O escritor pode ficar em silêncio? – por Milton Hatoum

O escritor pode ficar em silêncio?

por MILTON HATOUM

Nos momentos em que a democracia está sob ataque, um escritor que se cala corre o risco, nada desprezível, de se tornar cúmplice do autoritarismo. Para Milton Hatoum, essa é a medida do compromisso, inegociável, de um intelectual com a ética e os valores humanistas. 

“Muitos silenciaram em tempos sombrios. Agora mesmo, em meio a tanto arbítrio e brutalidade, é possível ouvir esse silêncio”, escreve ele como resposta a uma das “Nove perguntas para o Brasil de hoje” – enquete promovida pela serrote e publicada, em novembro de 2019, na 33a edição da revista.

De Émile Zola a José Saramago, o autor de Dois irmãos e A noite da espera traça um breve panorama de situações em que o posicionamento público é um imperativo, acima de ideologias e mesmo sob eventuais ataques. “É preferível perseverar numa análise lúcida e honesta a submergir no silêncio ou aderir à impostura”, sustenta Hatoum.

Este texto é republicado aqui como parte da série #IMSquarentena, que reúne ensaios do acervo, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia 

O escritor Milton Hatoum – Foto: Renato Parada/Companhia das Letras

 

Nada impede um escritor de ficar em silêncio em períodos de crise política, de autoritarismo exacerbado, ou mesmo de ascensão do fascismo. De fato, muitos silenciaram em tempos sombrios. Agora mesmo, em meio a tanto arbítrio e brutalidade, é possível ouvir esse silêncio. Ou o ruído mais ou menos envergonhado de um mea­-culpa, assinado por colunistas políticos que nas últimas eleições presidenciais preferiram o impostor ao professor.

O leitor pode argumentar, com razão, que esses cronistas políticos não são poetas, romancistas ou dramaturgos. É verdade, mas são escritores: escribas que servem ao senhor, ou ao senhorio da casa-­grande; alguns pregam em nome do Senhor, e há até mesmo os premiados com medalhas milita­res, o que não deixa de ser uma extraordinária recompensa pelo mérito de publicar asneiras mentirosas.

No século passado, grandes romancistas e poetas aderiram ao fascismo e ao nazismo. O americano Ezra Pound e o francês Louis­-Ferdinand Céline são exemplos famosos dos que navegaram nas águas imundas do racismo e do totalitarismo. Quando Céline ficou detido na Dinamarca (de novembro de 1945 a dezembro de 1946), escreveu dezenas de cartas à sua mulher, ao seu advogado e aos amigos, tentando justificar o injustificável. Não queria ser o bode expiatório, argumentava, de um grupo de escritores e artistas franceses que haviam aderido ao nazismo.

Antissemita e anticomunista inveterado, o autor da obra-­prima Viagem ao fim da noite é mais uma das inúmeras provas de que o nazismo nada tem de esquerda, ao contrário da afirmação delirante – ou tão desonesta quanto delirante – de um dos ministros ignaros do atual governo brasileiro.

Pouco mais de uma década antes da ascensão do nazismo, Proust assumiu uma postura ética oposta à de Céline. Em várias passagens da monumental obra proustiana, e com mais ênfase no volume Sodoma e Gomorra, o narrador de Em busca do tempo perdido critica a condenação do capitão Alfred Dreyfus por suposto vazamento de segredos militares da França para a Alemanha, em 1894. Condenado sem provas cabais, Dreyfus penou durante anos na Ilha do Diabo, a prisão na Guiana Francesa, e só foi inocentado e reintegrado ao exército em 1906. Havia algo mais nesse complô judiciário: o capitão Dreyfus era judeu. Nesse affair, ficou famosa a carta de Émile Zola a Félix Faure, então presidente da França. Com o título “J’accuse” [Eu acuso], a carta-­manifesto foi publicada em 13 de janeiro de 1898 na primeira página do jornal L’Aurore.

Os defensores de Dreyfus eram uma minoria formada por intelectuais, artistas e escritores que preferiam os valores da verdade e da justiça ao nacionalismo exacerbado de uma nação derrotada na Guerra Franco­-Prussiana (1870­-1871), derrota esta agravada pela perda da Alsácia-­Lorena. Humilhação, mas também antissemitismo.

Na década de 1950, Jean­-Paul Sartre e Albert Camus travaram debates ásperos e divergentes sobre a guerra de independência da Argélia. Ambos se recusavam a silenciar diante da opressão do colonizador; mas, por razões e até visões ideológicas diferentes, divergiam sobre a forma de combater as iniquidades do colonialismo francês. O argelino Camus, ao contrário de Sartre, não apoiava a independência de seu país. A batalha verbal e escrita entre esses dois grandes resultou no fim de uma longa amizade.

