As Memórias póstumas de Brás Cubas na Revista Brasileira

Com uma diferença, entretanto: o que é levado a sério nas páginas da revista (que, aliás, é muito pobre em humor), é elevado ao absurdo risível no corpo da narrativa de Machado. Não por obra da sátira aberta ou amena, que afinal seria apenas mais um jogo de letrados, mas antes, como sugeriu Roberto Schwarz, por obra da arte astuciosa de mimetizar os modos e a falta de modos, verbais e não-verbais, de certos tipos sociais brasileiros. O que os exemplos acima sugerem é que algo dessa estratégia literária foi, não determinada, mas sugerida a Machado pela convivência, promíscua e fértil, do romance com a revista. Num efeito de mise-en-abîme, a figura de Brás Cubas com sua “singular volubilidade” seria, entre outras coisas, a redução, a suma maliciosa e paródica dos colaboradores que a Revista Brasileira reunia a cada novo número.

Um exemplo curioso pode dar ideia do alcance desse modo de escrita. Como já vimos, faltam à edição serializada das Memórias a nota “Ao leitor” e a dedicatória: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadá­ver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. A frase, de intenção fúnebre e solene, acaba por soar estapafúrdia em sua mistura de pompa, sentimentalismo e inverossimilhança.

Pois bem, ao final do número de 1 de março, nas páginas que precedem o início da publicação das Memórias, a Revista Brasileira publicara “Flores funestas”, um buquê de poemas de Teófilo Dias. O último destes, “A esfinge”, terminava assim: “Eu te amo, beleza fátua, / Minha perpétua loucura, / Como o verme a flor mais pura, / E o musgo a mais bela estátua”. Não há como ser taxativo nes­sas coisas, mas é bem plausível que o verme homenageado nas Memórias seja parente deste outro verme contíguo que ama e corrompe a flor mais pura, que o gesto retórico de Brás Cubas aluda parodicamente à pose satanista de Teófilo Dias e que, estendendo o raciocínio, Machado tenha trazido a revista não só para dentro do relato mas também para dentro do próprio livro. Alguma evidência histórica e filológica aponta nessa direção.

O maranhense Teófilo Dias (1854-1889), sobrinho de Gonçalves Dias, pertenceu, ao lado de Carvalho Jr., Fon­toura Xavier e Afonso Celso Jr., ao grupo de jovens poetas de fins da década de 1870 que Antonio Candido estudou em A educação pela noite3 e que Machado de Assis comentou no calor da hora na resenha “A nova geração”, publicada jus­tamente na Revista Brasileira de 1 de dezembro de 1879. Em sua vida breve, Teófilo Dias morou no Rio de Janeiro – onde travou relações com Machado –, bacharelou-se em direito em São Paulo e publicou quatro volumes de poesia: Lira dos verdes anos (1878), Cantos tropicais (1878), Fanfarras (1882) e A comédia dos deuses (1887).

Em seus poemas, como nos de seus companheiros, a recusa do lirismo romântico se traduz na adesão a um sata­nismo de sabor baudelairiano, conjugado a certa apoteose do amor carnal em tudo estranha à melancolia corrosiva do poeta francês. Candido fala de “satanismo atenuado e sexua­lidade acentuada”: um verso de “Antropofagia”, de Carvalho Jr., por exemplo, fala de “vermes sensuais” que se distanciam, em sua encarnação brasileira, da “vermine / qui vous mangera de baisers” das Flores do mal e que por vezes se aproximam da mera grosseria; o lamento de um torna-se o elogio do “amor­devoração” no outro. Sobre o mesmo poema, Machado comentava no artigo sobre “A nova geração”, com ar de quem enumera lugares-comuns: “Lá estão, naquela mesma página, as fomes bestiais, os vermes sensuais, as carnes febris”. O gosto jovem entendia “realismo” meramente como “expressão de certa nota violenta”, comentava Machado, para arrematar, a propósito da filiação do grupo a Baudelaire: “não sei se diga que a imitação é mais intencional do que feliz. O tom dos imitadores é demasiado cru.” Aliás, não era outra “a tradição de Baudelaire entre nós”; “tradição errônea”, que trazia “o perigo de reproduzir os adema­nes, não o espírito, a cara, não a fisionomia”.

