Construir portas abertas – por Eucanaã Ferraz

Construir portas abertas

por EUCANAÃ FERRAZ

Na relação tensa e conflituada com Le Corbusier, João Cabral de Melo Neto depurou os princípios de uma obra fundada na “verdade da forma”

Ensaio publicado na serrote 35-36

Desenho de Le Corbusier para a capela Notre-Dame du Haut, em Ronchamp, 1955 – © F.L.C/ AUTVIS, Brasil, 2020

 

Vinha de Sevilha, cidade que o marcou tanto quanto o Recife da sua infância. Fora transferido para o consulado de Marselha. Deixava para trás uma rara alegria, construída no convívio intenso com toureiros, cantadores e bailadoras de flamenco. No dia 3 de dezembro de 1958, escreveu para seu amigo José Paulo Moreira da Fonseca, pintor e poeta: “Desde que cheguei a Marselha que estou para lhe escrever. Mas estes primeiros dias de cidade nova são infernais. A procura de casa, então, aqui em Marselha foi de fazer desanimar a qualquer um de vocação cigano-diplomática. Quanto mais a mim, que com a idade estou ficando como os gatos. Afinal, depois de muito errar entre casas bolorentas, encombrées de móveis complicadíssimos cujos nomes e utilidade (terão alguma?) ignoro, consegui achar uma casa menos europeia, mais americana, ou brasileira: isto é, mais despojada, mais clara, mais sem pátina. O diabo é que só poderei passar para ela em março, e até lá ficaremos mesmo a viver europeiamente no meio de um bric-à-brac franco-oriental impressionante!”1

O mau humor cabralino – não me refiro aos momentos de depressão que se alargaram em seus últimos anos – é daquele tipo que sempre resulta em algo cômico. Na carta, a visão de “móveis complicadíssimos” promete, digamos, cenas hilárias do cinema silencioso, mas a ação e a acrobacia estão menos para Buster Keaton – um Buster Keaton que não parasse de falar – do que para Le Corbusier, especificamente nos escritos sobre arquitetura e design em que ele escarnece sem piedade do gosto burguês, que não pretendia outra coisa senão viver no meio de um bric-à-brac de gosto europeu-franco-oriental. Desconhecendo os “nomes” e a “utilidade” do que vê, Cabral registra de imediato, corbusianamente, a afetação da linguagem e a falência de um princípio: a forma de um objeto deve deixar claro o seu uso. As observações ligeiras e bem-humoradas do poeta resumem todas as complexas discussões a respeito do binômio forma-função.

A família viveria pouco tempo naquela casa, logo se mudando para outra que, vizinha, não chegava a ser “americana, ou brasileira” – ou seja, não era simples, moderna ou funcional. O aristocratismo francês não dava trégua.

Em Marselha, nada se parecia com o apartamento que Cabral comprara anos antes no Rio de Janeiro, em Botafogo, no edifício Júlio de Barros Barreto, projeto dos irmãos Roberto,2 que após sua inauguração, em 1952, converteu-se de imediato em marco da melhor arquitetura brasileira daquele período. Foi por conta desse apartamento que sua mulher, Stella, teve de viajar ao Rio para resolver problemas imobiliários, trazendo consigo os filhos, Rodrigo, Inês, Luís e Isabel. Antes disso, no entanto, Cabral fez uma mudança radical – alugou um apartamento na estupenda Unité d’Habitation, projeto de Le Corbusier concluído também em 1952, inaugural e exemplar de suas concepções acerca da habitação destinada à classe média. Luz, ar, geometria clara, ritmo vibrante, grandes espaços abertos, quase uma ilustração do poema “O engenheiro”. A fachada principal pode lembrar um grande navio, cujas cabines fossem telas de Mondrian tridimensionalizadas pelos brise-soleil, mas o edifício é, bem mais que isso, uma cidade-jardim vertical. Toda a família foi ao bulevar Michelet, 280, para conhecer o apartamento onde Cabral morou sozinho por pouco mais de um ano, antes de servir em Madri. Um de seus filhos, Rodrigo, ainda hoje se lembra do impacto – agradável – que lhe causou o apartamento de dois pisos, no qual se entrava pelo andar superior.3

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A crítica já observou que a arquitetura moderna, particularmente o pensamento de Le Corbusier, foi um dos mais notáveis impulsos para a formação do paradigma de valores que modelaram a poesia de João Cabral de Melo Neto: geometria, racionalidade, rigor, claridade, formas dinâmicas, metalinguagem. O ponto inaugural foi O engenheiro (1945), livro cuja epígrafe traz a assinatura do mestre franco-suíço, que em Vers une architecture (1923) define o Partenon como uma “machine à émouvoir”, “máquina de comover”. Mais do que ilustrar a provocadora coletânea de poemas, a afirmação define uma tomada de rumos e indica que poeta e arquiteto pertencem “a uma mesma família espiritual – a dos construtores”.4

