras, e cujas partes também são redes. É isso que faz do sistema-rede ao mesmo tempo meio transindividual de comunicação e contágio afetivo. Ver Rodrigo Nunes, Organisation of the Organisationless. Collective Action After Networks. Londres: Mute/PML Books, 2014.

4 Subcomandante Marcos, “Tomorrow Begins Today: Closing Remarks at the First Intercontinental Encuentro for Humanity and Against Neoliberalism”, in Our Word Is Our Weapon: Selected Writings. Nova York: Seven Stories, 2002, p. 115.

5 Ver: Notes from Nowhere, We Are Everywhere: The Irresistible Rise ofGlobal Anticapitalism. Londres: Verso, 2003, pp. 304-306.

6 Pierre Clastres, La Société contre lÉtat. Recherches d’anthropologie politique. Paris: Minuit, 1974, p. 41.

7 Desenvolvo essas ideias em mais detalhes em Rodrigo Nunes, “The Network Prince. Leadership Between Clastres and Machiavelli”, International Journal of Communication. Los Angeles, v. 9, 2015, pp. 3662-3679.

8 Primeiro tweet de @acampadasol, anunciando a decisão de acampar na Puerta del Sol depois da manifestação do dia 15 de maio de 2011.

9 Rodrigo Nunes, Organisation of the Organisationless, op. cit.

10 Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980, p. 298.

11 Ver David Graeber, “The Twilight of Vanguardism”, in Jai Sen et al., World Social Forum: Challenging Empires. Nova Délhi: Viveka Foundation, 2004, pp. 329-335.

12 Ver especialmente o capítulo 6 de Michael Hardt e Toni Negri, Commonwealth. Cambridge: Harvard University Press, 2009. Ver também Rodrigo Nunes, “Entre Negri y Lalau: los límites de la multitud”, in: Políticas de la Memoria, n. 16, pp. 39-49.

13 Jodi Dean, The Communist Horizon. Londres: Verso, 2012, p. 229.

14 Alain Badiou, Circonstances 6. Le réveil de l’histoire. Paris: Lignes, 2011, p. 90.

15 Ibidem, p. 134.

16 Ibidem. Itálico no original.

17 Ibidem, p. 104.

18 Ver Mariana Santos e Silvio Pedrosa, “Corps en Mouvement: les black blocs à Rio et les représentations de la résistance”. Les Temps Modernes, n. 678, 2014, pp. 85-88.

19 Frase do cartaz veiculado na edição de julho de 2011 da revista canadense AdBusters, que, efetivamente, lançou o nome Occupy Wall Street, a hashtag #OccupgWallStreet e a data – escolhida arbitrariamente por ser o aniversário da mãe de Kalle Lasn, editor da revista – em que o movimento que se apropriou daquele meme efetivamente iniciaria.

20 É assim que o baixista Dave Holland descreve a abordagem de Miles Davis dos músicos com quem trabalhava: “o que ele estava dizendo era ‘Não toque o que está lá. Toque o que não está lá…’ ‘Não toque aquilo em que seus dedos caírem… Toque outra coisa. Não toque aquilo que você normalmente faria. Toque o que vier depois disso.’ Ele estava sempre querendo pôr você em um espaço em que abordasse a música sempre do mesmo ponto de vista, ou de um ponto de vista preconcebido.” Citado em Ian Carr, Miles Davis. The Definitive Biography. Londres: Harper Collins, 1998, p. 247.

21 Félix Guattari, “L’Étudiant, le fou et le Katangais”, in: Psychanalyse et Transversalité. Paris: La Découverte, 2003, p. 238.

22 Gilles Deleuze, “Trois Problèmes de Groupe,” in L ’Ile déserte. Textes et entretiens 1952-1974. Paris: Minuit, 2004, pp. 278-279. Itálico no original.

