Macumba – por Luiz Antonio Simas

Macumba

Por LUIZ ANTONIO SIMAS

Neste verbete publicado na serrote #27, o historiador Luiz Antonio Simas investiga as origens e a potência da palavra “macumba”,  ainda vista com preconceito em um país estruturalmente racista

Simas é um dos convidados do Festival Serrote 2020, que acontece nos dias 13 e 14 de março, no IMS Paulista. Ele participa da Serrote ao Vivo, edição especial da revista concebida para o palco, e do debate “Contra a intolerância religiosa”, com o pastor Henrique Vieira e mediação de Stephanie Borges. Confira a programação completa no site do Festival Serrote

Ritual de umbanda em cachoeira, c. 1957. Foto de Marcel Gautherot / Acervo IMS

 

No famoso capítulo 7 de Macunaíma, Mário de Andrade descreve a visita do herói sem nenhum caráter a uma macumba para Exu realizada no zungu de Tia Ciata. No final do capítulo, Mário cita alguns dos macumbeiros presentes à jira: Jayme Ovalle, Manuel Bandeira, Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira, Raul Bopp, Geraldo Barrozo do Amaral e Antonio Bento. Poucos anos após a publicação de Macunaíma, Cecília Meireles expôs seus desenhos da coleção Batuque, Samba e Macumba no Salão da Pró-Arte, no Rio de Janeiro. Criada no bairro do Estácio de Sá, berço do samba urbano carioca e com uma concentração significativa de terreiros de umbanda, Cecília realizou no ano seguinte uma série de conferências em Portugal sobre o assunto.

Na mesma época, a expressão “macumba” chegava com força à nascente indústria fonográfica brasileira. Em outubro de 1930, por exemplo, Eloi Antero Dias (o Mano Eloi) e Getúlio Marinho (o “Amor” do Estácio) gravaram, acompanhados pelo Conjunto Africano, a faixa “Macumba (Ponto de Ogum)”. Em agosto de 1940, o alufá José Espinguela gravou a bordo do navio Uruguai as faixas “Macumba de Oxóssi” e “Macumba de Iansã”, lançadas no álbum Native Brazilian Music.

Os exemplos acima registram o uso corrente da expressão “macumba” para fazer referência, com muita frequência e especialmente no Rio de Janeiro, aos cantos e encontros litúrgicos brasileiros de origem africana.

Recentemente, diversos praticantes de religiões brasileiras de fundamentos afro-ameríndios, na justa luta contra o preconceito religioso em tempos difíceis, começaram a compartilhar nas redes sociais a informação de que a palavra “macumba” designa um instrumento africano de percussão, e não uma ritualística sagrada. Segundo os que aderiram a essa corrente, o uso do termo em sentido litúrgico é equivocado e pejorativo.

A preocupação atual dos religiosos com o uso pejorativo da expressão se deve, é claro, à carga de preconceito a ela atribuída em um país estruturalmente racista. A desqualificação dos cultos não cristãos vem geralmente acompanhada de adjetivos como “bárbaros”, “folclóricos” ou “pitorescos”. Eles seriam destituídos de fundamentos complexos e inca- pazes de produzir cosmogonias e visões de mundo que ultrapassem o limite das práticas curativas, simpatias, quebrantos etc.

No livro Pele negra, máscaras brancas, Frantz Fanon chama atenção para um fato: o racismo herdado do colonialismo se manifesta explicitamente pelo viés das características físicas, mas não apenas assim. A discriminação também se estabelece pela inferiorização de bens simbólicos daqueles que o colonialismo tenta subjugar: crenças, danças, visões de mundo, formas de celebrar a vida, de enterrar os mortos, de educar as crianças e assim por diante.

O discurso do colonizador europeu sobre os indígenas e os povos da África consagrou a ideia de que estes seriam naturalmente atrasados, despossuídos de história. Apenas elementos externos a eles – a ciência, o cristianismo, a democracia representativa, a economia de mercado, a escola ocidental – pode- riam inseri-los naquilo que imaginamos ser uma maiúscula História da humanidade.