Em diversas entrevistas, Cabral consignou a importância decisiva de Le Corbusier. Mas não deixaria de assinalar certa ruptura de princípios operada por um personagem tão inesperado quanto indesejado – um outro Le Corbusier:

Durante muitos anos, ele significou para mim lucidez, claridade, construtivismo. Em resumo: o predomínio da inteligência sobre o instinto. Digo muitos anos porque na última época de sua vida, na minha opinião, Le Corbusier caprichou para negar todos esses valores que ele pregava anteriormente. Falo sobre ele e sobre isso no poema “Fábula de um arquiteto”. A ideia desse poema me veio ao visitar, na França, a capela de Ronchamp, por ele construída. Essa capela me provocou uma total irritação, que me senti obrigado a escrever esse poema, cuja segunda parte é uma descrição da antiarquitetura.5

Erguida em Ronchamp, na França, em 1955, a capela Notre-Dame du Haut marca, de fato, uma ruptura com os projetos das décadas de 1920 e 1930, que definiram tanto a linguagem corbusiana quanto os caminhos da moderna arquitetura como um todo. Nela, há um vocabulário formal oposto ao esperado: a integração do edifício com a natureza não se dá por meio do uso dos pilotis, que permitiam a continuidade das áreas verdes, do envidraçamento das fachadas, que abria o interior à luz solar, e tampouco da geometrização – capaz de emprestar à forma geral da massa edificada o aspecto de um sólido platônico, que estaria na base de todas as formas naturais. O resultado, nas palavras de Giulio Carlo Argan, é “um núcleo plástico duro e compacto, pleno de força expansiva contida, que, no entanto, revela-se na anomalia geométrica da planta, na saída brusca de esporões edificados, no volume em forma de barco da cobertura exageradamente grande, na força dos contrastes de luz”.6 Ou ainda: o peso em vez da leveza; o jogo barroco de luzes e sombras em vez da claridade total; o truque da deformação e da escala desproporcional em vez da funcionalidade geométrica; a tensão entre elementos dispostos de maneira assimétrica e a forma livre em vez do equilíbrio lógico da simetria; o cruzamento de inúmeras referências desencontradas e subjetivamente reunidas – uma operação não muito distante daquelas propostas pelos surrealistas para as artes plásticas e a literatura – em vez do aproveitamento crítico e claro de certas tradições. A consequência de tal programa é a monumentalidade, que oscila entre a gratuidade lírica e choques de efeitos dramáticos.

Não terá sido sem o abandono de algum escrúpulo que Le Corbusier concebeu uma obra que, plasticamente, dissimula sua modernidade construtiva para forjar uma aparência estereotômica. Ronchamp nos engana, sim, finge ser um edifício erigido conforme a tradicional técnica de divisão, corte e empilhamento de blocos, tijolos de pedra ou de cerâmica. Some-se a tal ambivalência uma das muitas que dão forma a Ronchamp, uma dubiedade que alia à tradição cristã certa memória pré-cristã, produzindo-se com isso certo retorno às origens místicas do cristianismo e “um sentimento do divino até mesmo bárbaro, primitivo, indubitavelmente pleno de valores animistas e mágicos”.7 A integração com a natureza, assentada na falsa estereotomia, acaba por criar uma obra cenográfica, que explora a indefinição entre engenharia e natureza, entre capela e gruta, entre moderno e arcaico – e tudo isso desperta sentimentos desencontrados, perturbadores, fragiliza-nos, empurra-nos para algo como uma armadilha psíquica que podemos chamar de “aura mística”.

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As impressões de João Cabral não se resumiram àquele breve e eloquente depoimento. O impacto sofrido na visita a Ronchamp ganhou corpo em poema: “Fábula de um arquiteto”, de A educação pela pedra(1966), sintético, belo e irritado quadro em que se desenham dois modos diferentes de construir, ou ainda, dois diferentes Le Corbusier.

O poema compõe-se de duas partes, que correspondem a duas estrofes, em nítido diálogo opositivo. A parte inicial é uma espécie de resumo poético-pedagógico da primeira poética corbusiana.8 Pensemos na estética solar das villas Stein e Savoye: a ideia principal é de “abertura”, o que de imediato obriga o leitor a abandonar a rápida e fácil analogia entre “construir” e “fechar”:

A arquitetura como construir portas,

de abrir; ou como construir o aberto;

construir, não como ilhar e prender,

nem construir como fechar secretos;

construir portas abertas, em portas;

casas exclusivamente portas e teto.

