Antônio Vieira e o negócio do Brasil

serrote #4, março 2010

Antônio Vieira e o negócio do Brasil

EVALDO CABRAL DE MELLO

 

A principal incursão do padre Antônio Vieira na política internacional como conselheiro político de d. João >v não foi mais bem-sucedida que as outras missões exteriores que lhe confiou El-Rei. Refiro-me à negociação do acordo de 1648 entre Portugal e as Províncias Unidas dos Países Baixos1 mediante o qual o Reino faria cessão do territó­rio do Nordeste brasileiro entre o Ceará e o rio São Fran­cisco, no qual se implantara o Brasil holandês. Esta região encontrava-se, desde junho de 1645, sob o controle militar de uma insurreição luso-brasileira deflagrada com o estí­mulo da Coroa e com o apoio de contingentes enviados da Bahia. Não havendo logrado capturar o Recife e as praças-fortes costeiras, o movimento, triunfante apenas no inte­rior, pode ser razoavelmente descrito como um fracasso do ponto de vista lusitano, de vez que ela adicionou uma crise internacional com o governo de Haia, no momento em que a posição portuguesa era extremamente precária em vista da guerra contra Castela.

Ironicamente, em todo este episódio, o sebastianismo de Antônio Vieira de nada lhe serviu. Sabedor do que se tra­mava, ele se opôs resolutamente ao projeto, denunciando-o mesmo de maneira velada em sermão pronunciado em Lis­boa; e denunciando aqueles que chamava sarcasticamente de “valentões de Portugal”, um grupo pertencente aos cír­culos do poder contrários a quaisquer concessões às Pro­víncias Unidas no Brasil, mesmo ao risco de acrescentar uma nova guerra à que a Coroa já mantinha com a Espanha. A convicção de Vieira já era então a mesma que exporá lon­gamente no “Papel forte” (1648):

Se Portugal e Castela juntos não puderam resistir à Holanda, como há-de resistir Portugal só à Holanda e Castela? Se todas as forças de Portugal (ajudadas muitas vezes de Castela) não puderem defender a Pernambuco, como, só, com não restituir­mos parte de Pernambuco, cuidamos que podemos defender Pernambuco, o Brasil e todas as conquistas?2

Deflagrada a insurreição e constatado seu meio êxito ou seu meio fracasso, d. João iv tratou de instrumentalizá-la para obter dos Estados Gerais a venda do Nordeste à Coroa. A primeira missão de Vieira à Holanda deve-se ao desejo d’El-Rei de reavaliar in loco as perspectivas de tal projeto. Ao contrário, porém, do que escreveram os biógrafos do jesuíta ou do que supôs a historiografia da Restauração, ele não exerceu nem nesta ocasião nem na sua segunda viagem às Províncias Unidas funções formalmente diplomáticas de negociação, representação e informação, as quais estavam a cargo do embaixador em Haia, Francisco de Sousa Coutinho.

Vieira regressou a Lisboa com a convicção simplista, que era basicamente a de Sousa Coutinho, de que a compra do Nordeste era apenas uma questão de “compra da compra”, ou seja, o suborno da direção da Companhia das Índias Oci­dentais e das autoridades municipais, provinciais e confe­derais que teriam voz no capítulo.

Destarte, Vieira redigiu seu primeiro papel sobre o assunto, o “Parecer sobre se restaurar Pernambuco e se comprar aos holandeses” (1647), no qual, com base numa crítica de outros pareceres dados a El-Rei sobre o assunto, ele expôs todo o minucioso plano para atingir o objetivo.

Na realidade, os acontecimentos se haviam precipitado, sepultando a ideia de compra. Em primeiro lugar, frusta­ram-na as divergências políticas nas Províncias Unidas; e, em segundo, a fragilidade crescente da situação internacio­nal do Reino, que levara inclusive d. João iv a confiar a Vieira, na sua passagem por Paris a caminho de Haia, a missão de sondar o cardeal Mazzarino3 sobre uma fórmula pela qual o Bragança abdicaria o trono em favor de seu filho d. Teodósio, que por sua vez se casaria com a princesa da França, o que teria colocado Portugal por alguns anos sob regência estran­geira. Compreendendo os riscos da empreitada, Mazzarino não demonstrou interesse.