De modo que, à mesma altura em que trabalhava nas Memórias póstumas e refletia sobre o sentido do realismo na literatura, Machado debruçava-se igualmente sobre os poemas de uma geração que “carrega[va] a mão”. Não é nada descabido, portanto, pensar que, na página inicial do livro, Machado deu vazão a sua desconfiança diante dos “ademanes” da “nova geração”, encarregou seu defunto narrador de imitar os imitadores, reiterou o verme das “Flores funestas” no verme da dedicatória e, assim fazendo, fez de Brás Cubas, moço bem-nascido mas em tudo cru, um avatar possível de Teófilo Dias ou Carvalho Jr. – e vice-versa. Vale lembrar que o próprio Brás Cubas volta e meia lança mão da metáfora, como quando reencontra Marcela, a beleza destruída pelas bexigas que lhe “escalavraram” o rosto e a alma tomada pela “paixão do lucro, que era o verme roedor daquela existência”.

Em “Posto de gasolina”, primeiro fragmento de Rua de mão única, Walter Benjamin afirmava que o exercício da inteligência, a “verdadeira atividade literária”, já não podia se dar apenas “dentro de molduras” tradicionais e devia “cultivar as formas modestas”, como “folhas volantes, brochuras, artigos de jor­nal e cartazes”, mais pertinentes e efetivas que “o pretensioso gesto universal do livro”. Essa “linguagem de prontidão” era a única a se mostrar à altura dos tempos. Com os ajustes devidos, digamos que Machado de Assis intuiu, no Rio de Janeiro de 1880, algo do que Benjamin formulou na Berlim de 1928. E o intuiu não teoricamente, mas no coração de sua própria variante de “lingua­gem de prontidão”. Com as Memórias, Machado abriu os vasos comunicantes entre o livro e o periódico, trouxe a impureza deste para a composição daquele e, ao mesmo tempo, produziu uma visão desconcertante da Revista Brasileira e de seu mundo no espelho cômico e autorreflexivo do romance.

Não foi uma intuição passageira. Mesmo ao abandonar, depois de Quincas Borba e de Casa Velha, a prática da serialização, Machado conservou nos três romances finais, publicados diretamente em forma de livro, o capítulo curto, a alusão contemporânea, as formas narrativas marcadas a fundo pelo tempo dissolvente que vai passando enquanto se escreve o livro, como no quase diário de Bento Santiago ou no memorial do conselheiro Aires. Para fazer à moda de Machado e citar um ensaio estampado nesta mesma revista que o leitor tem em mãos (cf. Carlo Ginzburg, “David, Marat. Arte, política, religião”), digamos que por essa como por outras vias Machado introduzia a contingência no processo compositivo – e um primeiro sabor moderno na literatura brasileira.

 

SAMUEL TITAN JR. é tradutor, professor de literatura comparada na Universidade de São Paulo e membro da comissão editorial de serrote.

 

1. Todas as citações das Memórias póstumas são tiradas da Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, vol. I.

2. Vale a pena o exercício de ler qualquer edição moderna das Memórias com um olho na partição original dos capítulos. Deixando-se de lado os poucos cortes e fusões de capítulo que Machado introduziu para a edição em livro e que fazem com que o número de capítulos seja diferente na revista e no livro, os capítulos (referidos segundo a numeração atual) dividiam-se assim: 1-9, 10-14, 15-22, 23-28, 29-34, 35-42, 43-52, 53-61, 62-70, 71-83, 84-90, 91-99, 100-109, 110-123, 124-138, 139-150, 151-160.

3. Cf. “Os primeiros baudelairianos”, in Antonio Candido, A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006 [1987]; o mesmo crítico organizou uma antologia de Teófilo Dias, Poesia escolhidas. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1960.

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