O arquiteto: o que abre para o homem

(tudo se sanearia desde casas abertas)

portas por-onde, jamais portas-contra;

por onde, livres: ar luz razão certa.

Fundindo trabalho e utopia, os versos apontam para uma visão da forma como éthos: tornar são, habitável, respirável. “Construir portas,/ de abrir” é, para Cabral, tanto uma estética quanto uma moral praticáveis a partir de certos objetos e valores. Sem uma pontuação que prenda ou limite a livre vibração do arranjo no verso final da estrofe – “ar luz razão certa” –, o poema se organiza com a abertura que propõe como tarefa do arquiteto. O leitor que queira rearranjar tal combinação, tornando-a mais “estável”, começará, decerto, pelo par “ar luz” – reunião dos elementos naturais –, estabelecendo um segundo par – “razão certa” –, que sugere tanto o atributo do arquiteto quanto uma qualificação de um espaço ideal, concebido no cumprimento rigoroso da racionalidade. No entanto, o elemento “ar” pode ser lido como unidade, dando vez ao par “luz razão”, cabendo a qualquer um dos nomes a função de adjetivar o outro, ambas as operações destacando uma mesma imagem crítica: a junção do natural e do racional como condições privilegiadas da existência humana. Já a tríade “luz razão certa” concentraria no último termo a tarefa de qualificar, e, acoplado àquele imediatamente anterior, faria com que “luz” voltasse a ser um elemento solto, como uma luminosidade absoluta, desprendida da razão como qualidade espiritual, mas também, a um só tempo, radiação, fenômeno natural. E, ainda, “certa” poderia ser o qualificativo de “luz”, ficando soltos os elementos “ar” e “razão”. Leitura mais lucrativa será aquela que abrir mão da tentativa estéril de pontuar – atar, fechar – o que deve permanecer em aberto, como culminância do poema, que, além de elogio da tectônica, incorpora o vazio, a leveza, a aeração, a pluralidade, graças à manipulação da sintaxe, que define espaços, edifica cheios e vazios. O efeito final é o de uma arquitetura ativa, que recebe claridade e que a emite. Resultante da razão, a claridade não se destina apenas aos nossos olhos: ela esclarece, guia, é percepção, juízo, inteligência; mais que isso, alcança-nos por outros sentidos, realizando-se como beleza, harmonia, equilíbrio, liberdade. Para falar em termos corbusianos, temos aí – no poema e nos princípios e nas normas de que ele trata – a máquina de comover.

A segunda parte do poema ergue-se como antítese. Nas palavras do próprio poeta, é “uma descrição da antiarquitetura”, tendo como imagem-motivo a capela de Ronchamp:

Até que, tantos livres o amedrontando,

renegou dar a viver no claro e aberto.

Onde vãos de abrir, ele foi amurando

opacos de fechar; onde vidro, concreto;

até refechar o homem: na capela útero,

com confortos de matriz, outra vez feto.

O primeiro verso inicia-se pela sugestão de um clímax em relação a uma marcha desenvolvida no tempo – “até que” –, seguindo-se a avaliação histórica da ruptura surgida em relação ao que foi descrito na primeira estrofe. O poema traz, portanto, um quadro em dois momentos: seu estágio ideal (que corresponde à primeira parte) e sua suspensão, com o estabelecimento de um processo que culmina numa nova ordem (a segunda estrofe). O texto compõe-se, isomorficamente, em duas partes, fazendo com que a oposição entre elas seja flagrante, sem nuanças, como a total oposição entre a primeira e a segunda arquitetura: a de abrir e a de fechar; a do claro e a do opaco; a do vidro e a do concreto; a da liberdade e a do medo; a da casa e a da capela; a da razão e a do conforto. Ou, ainda, mostra-se aqui o processo de fechamento, que se inicia com “até que”, sugerindo o fim de um trajeto e o início de outro, seguindo-se o medo e a negação dos antigos valores (o “claro” e o “aberto”). Principia, então, o trabalho de encolhimento, de vedação: amurar, tornar opaco, fechar; trocam-se os materiais: a massa fosca do concreto substitui a transparência do vidro. O homem, mais que fechado, vê-se então refechado – e a sequência chega à máxima intensidade ao se revelar como regressão absoluta: a capela torna-se útero e o homem retorna à condição de feto. As formas verbais no gerúndio e no pretérito perfeito – “amedrontando”, “foi amurando”, “renegou” – erigem um quadro de desenvolvimento temporal e contrastam com a síntese pedagógica da primeira parte, na qual os verbos têm a força atemporal e conceitual do infinitivo (“abrir”, “construir”, “ilhar”, “prender”), bem como o valor utópico do futuro do pretérito (“sanearia”) e a constatação histórica de uma ação plena, atual, definidora (“o arquiteto: o que abre”).