É dentro dessa tensão normatizadora que mora a maior das perversidades: o discurso canônico tenta convencer os inferiorizados da suposta supremacia natural de alguns saberes. Com requintes de devastação, inclusive no campo emocional, ele faz com que a vítima em potencial introjete a visão que a inferioriza como uma verdade absoluta. Acredito que o preconceito contra a macumba e o repúdio ao adjetivo “macumbeiro” se inserem nessa teia ardilosa do racismo brasileiro.

O instrumento macumba é uma espécie de reco-reco tocado com duas varetas, uma fazendo o grave e outra, o agudo. O termo tem provável origem no quimbundo mukumbu, que significa “som”. Foi relativamente popular na época dos pioneiros do samba, e João da Baiana falava com frequência de sua importância. Macumbeiro, portanto, é o instrumentista que toca macumba. Mas é só isso?

Macumba é instrumento, não se discute isso, mas designa também um conjunto de rituais religiosos resultantes do amálgama tenso e intenso de ritos de ancestralidade dos bantos centro-africanos, calundus, pajelanças, catimbós, encantarias, cabocladas, culto aos orixás iorubanos, arrebatamentos do cristianismo popular, espiritismos e afins. A confusão entre o instrumento e as práticas religiosas deve-se, provavelmente, a um compreensível problema de etimologia.

O grande filólogo e etimólogo Antenor Nascentes, em seu Dicionário etimológico da língua portuguesa, segue Raymundo Jacques (que escreveu a obra de referência O elemento afronegro na língua portuguesa, em 1933) e afirma que “macumba”, no sentido dos ritos, vem do quimbundo dikumba – “cadeado” ou “fechadura” –, referindo-se a cerimônias secretas de fechamento dos corpos. Nei Lopes, profundo conhecedor do assunto e autor do Dicionário banto do Brasil, defende que o termo vem do quicongo kumba – “feiticeiro” (o prefixo ma, no quicongo, forma o plural). Outros especialistas indicam que a origem é mesmo esta última, como menciona Robert Slenes em seu estudo sobre o jongo.

A expressão “macumba”, portanto, pode designar tanto uma espécie de reco-reco como as cerimônias religiosas. A etimologia, porém, é distinta nos dois casos: a primeira deriva do quimbundo e a segunda, do quicongo.

Para os leitores sentirem como a etimologia das línguas banto é complexa, dou mais alguns exemplos. Enquanto kumba, no quicongo, é “feiticeiro”, em umbundo designa tanto o conjunto de serviçais domésticos como um grupo de familiares que moram num mesmo cercado. Kumbi, no quimbundo, é “sol”. No quioco, língua que também forma o plural com o prefixo ma, é “gafanhoto”; makumbi, portanto, designa um bando de gafanhotos. O complexo cultural banto, expresso na sofisticação e variedade de suas falas, é desafiador e faz cair por terra a visão produzida pelo colonialismo de que a África é uma unidade.

Macumba, a rigor, é uma palavra em disputa. Recentemente entrei nessa querela e escrevi um pequeno texto definindo-me como macumbeiro e apresentando o que a expressão significa em uma espécie de dicionário particular e fabuloso que redijo sem qualquer pressa. Cito:

“Macumbeiro: definição de caráter brincante e político que subverte sentidos preconceituosos atribuídos de todos os lados ao termo repudiado e admite as impurezas, contradições e rasuras como fundantes de uma maneira encantada de encarar e ler o mundo no alargamento das gramáticas. O macumbeiro reconhece a plenitude da beleza, da sofisticação e da alteridade entre as gentes. A expressão ‘macumba’ vem muito provavelmente do quicongo kumba, ‘feiticeiro’. Kumba também designa os encantadores das palavras, poetas. Macumba seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor maneiras plurais de reexistência e “descacetamento” urgente pela radicalidade do encanto, em meio às doenças geradas pela retidão castradora do mundo como experiência singular de morte.”

 

Luiz Antonio Simas (Rio de Janeiro, 1967) é um historiador que se dedica sobre tudo às culturas populares do Brasil. É autor de, entre outros livros, O corpo encantado das ruas (Civilização Brasileira, 2019), Dicionário de história social do samba (José Olympio, 2015), com Nei Lopes, e Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas, com Luiz Rufino (Mórula, 2018).

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