Pintura em suspensão

Brest de certo identificava um caráter “construtivo” na aparência planar e nas estruturas geométricas que organizam as telas de Pancetti. E o adjetivo român­tico talvez se refira às figuras solitárias e contemplativas que habitam suas pai­sagens, ou à tensão emocional característica de seus retratos e autorretratos. Embora trabalhasse olhando para o assunto, as cores saturadas, os enquadra­mentos angulosos e a fragmentação de elementos (árvores, troncos e casas) por meio de cortes “fotográficos” conferem aparência artificial a suas paisagens e, em alguns casos, forte sentido de independência das obras em relação ao referente.

Pancetti devia conhecer o debate sobre a autonomia dos elementos visuais que, nos anos 195 0, conquistou certa dimensão pública na imprensa do Sudeste pelas vozes de Mário Pedrosa, Ferreira Gullar e Waldemar Cordeiro; tampouco ficou alheio à arte concreta que podia ser vista com facilidade em exposições e bienais. O sentido abstracionista de sua obra se acentua no período em que viveu e retratou a Bahia, quando as áreas trabalhadas com somente uma cor se ampliam e o aspecto bidimensional das telas se torna mais evidente. No entanto, nas pinturas feitas na lagoa do Abaeté, a presença das lavadeiras com seus chapéus, bacias e panos coloridos estendidos na areia evidenciam o vínculo das obras com aspectos típicos da paisagem natural e humana do lugar. Nessa série, as figuras são destacadas e, ainda que sejam simplificadas e apare­çam de costas ou de perfil, a linha preta contornando os corpos dá um caráter de ilustração às imagens.

Nas folhas de contato com as fotos de Pancetti no Abaeté feitas por Mar­cel Gautherot, há uma sequência em que o artista aparece pintando uma tela pequena e, em seguida, duas composições diferentes sobre vidro. A princípio, as imagens remetem à famosa cena de Jackson Pollock visto de baixo para cima, com o céu ao fundo, deixando pingar (ou arremessando) gotas de tinta sobre uma placa de vidro. A cena colorida, em movimento, foi filmada por Hans Namuth em 1950, na casa do artista em East Hampton, na mesma ocasião em que realizou o ensaio fotográfico em preto e branco, com ele pintando sobre a tela estendida no chão. Nas fotos de Gautherot, o cavalete em primeiro plano logo evidencia que o fato de terem sido retratados por detrás de uma placa de vidro é provavelmente a única coisa que Pollock e Pancetti têm em comum.

Talvez Gautherot conhecesse o filme de Namuth. Talvez tivesse assistido ao documentário do cineasta francês Henry-Georges Clouzot, lançado em 1956, em que Pablo Picasso é filmado pintando por detrás de um papel especial, semitransparente, que esconde seu rosto mas revela o processo de elaboração do quadro, pincelada por pincelada. Já as fotos do artista brasileiro concentram a atenção do observador mais em seu rosto do que em sua ação.

Sob o sol escaldante, com os olhos apertados para conter o excesso de luz, um tanto rígido e às vezes esforçado para manter a pose, nas fotos de Gautherot, Pancetti lembra a figura de Van Gogh. Essa semelhança pode ser mais que uma coincidência se lembrarmos do impacto que o artista holandês exerceu sobre o brasileiro, sobretudo em seus retratos e autorretratos, nos quais o enquadra­mento, a posição do rosto em meio-perfil, a rigidez do corpo e a tensão emocio­nal concentrada no olhar não deixam dúvidas a esse respeito. Além desses dados formais, grande parte da bibliografia sobre o “homem do mar” focaliza os lances trágicos de sua vida: infância pobre, aventuras da época de marinheiro, a saúde sempre frágil, desilusões amorosas, solidão e sofrimento no leito de morte – o que aproxima ainda mais a figura de Pancetti à personagem Van Gogh.

Formado em arquitetura decorativa pela École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs da França, radicado no Brasil desde 1940, o fotógrafo francês Marcel Gautherot construiu um acervo de imagens diversificado sobre o país. Ele foi um dos principais intérpretes da arquitetura moderna brasileira, além de documentar o patrimônio arquitetônico nacional para o Serviço do Patri­mônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e registrar festas populares em todo país para a Comissão Nacional do Folclore, durante os anos 1940 e 1950. Nesse período, Gautherot esteve mais de uma vez na Bahia. Fotografou Pan­cetti possivelmente um pouco antes de iniciar sua extensa documentação da construção de Brasília, a partir de 1956, comissionado por Oscar Niemeyer.

No Abaeté, a substituição da tela pela superfície transparente cria um efeito de continuidade entre o espaço da pintura e seu entorno, sublinhando ainda mais a relação da obra com o lugar. Numa das fotos mais interessantes, a mulher que caminha ao fundo da cena parece ter sido a modelo da figura esboçada no vidro. As duas se parecem não apenas por causa das roupas, mas porque o corpo desfocado da primeira é tão destituído de detalhes quanto o da segunda. Ao mesmo tempo, as pinturas suspensas criam uma moldura inusitada para o rosto de Pancetti. Em outros casos, a transparência parece achatar as distâncias entre os planos, de modo que a figura do artista, coberta ou não pela tinta, lem­bra uma colagem. Dessa maneira, os efeitos criados pelo uso do vidro bloqueiam uma leitura direta do retrato e evidenciam que a situação é uma encenação, já que Pancetti não está simplesmente trabalhando, e sim posando para Gautherot registrá-lo. Ainda assim, as fotos são documentos e ratificam que, nos anos 1950, o mote central da obra de Pancetti permaneceu sendo a interpretação de luga­res, pessoas e coisas de seu cotidiano. E seu parâmetro de produção, a pintura de cavalete ao ar livre feita à maneira dos pós-impressionistas.

 

HELOISA ESPADA é pesquisadora e crítica de arte. Cursa doutorado em história da arte na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Foi pesquisadora do projeto Documents of 20th Century of Latin American and Latino Art, do Museu de Belas Artes de Houston, e curadora da exposição Fotoformas e suas Margens, no Centro Universitário Maria Antônia, São Paulo, em 2008. É coordenadora da área de artes visuais do Instituto Moreira Salles.

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