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O olhar instalado pela “Fábula de um arquiteto” ultrapassa o julgamento estritamente plástico. É como se o poema partisse do pressuposto de que, se uma forma evoca e provoca sentimentos, ela fará o mesmo com relação aos padrões éticos, morais e políticos que guiaram seu projeto, evocando-os, provocando-os. Digamos que Cabral aciona um juízo crítico-poético voltado para uma relação forma/função que não se esgota no utilitarismo, ou, ainda, que não se limita a ser uma adequação da forma a um uso definido em termos estritamente pragmáticos. No poema, a função surge como ideologia: a capela Notre-Dame du Haut exibe, aos olhos de Cabral, padrões indicadores de uma recusa da história e, simultaneamente, de uma aceitação dos signos da tradição, ou da ancestralidade, o que faz a forma desaparecer como linguagem e ressurgir como ritual. Assim, sem o risco da invenção, de sua aventura, a tensa relação entre forma e função resolve-se pacificamente em termos de cenografia. Em vez da consciência crítica e da luta, a forma apresenta-se como reconciliação e adota a continuidade – desejo de repetição e de permanência, recusa da diferença, do conflito e da ruptura – de que se alimentam as ideologias.

Muito embora outras obras precedentes já anunciassem mudanças na linguagem corbusiana – como a própria Unité d’Habitation de Marselha –, a capela Notre-Dame du Haut levanta, mais que todas as outras, uma série de questões: seria ela mais um sinal da pesquisa constante e da desobediência vanguardista a quaisquer cânones? Ou se resume a ser o signo inequívoco da crise da linguagem corbusiana? Retrocesso? Avanço? Mistificação?

Em bela e importante carta a Ernest Rogers, Giulio Carlo Argan faria uma reflexão aguda sobre a capela, dizendo a certa altura que a igreja de Ronchamp era, “decididamente, polemicamente anti-histórica”. E acrescenta: “Refiro-me precisamente à história da arquitetura moderna, na qual Le Corbusier tem a importância que todos sabemos”.9

Cabral explora essa anti-historicidade: a capela aparece em seu poema como resultado de um retrocesso, de uma negação de princípios. Os “confortos de matriz” são uma fuga do desconforto da forma: a arquitetura – e o homem – abandona as construções arriscadas – portanto, desconfortáveis – da liberdade e da razão. A maturidade, entendida como conquista de uma forma no processo de sua historicidade, é subtraída numa regressão absoluta, que leva ao estado de pré-desenvolvimento, ao embrionário, à condição de “feto”. O retorno à origem – “outra vez” – equivale aqui a uma autonegação, a um retrocesso em relação às conquistas da modernidade.

A severidade desse julgamento talvez não seja evidente numa primeira leitura. A imagem de uma igreja que se assemelha ao útero materno pode parecer, sem dúvida, plena de positividade. O fechamento não teria, então, um sinal negativo, e remeteria ao papel simbólico da própria capela – a religiosidade –, bem como a uma possível função arquitetural – dar conforto, segurança. Mas tal leitura não se sustenta, já que se deve considerar, no primeiro bloco do poema, o inequívoco elogio a um projeto que em tudo se opõe àquele descrito na parte que o segue. Para que, por fim, se desfaça qualquer ambiguidade, basta ler a “Fábula de um arquiteto” no conjunto da obra do poeta – e então não será difícil reconhecer que Ronchamp é uma negação dos princípios que sustentaram sua poética, tomados, em grande medida, ao próprio Le Corbusier. Por isso Cabral não pôde deixar de registrar sua impressão de que, em Notre-Dame du Haut, o criador recuou, negando seus valores como quem não aguentasse o peso, o desconforto das ideias fixas.10

As alusões barrocas e o excesso cenográfico da capela são, para Argan, problemas essencialmente morais: “O erro de Le Corbusier foi ter simulado uma fé que não tem”.11 Há um falseamento da forma que nada tem a ver com a célebre passagem de Vers une architecture: “Questão de moralidade. A mentira é intolerável. Sucumbe-se na mentira.”12 É certo que as indefinições formais de Ronchamp não nasceram, absolutamente, do desconhecimento, do despreparo ou da aceitação ingênua da intuição. Sem dúvida, mesmo ali, o arquiteto manteve total controle de seu projeto – e, portanto, fez uso consciente e planejado de indefinições e referências enigmáticas. A irritação de Cabral, e também a de Argan, pode ser explicada por este problema moral: a manipulação da dubiedade e do equívoco, tão contrastante com a ética construtiva defendida pelo primeiro Le Corbusier, que afirmava como lei: “Os objetos naturais e as obras produzidas pelo cálculo são formados nitidamente, sua organização é sem ambiguidades”.13 E ainda: “É porque vemos bem que podemos ler, saber e sentir o acordo. Retenho: na obra de arte é preciso formular claramente.”14