23 Slavoj Žižek, The Parallax View. Cambridge: MIT Press, 2009, p. 381. Itálico no original.

24 Ibidem.

25 Ibidem. Modificado.

26 René Lourau, L’Analyseur lip. Paris: UGE, 1974, p. 13.

27 Idem, Analyse institutionnelle et pédagogie. Paris: EPI, 1972, p. 16.

28 Félix Guattari, op. cit., p. 79. A análise institucional à qual se filiava o trabalho de Guattari em La Borde funda-se precisamente na ideia de que os psiquiatras não devem ser os únicos analistas num contexto institucional, e que eles não devem permitir que sua posição institucional se torne um obstáculo ao processo analítico que, em princípio, se realiza em – e é realizado por – toda a instituição.

29 Ver aquilo que diz Slavoj Žižek sobre a oposição que alguns fazem entre a figura de caudilho de Hugo Chávez e a auto-organização popular que vicejou sob seu governo: “O erro dessa posição está em pensar que é possível ter a segunda sem a primeira: o movimento popular precisa da figura identificatória do líder carismático.” Slavoj Žižek, “A Leninist Gesture Today: Against the Populist Temptation”, in Sebastian Budgen, Stathis Kouvelakis e Slavoj Žižek, Lenin Reloaded: Toward a Politics of Truth. Durham: Duke University Press, 2007, p. 97. Itálico no original.

30 Gilles Deleuze e Félix Guattari, op. cit., pp. 46-47. Conforme os autores esclarecem, eles utilizam a palavra “massa” em dois sentidos diversos: por um lado, segundo sua leitura (não exatamente fiel) do conceito tal como empregado por Elias Canetti, que é o relevante para a passagem recém-citada; por outro, segundo a distinção maoísta entre “classes” e “massas”, em que “massa é uma noção molecular que procede por meio de um tipo de segmentação irredutível à segmentaridade molar da classe”. Ibidem, p. 260. Itálico no original. Ver Elias Canetti, Crowds and Power. Tradução de C. Stewart. Nova York: Continuum, 1981.

31 Gilles Deleuze e Félix Guattari, op. cit., p. 343.

32 Peter Hallward, Out of This World. Deleuze and the Philosophy of Creation. Londres: Verso, 2006, p. 3.

33 Gilles Deleuze e Félix Guattari, op. cit., pp. 343-344.

34 Ibidem, p. 343.

35 Ibidem, p. 342.

36 Ibidem, pp. 342-343. Podemos comparar esse ponto com aquilo que Frédéric Gros, examinando os manuscritos inéditos produzidos por Foucault em torno de seu curso de 1981-1982 no Collège de France, tem a dizer sobre a anacorese (retiro) dos estoicos: “O autêntico retiro, exigido pelo cuidado de si, consiste em dar um passo atrás em relação às atividades em que se está envolvido sem deixar de participar delas, de modo a manter entre si mesmo e suas ações a distância constitutiva de um estado de vigilância necessário. […] O cuidado de si não é, portanto, um convite à inação, mas justo o contrário: aquilo que nos incita a agir bem, que nos constitui como sujeitos verdadeiros de nossos atos. Ao invés de ser aquilo que nos isola do mundo, é aquilo que nos permite situarmo-nos corretamente nele.” Frédéric Gros, “Situation du Cours”, in Michel Foucault, Alessandro Fontana e Frédéric Gros, Herméneutique du sujet. Cours au Collège de France, 1981-1982. Paris: Gallimard/ Seuil, 2001, p. 518.

37 Gilles Deleuze e Félix Guattari, op. cit., p. 299.

38 Ibidem, p. 348.

39 François Zourabichvili, “Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política)”, in Éric Alliez, Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000, pp. 333-355.

40 Não é difícil reconhecer nessa distinção deleuziana a influência de Gilbert Simondon e sua crítica do esquema hilemórfico: “A operação de tomada de forma não supõe somente matéria bruta e forma, mas também energia”, e é “o sistema energético [como um todo] que é individuante, na medida em que realiza em si essa ressonância interna da matéria em processo de tomar forma […]. O princípio de individuação é o modo único em que se dá a ressonância interna desta matéria [com suas “formas implícitas”] no processo de tomar esta forma”; ele é “uma operação”. Gilbert Simondon, L’Individuation à la lumière des notions de forme et d’information. Grenoble: Jérôme Millon, 2005, pp. 45 e seguintes. A oposição simondoniana entre um “esquema forma-matéria” e um “esquema dinâmico, matéria dotada de singularidades-forças ou condições energéticas” é vivamente elogiada por Gilles Deleuze e Félix Guattari, op. cit., p. 457, nota 28.