Penso que a questão pertinente sobre o silêncio e/ou a manifestação de escritores, artistas e intelectuais tem mais a ver com a postura ética e moral à luz de uma leitura correta da história, e menos com os dogmas partidários, com frequência movidos por uma ideologia rígida, se não cega, desprovida de valores humanistas. Às vezes esse tipo de crença ideológica norteia discursos e ações à esquerda e à direita. Mas há várias exceções, nos campos progressista e liberal.

O poeta e ensaísta Octavio Paz, que recebeu o prêmio Nobel de literatura de 1990, participou ativamente do debate político mexicano e internacional. Em seus artigos e conferências, o autor de Piedra de sol foi um liberal autêntico, ao contrário de muitos intelectuais brasileiros alinhados ao liberalismo apenas sob o ponto de vista econômico – pois são reacionários na política de direitos humanos, costumes e comportamento. Muitos até apoiaram a candidatura do atual presidente. Outros optaram pela neutralidade: o oportuno equilíbrio dos solertes.

Paz foi um defensor ferrenho da liberdade de imprensa e da democracia. E, a partir do início dos anos 1960, um crítico contumaz da burocracia estatal e do sistema repressivo da ex­-União Soviética, do regime cubano e das esquerdas mexicana e latino­-americana. Mas não se eximiu de fazer críticas persistentes à desastrosa política externa dos Estados Unidos, às ditaduras na América Latina, à economia de mercado ou ao desenvolvimento econômico a qualquer preço e à custa dos mais pobres; em alguns ensaios, criticou duramente a degradação da arquitetura histórica mexi­cana, a miséria e a falta de infraestrutura nas favelas da Cidade do México. No prefácio a La noche de Tlatelolco, livro­-reportagem da jornalista Elena Poniatowska, escreveu: “A criação de uma tradição democrática no México não é menos importante e urgente que o desenvolvimento econômico e a luta pela igualdade”.1

Diferentemente de Paz e da tradição liberal europeia, a imensa maioria dos “liberais” brasileiros prefere ouvir e seguir as preleções amalucadas de um astrólogo expatriado: uma mistura de antigos instintos inquisitoriais com fantasmas paranoicos do comunismo.

Alinhado à esquerda, o também Nobel José Saramago, vencedor do prêmio em 1998, sempre criticou a exploração e a desumanidade do capitalismo. Em 2003, quando o governo de Castro executou três dissidentes, o autor do Ensaio sobre a cegueira publicou uma carta no jornal El País:

Até aqui cheguei. De agora em diante, Cuba seguirá seu caminho, e eu fico onde estou. Discordar é um direito que se encontra e se encontrará inscrito com tinta invisível em todas as declarações de direitos humanos passadas, presentes e futuras. Discordar é um ato irrenunciável de consciência. Pode ser que discordar leve à traição, mas isso sempre tem de ser mostrado com provas irrefutáveis […]. Agora chegam os fuzilamentos. Sequestrar um barco ou um avião é um crime severamente punível em qualquer país do mundo, mas não se condenam à morte os sequestradores, sobretudo ao ter em conta que não houve vítimas. Cuba não ganhou nenhuma heroica batalha fuzilando esses três homens, mas sim perdeu minha confiança, fraudou minhas esperanças, destruiu minhas ilusões. Até aqui cheguei.2

 

Em outubro de 2013, Saramago declarou ao jornal cubano Juventud Rebelde: “Não rompi com Cuba. Continuo sendo um amigo de Cuba, mas me reservo o direito de dizer o que penso, e de dizê-­lo quando achar que devo dizê-lo.”

Saramago, que se autodefinia um “comunista hormonal”, e Octavio Paz, um ex­-esquerdista que se aproximou do liberalismo e da social-­democracia, não renunciaram ao direito de dizer o que pensavam. Já alguns escritores e intelectuais brasileiros optaram por trabalhar como escribas de institutos que, financiados por empresas brasileiras e estrangeiras, produziram propaganda na imprensa com o objetivo de desestabilizar o governo João Goulart, meses antes do golpe civil­-militar de 1964; alguns continuaram a apoiar a ditadura mesmo no auge da repressão.

Recentemente, um e outro escritor, ator/atriz, cineasta e muitos jornalistas defenderam o impeachment de Dilma Rousseff e apoiaram a candidatura do capitão reformado. Alguém até filmou um esdrúxulo mecanismo com pretensão de incensar a Lava Jato, uma operação de combate à corrupção, comandada por um juiz de primeira instância e uma equipe de procuradores. É sempre necessário combater a corrupção, mas a Lava Jato revelou-­se um monstro judiciário de um só olho: um ciclope justiceiro, subespécie rara de Polifemo provinciano. Como se sabe, as conversinhas sem juízo entre o ex-­juiz, hoje ministro, e os procuradores foram vazadas e publicadas pelo site The Intercept Brasil. O bate­-papo íntimo, que se pretendia secreto, revela uma cumplicidade e uma parcialidade que comprometem a Justiça.