Poder-se-ia argumentar que a capela de Ronchamp cumpre sem problemas sua função: criar um espaço propício ao recolhimento e à oração. Há quem defenda sua qualidade estética. Mas como negar que tanto o cumprimento da funcionalidade quanto a beleza do edifício nascem da exploração – moralmente condenável, de acordo com os princípios do racionalismo arquitetônico – da ilusão, da ambiguidade, do falseamento? Parece-me que tais questões encontram sua síntese elucidativa e cruel na descrição do edifício feita por Maxwell Fry. Após observar que interior e exterior carecem de uma ligação estrutural lógica, ele confirma a impressão geral do edifício – sua grande solidez, conquistada graças às paredes de imensa espessura rasgadas por minúsculas janelas, que, recuperando certo estilo medieval, alargam-se obliquamente no interior. Mas é então que Fry destaca o que pouca gente imagina: as paredes de Ronchamp, na verdade, são ocas, tão ocas “como seriam num cenário de cinema”.15 Quanto à notória e extravagante cobertura da capela, o crítico afirma sem piedade: “O teto é não sei o quê”.16 Vale a pena transcrever o remate: “Trata-se, sem dúvida, de um tour de force de expressão escultural por fora e, por dentro, de uma brilhante experiência de regurgitação nostálgica que, no entanto, obscurece meu horizonte arquitetônico; fico feliz de que haja apenas um exemplar no gênero”.17

A cenografia de Ronchamp afronta aquilo que na arquitetura moderna resumia o preceito moral de suas realizações: a verdade da forma. Para atingi-la, exigia-se, em suma, que as obras expusessem princípios estruturais e materiais empregados; a estrutura deveria mostrar-se inteiramente, como numa operação pedagógica que desse a ver, a um só tempo, o problema e sua solução. Desse modo, a tão desejada claridade era tanto condição ambiental quanto qualidade da forma; e era, além disso, clareza, declaração das leis implicadas nos vínculos entre projeto e obra, obra e vida, ou, ainda, matéria e alma.

Em todo o percurso de Le Corbusier, a verdade estrutural esteve sempre ligada à utilização das formas simples, o que o levou à exploração do quadrado e do cubo. Basta aqui remeter a seu célebre estudo comparativo mostrando as diferentes utilizações que fez do cubo em quatro casas. A primeira delas, a La Roche-Jeanneret (1923-1925), em Paris, é um conjunto formado por duas unidades, onde já há, por meio do cubo, a tentativa de se criar um plano livre, aberto, capaz de se harmonizar com o movimento humano. As três seguintes apresentam-se como prismas puros. A villa Stein (1927), em Garches, e a construída em Cartago, na Tunísia (1929), são composições mais simples, ficando o clímax de sua pesquisa representado pela villa Savoye (1929-1931).

Historicamente tão paradigmática quanto o edifício de Gropius para a sede da Bauhaus, em Dessau, a villa Savoye é uma síntese luminosa do gênio corbusiano. É Argan que a define como “um dos pilares do racionalismo arquitetônico europeu”, acrescentando com admiração espirituosa que “não passa de um paralelepípedo branco, suspenso sobre esguios pilotis, em cima de um volume reentrante, escuro, quase escavado pelos vidros”. O arremate descritivo tem a simplicidade adequada ao edifício: “O bloco superior também se torna mais leve devido às janelas contínuas, que o subdividem em faixas paralelas, desiguais, mas proporcionais”.18

Le Corbusier fala dessa redução geométrica e dessa leveza com a síntese poética que o caracterizou como esplêndido escritor: “A casa é uma caixa no ar”.19 Tal efeito tectônico de casa “largada no espaço”20 nasce de um aproveitamento extremo da liberdade possibilitada pela estrutura independente. Mas as surpresas não se limitam à visão que temos de fora, pois a limitação geométrica da caixa empresta seu rigor e simplicidade a uma sintaxe complexa e emocionante: o projeto alcançou, “dentro de seu quadrado autoimposto, as qualidades espirais da assimetria, da rotação e da dispersão periférica”.21 Ou seja, pensado em função do movimento e da luz, o interior se estrutura com enorme ousadia – rampas e escadas em caracol –, enquanto a forma cúbica que as envolve garante a ordem de todo o conjunto. Com a reinterpretação de certos princípios da arte cubista, Le Corbusier aboliu o estatismo graças à construção de espaços “móveis”, de estruturas transparentes e “abertas”, geometrizou os elementos formais e organizou rigorosamente o espaço, dando a ele, ao mesmo tempo, uma continuidade dinâmica.