41 François Zourabichvili, op. cit., p. 337.

42 Seria interessante comparar essa concepção da política àquela delineada por Yves Citton em termos de “impulsos” ou “empurrões” [poussées]. Ver Yves Citton, Mythocratie. Storytelling et imaginaire de gauche. Paris: Amsterdam, 2010.

43 Félix Guattari, “Le Groupe et la Personne (Bilan Décousu)”, in: op. cit., p. 169.

44 Slogan da “iniciativa cidadã” Barcelona en Comú – naquele momento ainda chamada Guanyem (Ganhemos) –, que viria mais tarde a conquistar a prefeitura de Barcelona nas eleições municipais de maio de 2015. Ver Guanyem Barcelona, “Ara Toca Guanyar’, 9 set. 2014, disponível em: www.youtube. com/watch?v=v5Bqh-2fsyU.

45 Ver Subcomandante Marcos, “La Historia de las preguntas”, La Jornada, 13 dez. 1994, disponível em: palabra.ezln.org.mx/comunicados/1994/1994_12_13.htm.

46 É uma aproximação bastante sintomática. Poderíamos sugerir que, em vez de uma imitação mútua, o que houve foi uma convergência progressiva: quanto mais o ativismo se estetizava ou desfuncionalizava (perdia a relação com resultados concretos), mais se assemelhava à prática artística; quanto mais se tornava simbólico, aludindo à política no lugar de fazê-la, e assim perdendo algo do que poderia ter de ameaçador, mais facilmente o campo da arte podia incorporá-lo e reproduzi-lo.

47 Em última análise, a oposição entre realizar e atualizar exige alguma nuance. Em vez de uma descontinuidade clara e marcada entre uma sensibilidade inconsciente (atualizar) e uma intencionalidade consciente (realizar), devemos deixar espaço em ambos os casos para diferentes proporções entre sensibilidade e intencionalidade (ou seja, diferenças de grau, não de natureza). Aquele que atualiza, ainda que não se aferre a uma imagem preconcebida do resultado de sua ação, não deixa de operar com algo como um “faro” ou uma “aposta”: uma imagem que entra em foco no decurso da própria atualização, não inteiramente indeterminada, mas em via de determinar-se no decurso do próprio experimento. Conversamente, a imagem que se pretende realizar nunca é inteira e exaustivamente determinada; a diferença reside menos no fato de que possua contornos mais definidos do que no compromisso do agente em garantir a qualquer custo a semelhança entre ela e o resultado final.

48 John Cage, citado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’Anti-Œdipe. Paris: Seuil, 2002, p. 445.

49 Michal Goldman, citada por Kathie Sarachild, “Consciousness-Raising: A Radical Weapon”, c. 1978. Disponível em: organizingforwomensliberation. wordpress.com/2012/09/25/ consciousness-raising-a­radical-weapon/.

50 Gilles Deleuze e Félix Guattari, op. cit., p. 424.

51 É nesses termos que Pierre Boulez questiona o quanto de novidade pode realmente emergir da improvisação livre, apontando o risco de que esta recaia em padrões convencionais. Ver Pierre Boulez, Par volonté et par hasard. Paris: Seuil, 1975, pp. 150-152.

52 The Free Association, “On Fairy Dust and Rupture”. Disponível em: freelyassociating.org/on-fairy-dust­and-rupture/.

53 Jodi Dean, op. cit., p. 224.

54 Ibidem, pp. 226-227. Itálico no original.

55 Ibidem, p. 224.

56 Ibidem.

57 Ibidem, p. 220. Modificado.

58 Ibidem, p. 235.

59 Wael Ghonim, Revolution 2.0. A Memoir. Londres: Fourth Estate, 2012, p. 293.

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