Ao chegar em Haia, Vieira constatou que, seguindo ins­truções régias de alguns meses antes, Sousa Coutinho pro­pusera aos Estados Gerais a restituição do Nordeste, ini­cialmente contra a inclusão de Portugal numa trégua com a Espanha, no âmbito dos entendimentos do Congresso de Münster, posteriormente sem qualquer condição. Nos meses seguintes, sua tarefa consistiu basicamente em acon­selhar Sousa Coutinho sobre os aspectos do tratado passí­veis de gerar dificuldades internas à ratificação. Mas sua estada em Haia foi interrompida pela reviravolta política em Lisboa, consequente à vitória luso-brasileira na pri­meira batalha dos Guararapes (1648), que reforçou conside­ravelmente o partido dos “valentões” e resultou na ordem de d. João >v para que Sousa Coutinho transmitisse a chefia da embaixada e assumisse o governo da ilha Terceira (Aço­res). Vieira o persuadiu a permanecer em Haia, de modo a não comprometer a sorte das negociações em curso, regres­sando imediatamente ao Reino com o texto combinado.

Em Lisboa, ele só logrou convencer El-Rei e um punhado de cortesãos. A reação à entrega de Pernambuco avolu­mou-se no âmbito do sistema conciliar como no da praça de Lisboa, cujos pontos de vista foram articulados pelo procu­rador da Fazenda, Pedro Fernandes Monteiro, sustentando que, face à recusa do governo neerlandês em vender o Nor­deste, a guerra contra as Províncias Unidas era preferível às concessões territoriais. Para refutá-lo, d. João >v encomen­dou a Vieira a redação do célebre “Papel forte”,4 em que compendiou com uma lógica implacável todas as razões que justificavam a aceitação do tratado de Haia, assinalando, contudo, que ele não vigeria eternamente nem impediria a Coroa de reaver o Nordeste por ocasião daquela outra guerra, que, segundo os sebastianistas, daria a Portugal “o império do mundo”. Destarte, o documento, que ficou na história luso-brasileira como um dos mais altos exemplos de realismo político, terminava surpreendentemente por uma nota de rasgado messianismo.

Vieira foi também encarregado por El-Rei de debater o tratado com os representantes dos conselhos e tribunais da monarquia. Em mais de 40 personalidades, havia apenas quatro a favor da entrega. Calculava d. João iv que, na ausência de solução alternativa em vista da falta de recursos com que prover à defesa do Reino e das conquistas, a oposição se cansaria ao fim de algum tempo, introduzida uma ou outra alteração. Esse moderado otimismo dissipou-se de todo ao receber em Lisboa (25.11.1648) a notícia da reconquista de Luanda por uma esquadra comandada por Salvador Correia de Sá.

A força dos “valentões” manifestou-se de maneira incontornável – e El- -Rei viu-se na circunstância de consentir, em fevereiro de 1649, na criação da Companhia Geral de Comércio do Brasil, destinada a manter a segu­rança das rotas marítimas entre Portugal e o Brasil, a ser custeada mediante a outorga do monopólio dos quatro gêneros (trigo, vinho, azeite e baca­lhau) e o aporte de capitais cristãos-novos de dentro e de fora do Reino, a quem seria reconhecida a isenção de confisco inquisitorial. A ideia da Com­panhia tinha sido aventada há anos pelo próprio Vieira, que agora, porém, achou-se na contingência de repudiar sua criatura com o argumento, que se revelará falacioso, de que ela viria demasiado tarde para salvar a Amé­rica portuguesa.