Digamos que é possível vislumbrar aí uma realização do princípio da verdade da forma em termos de adoção da geometria – o uso estrutural do cubo – e do dinamismo. A villa Savoye é, de fato, o mais fascinante exemplo do que Le Corbusier chamou de passeio arquitetural:22

As formas sob a luz. Dentro e fora; em cima e embaixo. Dentro: entramos, caminhamos, olhamos caminhando, e as formas se explicam, se desenvolvem, se combinam. Fora: aproximamo-nos, vemos, interessamo-nos, apreciamos, caminhamos ao redor, descobrimos. Não paramos de receber comoções sucessivas. E o jogo jogado aparece. Caminhamos, circulamos, não paramos de nos mover, de girar.23

O olhar – e com ele o corpo – passeia pelas formas, movimenta-se pelos mecanismos da construção, que não se ocultam por detrás de quaisquer artifícios. Não há mistério. A luz absoluta expõe superfícies e interior num jogo de formas claras, puras, transparentes, surpreendidas em constante movimento. O passeio arquitetural refaz, como um fluido, peça por peça, as articulações da casa-máquina. Os espaços funcionam como dispositivos cujos efeitos são a surpresa e a admiração permanentes. Trata-se de uma vivência no espaço e de uma aprendizagem do corpo em movimento. A máquina aciona o olhar e é por ele mantida em ação. Mais que uma proposta para edificação de casas, a proposição corbusiana concebe, amplamente, uma linguagem – uma linguagem feliz, eu diria – e os modos de operá-la.

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Aceitemos como factível o gesto de aproximação entre as poéticas de João Cabral de Melo Neto e de Le Corbusier, e então o uso perseverante, no poema, de certos procedimentos poderá ser interpretado como desenvolvimento de uma ideia partilhada, partilhável, com a arquitetura. Por conseguinte, a quadra, formato mais marcante da poética cabralina, será o correspondente do quadrado, ou do cubo, corbusiano.

Na quadra – a estrofe mais frequente da poesia brasileira –, o poeta parece ter encontrado a limpidez construtiva da geometria, tornando suas propriedades visuais ainda mais manifestas pelo uso de versos predominantemente isométricos, que mantêm o contorno configurador da superfície, definida pelos seus quatro lados, limitados no ângulo reto das margens. Ainda que a quadra cabralina encerre os valores de uma mancha gráfica facilmente reconhecível pelo leitor – altura, largura e estabilidade visual –, mais importante do que uma possível semelhança plástica com o quadrado – ou o retângulo, seu alongamento – é a função da quadra como módulo ordenador. A forma prévia gera uma norma, ou seja, tanto incorpora o limite quanto possibilita, exatamente pelo seu aspecto restritivo, explorar os recursos dos versos e da sintaxe sem perda do rigor construtivo.

Tratando dos poemas do livro Quaderna (1960), Benedito Nunes afirma: “É a cuaderna via como um módulo controlador da elaboração e do encadeamento das imagens”. E mais: “Instrumento metodológico de precisão analítica, a quadra, exercendo função cartesiana, permite dividir um objeto em tantas partes quantas sejam necessárias ao seu perfeito entendimento poético”.24

Para Le Corbusier, o cubo tinha função semelhante. Por ser uma forma prismática, possibilitava uma grande diferenciação no nível das fachadas, muito embora todas elas fossem projetadas sob a mesma forma de um quadrado. E, apesar do tratamento múltiplo das faces do edifício, permanecia como uma forma estática, necessitando movimento e direção aparentes. A manutenção de tais limites pode ser explicada, repito, como uma necessidade de conduzir a estrutura à geometria mais familiar e reconhecível, gerando-se com isso um rigoroso controle das formas que deveriam se expandir em seu interior.

Nessa mesma direção, Haroldo de Campos observa que a quadra não deve ser entendida, na poesia de João Cabral, “como forma fixa (ou fôrma), mas como um bloco, como unidade blocal de composição, elemento geométrico pré-construído, definido e apto consequentemente para a armação do poema”.25 Compreendida, então, como “bloco”, a quadra cabralina mostra-se como parte de um bloco maior – o poema –, cuja construção mais sofisticada promove uma leitura semelhante ao passeio arquitetural. Como exemplo, eis a primeira parte, ou abertura, do poema “Uma faca só lâmina (ou: serventia das ideias fixas)”:

Assim como uma bala

enterrada no corpo,

fazendo mais espesso

um dos lados do morto;