Num período de relativa normalidade democrática, que, ainda assim, não exclui tensões, conflitos e dramas sociais, o silêncio de um escritor não incomoda tanto. Mas numa época conturbada, de invasões militares, de governantes que tendem à tirania e praticam atos violentos e arbitrários muito próximos do fascismo, o silêncio pode ser, e de fato é, cúmplice do autoritarismo.

Diante de todas as evidências de governos brutais e opressores (contra seus próprios conterrâneos, ou contra povos e comunidade que habitam em território nacional), os dogmas ideológicos e religiosos devem ceder à ética e aos valores do humanismo, ou seja, “ao interesse legítimo pela investigação crítica dos valores, da história e da liberdade”.3

É honesto criticar com veemência a censura e a violação de direitos humanos em Cuba, Venezuela, Coreia do Norte, e calar covarde­mente sobre o feminicídio e a violência contra negros, LGBTs, indígenas, trabalhadores rurais e líderes sindicais no Brasil? Ou silenciar sobre os inúmeros crimes de guerra, casos de tortura, invasões e roubos de territórios, demolições de casas, bombardeios de escolas e hospitais praticados pelos governos dos Estados Unidos e de Israel? Nesse caso, o silêncio perde para a desfaçatez em tons histéricos, pois não são poucos os que tentam justificar, com um cinismo agressivo, e próprio de sofistas ultraconservadores, as barbáries do terrorismo de Estado.

Aliás, a gritaria desses articulistas ou colunistas apenas repete palavras de ordem dos porta­-vozes de chefes de Estado, incluindo os dos países que se dizem democratas, mas cujos governos praticam genocídios. Esses escribas – às vezes muito bem remunerados por palestras insossas dirigidas a uma plateia “diferenciada” – falam, com voz de pregador, em nome do poder, da história oficial e dos “valores” e religiões do Ocidente.

Falar a verdade ao poder pressupõe uma leitura correta dos fatos e da história. Aliás, correta e corajosa. “Sempre ouvi dizer”, escreveu Montaigne, “que a covardia é a mãe da crueldade.”

“Dizer quatro verdades ao adversário é relativamente fácil”, assinala Octavio Paz. “Difícil é dizê­-las ao amigo e ao aliado. Mas, se o escritor se cala, trai a si mesmo e trai seu amigo.” No entanto, o direito ao livre pensamento, exercido pelo poeta mexicano e por José Saramago, tem um compromisso com valores éticos, de responsabilidade e justiça, refratários a credos religiosos, a diretrizes partidárias e a interesses econômicos e corporativistas. Os escritores e intelectuais que exercem com independência essa liberdade talvez corram o risco de ficar isolados, ou de ser agredidos a torto e a direito. Mas, mesmo correndo esse risco, é preferível perseverar numa análise lúcida e honesta a submergir no silêncio ou aderir à impostura.

Essa é a perspectiva de Edward Said, que ressalta o papel do intelectual como um outsider, movido por um espírito de dissensão contra o status quo, atuando ao lado de grupos sociais desfavorecidos e pouco representados. Não poucas vezes esse outsider sente­-se impotente “diante de uma rede esmagadoramente poderosa de autoridades sociais – os meios de comunicação, os governos, as corporações etc. – que afastam as possibilidades de realizar qualquer mudança”. Mas, para o pensador palestino­-americano, “a condição solitária é sempre melhor do que uma tolerância gregária para o estado das coisas”.4

No final dos ensaios de Humanismo e crítica democrática, Edward Said refere­-se ao exílio como metáfora da condição e do lugar do intelectual e, por que não dizer, dos artistas e escritores:

O lugar provisório do intelectual é o domínio de uma arte exigente, resistente, intransigente, na qual, lamentavelmente, ninguém pode se refugiar nem buscar soluções. Mas apenas nesse exílio precário é possível compreender de fato a dificuldade do que não pode ser compreendido, e continuar a seguir em frente mesmo assim.5

 

NOTAS

  1. Octavio Paz, El ogro filantrópico. Barcelona: Seix Barral, 1979, p. 143.
  2. José Saramago, “Até aqui cheguei”, Folha de S.Paulo, 16.04.2003, caderno Mundo, p. A18.
  3. Edward Said, Humanismo e crítica democrática. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 33.
  4. Idem, Representações do intelectual. Trad. Milton Hatoum, 1a reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, pp. 16­-17.
  5. Idem, op. cit., p. 173.

 

Milton Hatoum (1952) é escritor e cronista. Autor de Dois irmãos, clássico do romance contemporâneo brasileiro, funde local e universal numa obra que interpela de forma original e rigorosa a realidade brasileira. Publicou ainda, pela Companhia das Letras, Cinzas do norte, Órfãos do Eldorado, A noite da espera e Pontos de fuga, volumes de uma trilogia que tem como pano de fundo a ditadura militar.

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