Entra a Companhia Geral, sai da cena Antônio Vieira. Encerra-se destarte este capítulo inglório da sua biografia. Doravante, sua ação política ficou praticamente encerrada, malgrado a proteção régia e uma missão secreta a Roma. Data de 1649 a primeira denúncia formulada contra ele junto ao Santo Ofício, prenunciando o ajuste de contas que terá lugar já no reinado de d. Afonso vi. Nos primeiros anos da década de 1650, Vieira partiu melan­colicamente para dedicar-se ao trabalho missionário no Maranhão. Até o fim de sua vida, ele persistiu em desvencilhar-se da responsabilidade pela entrega do Nordeste, alegando que sua restauração, que culminou em 1654 com a capitulação do Recife perante a terceira armada da Companhia Geral, constituíra pura e simplesmente um “milagre”, uma intervenção excep­cional da Providência Divina no curso dos acontecimentos. Mais: a fim de livrar-se da pecha de entreguismo, Vieira não hesitará em jogar sobre os ombros de um d. João iv já falecido o ônus da decisão: “Este negócio [escre­verá ao conde da Ericeira] não foi meu, senão resoluto e mandado expressa­mente por sua Majestade. […] Só fui relator das forçosas razões que ele tivera para isso.” A um historiador brasileiro do século 19, João Francisco Lisboa, não escapou a manobra. Não há como evitar a conclusão de que, ao con­trário dos “valentões”, que não eram tão bem informados nem manejavam uma lógica refinada, Vieira subestimou sistematicamente a vontade portu­guesa de resistir no Brasil e na Europa à perda de patrimônio colonial.

Como assinalou Afonso Pena Júnior, desde 1640, ainda na Bahia, Antô­nio Vieira advogava a cessão do território entre o Ceará e o rio São Francisco, onde se implantara o Brasil holandês, em troca da conservação do restante da América portuguesa. Seu derrotismo não lhe permitiu atinar, ao invés de vários dos seus contemporâneos, inclusive Antônio de Souza de Macedo, com o papel que poderiam exercer imprevisíveis circunstâncias internacio­nais, tais como a que virá selar a sorte do Brasil holandês: a primeira guerra anglo-neerlandesa (1652-1654), que permitiu ao Reino completar a recon­quista do Nordeste.

Malgrado suas estadas nos Países Baixos, Vieira também subestimou a gravidade das dissensões internas entre províncias confederadas, em espe­cial a oposição entre os interesses da província da Holanda e das demais pro­víncias; e no interior dela, entre Amsterdã e as cidades manufatureiras. O interesse de Amsterdã pelo comércio de Portugal, devido inclusive ao supri­mento de sal de Setúbal às frotas pesqueiras do país e à sua presença comer­cial no Báltico, constituiu elemento crucial, cujo peso específico o jesuíta entreviu, mas nunca calculou acuradamente. A favor de Antônio Vieira, aduza-se tão somente que seu companheiro de Haia, Francisco de Sousa Coutinho, também buscou fugir à responsabilidade, pois, segundo escrevia, “pregar a ignorantes é pior que pregar em deserto”, além do que, sendo “já velho, quero chegar ao cabo da carreira com as minhas queixadas sãs”.

Ex-diplomata, EVALDO CABRAL DE MELLO é um dos mais importantes historiadores brasileiros em atividade. É autor dos livros Norte agrário e o império (1999) e O negócio do Brasil (2003), pela Topbooks; Frei Joaquim do Amor Divino Caneca (2001), Um imenso Portugal (2002), A fronda dos mazombos (2003) e A outra Independência (2004) pela Editora 34; Rubro Veio (2008), pela Alameda; Nassau – Governador do Brasil holandês (2006) e O nome e o sangue (2009), pela Com­panhia das Letras.

 

 

1. Estado europeu que durou entre 1579 e 1795, reunindo Frísia, Groningen, Güeldres, Holanda, Overijssel, Utrecht e Zelândia. [n. do iR .]

2. Antônio Vieira, Obras várias, 3 volumes. Lisboa, 1951, p. 69.

3. De origem italiana, Mazzarino (1602-1661) tornou-se cardeal e primeiro-ministro enquanto Luís xix, da França, não atingia a maioridade. [N. do E.]

4. “Papel a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses”, Ibidem, pp. 29-106.

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