 

assim como uma bala

do chumbo mais pesado,

no músculo de um homem

pesando-o mais de um lado;

 

qual bala que tivesse

um vivo mecanismo,

bala que possuísse

um coração ativo

 

igual ao de um relógio

submerso em algum corpo,

ao de um relógio vivo

e também revoltoso,

 

relógio que tivesse

o gume de uma faca

e toda a impiedade

de lâmina azulada;

 

assim como uma faca

que sem bolso ou bainha

se transformasse em parte

de vossa anatomia;

 

qual uma faca íntima

ou faca de uso interno,

habitando num corpo

como o próprio esqueleto

 

de um homem que o tivesse,

e sempre, doloroso,

de homem que se ferisse

contra seus próprios ossos.

A construção total do poema – constituído por 88 quadras – cria um ritmo que, antes mesmo da leitura, é reconhecível pelo simples olhar. Tal regularidade modular não é um arranjo casual. Pode-se acompanhar, passo a passo, a construção das imagens que se vão formando como um fluxo que atravessa as quadras. “Bala”, “relógio” e “faca” são as três figuras nucleares. Se a primeira desponta já no verso inicial como elemento de comparação com um termo que, estranhamente, não conhecemos (e que só será nomeado no segundo segmento do poema), as outras duas imagens surgem por meio de um mecanismo que se pode acompanhar claramente. A construção das imagens se dá nessa espécie de dinâmica interna controlada pela constituição das estrofes em quadras. A leitura tem de ser atenta para “passear” pela arquitetura do texto, apesar de seu mecanismo tão claro, e que mais se expõe adiante, quando reavalia o uso das imagens “bala”, “relógio” e “faca”:

Por isso é que o melhor

dos símbolos usados

é a lâmina cruel

(melhor se de Pasmado):

 

porque nenhum indica

essa ausência tão ávida

como a imagem da faca

que só tivesse lâmina,

 

A avaliação da imagem expõe por completo o processo de construção do texto, impedindo que a leitura se faça por automatismo. O que tais fragmentos deixam ver é uma constante de toda a obra de João Cabral: a subtração de um centro, o fim da gravitação em torno de uma imagem que se quer “naturalmente” colada ao signo de onde partiu, com o que se cria um dinamismo avesso ao repouso e à simples aceitação das imagens. Esse passeio textual, associado ao uso da quadra, converte a leitura numa experiência bem próxima daquela descrita por Le Corbusier.

Ao tratar de tal processo de decomposição da metáfora, Benedito Nunes fala de uma “estrutura translúcida”.26 Nenhum outro termo definiria melhor o resultado de uma “verdade da forma” procurada pelo poeta, sobretudo porque remete a uma qualidade corbusiana e moderna em geral. A atitude estética cabralina diz respeito fundamentalmente à relação do escritor com a criação e com seu texto, mas, sem dúvida, prolonga-se como uma proposição que inclui o leitor – é um papel ativo o que o poema propõe, um diálogo em que a arbitrariedade da metáfora tem seus limites compartilhados, em que a poesia se efetua como conhecimento do objeto sobre o qual se detém, mas, simultaneamente, oferece-se como objeto de conhecimento. Retorno a Benedito Nunes: “O controle reflexivo, que garante a transparência do poema, mostrando-lhe o mecanismo linguístico, é reforçado pela lisura profissional do poeta, que abre o jogo franco de sua arte. Já com a finalidade de estimular no leitor uma atitude lúdica diante do texto, que o subtraia aos efeitos de ocasional sortilégio, o autor interrompe ou perturba o discurso poético.”27

Vale pelo menos apontar para “Imagens em Castela”, de Paisagens com figuras (1955); “Estudos para uma bailadora andaluza”, “Poema(s) da cabra”, “Jogos frutais”, “A palo seco” e “Paisagem pelo telefone”, todos de Quaderna (1960); “Velório de um comendador” e “O relógio”, de Serial (1961), como exemplos acabados de poemas que exibem seus mecanismos e expõem seus métodos, em que o módulo garante em seus limites a ordem de um discurso que desfaz qualquer fixidez.

A linguagem proposta por Le Corbusier – de formas claras que se explicam, se desenvolvem, se combinam e instigam a curiosidade, a inteligência e o corpo – encontrou na poesia de João Cabral uma realização poderosa. Tal reconhecimento acaba invertendo a direção convencional da influência: a escrita cabralina passa a ser produtora de novos sentidos do pensamento corbusiano, mostrando novas e insuspeitadas possibilidades de realização para além dos edifícios ou das artes visuais. A crítica à capela Notre-Dame du Haut tem grande significação, como se confirmasse que a ideia corbusiana, a certa altura, pertencesse mais a Cabral do que ao próprio Le Corbusier. Daí o poeta sentir-se desembaraçado para exigir do mestre coerência e rigor.

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Há que se resguardar, no entanto, que o julgamento de “Fábula de um arquiteto” não tem como alvo a estereotomia ou as construções antigas. O poema tem na mira a cenografia – a falsa estereotomia – e a negação da conquista da forma moderna no seio da própria arte contemporânea. Tal aspecto ficará mais claro com a leitura de outros dois poemas, ambos de A educação pela pedra. O primeiro é “Nas covas de Baza”:

O cigano desliza por encima da terra

não podendo acima dela, sobrepairado;

jamais a toca, sequer calçadamente,

senão supercalçado: de cavalo, carro.

O cigano foge da terra, de afagá-la,

dela carne nua ou viva, no esfolado;

lhe repugna, ele que pouco a cultiva,

o hálito sexual da terra sob o arado.

 

2

De onde, quem sabe, o cigano das covas

dormir na entranha da terra, enfiado;

dentro dela, e nela de corpo inteiro,

dentros mais de ventre que de abraço.

Contudo, dorme na terra uterinamente,

dormir de feto, não o dormir de falo;

escavando a cova sempre, para dormir

mais longe da porta, sexo inevitável.

Com o segundo, “Nas covas de Guadix”, compõe-se mais que um par temático, pois o poema é um reaproveitamento dos versos do outro (ou vice-versa) em sua totalidade. O novo texto surge da permuta e do encaixe:

O cigano desliza por encima da terra

não podendo acima dela, sobrepairado;

lhe repugna, ele que pouco a cultiva,

o hálito sexual da terra sob o arado.

Contudo, dorme na terra uterinamente,

dormir de feto, não o dormir de falo;

dentro dela, e nela de corpo inteiro,

dentros mais de ventre que de abraço.

 

O cigano foge da terra, de afagá-la,

dela carne nua ou viva, ou esfolado;

jamais a toca, sequer calçadamente,

senão supercalçado; de cavalo, carro.

De onde, quem sabe, o cigano das covas

dormir na entranha da terra, enfiado;

escavando a cova sempre, para dormir

mais longe da porta, sexo inevitável.

 

As covas são as mais antigas, simples e econômicas moradias humanas. Também conhecidas como habitações trogloditas, podem ser encontradas na China, na Turquia, na Itália, na Espanha e nos Estados Unidos. Naturais ou escavadas artificialmente na terra, apresentam variações quanto à forma, ao tamanho – podem abrigar apenas um homem ou tribos inteiras – e aos materiais empregados. Porém, sempre se originam do aproveitamento equilibrado das condições climáticas e geológicas, razão da extrema organicidade e fusão com o terreno e a paisagem. Esplêndidas expressões da carência e da sensibilidade, apresentam escasso ou mesmo nenhum acréscimo construtivo, com espaços internos e externos concebidos sem qualquer desperdício.

Os poemas de Cabral falam de duas regiões de Granada, na Espanha. A serra de Baza fica na parte oriental da Andaluzia, e seus primeiros povoamentos datam do Neolítico Médio (V milênio a.C.). Mimetizadas com a paisagem da montanha mediterrânea, as covas de Baza são construídas com pedra, madeira e xisto. Têm forma cúbica irregular, os tamanhos variam de acordo com o número de membros das famílias, e as fachadas são cobertas de barro.28 Já as covas de Guadix são conhecidas desde o final do século 15, quando tribos de ciganos começaram a criar suas moradias escavando as colinas aos pés da serra Nevada, aproveitando a brandura de sua argila. Chaminés brancas, em forma de cone, servem para ventilar o interior, e são os únicos elementos que se podem distinguir a distância.

“As casas têm uma fluente e escultórica qualidade, marcadas por toda parte pela relação entre as formas devidas ao homem e as formações rochosas naturais, criando uma variedade de contrastes espaciais. […] A típica vivenda troglodita, em geral, é mais parte da natureza que do homem. O povoado de Guadix, ao contrário, expressa um bom equilíbrio entre arte e natureza e oferece a visão do homem como escultor da terra.”29

Cabral fala das covas de Baza e de Guadix em poemas cuja principal característica – emblemática de A educação pela pedra – é a estruturação de ambos a partir da reordenação dos mesmos versos. Considerando-se que os textos têm títulos diferentes, e que nomeiam os dois povoados, fica claro que o poeta aponta para uma similaridade entre as habitações de um e de outro. A posição dos versos não lhes altera os sentidos: o cigano relaciona-se com a terra sem uma proximidade, típica, por exemplo, dos agricultores e dos pastores. Mas, por outro lado, as habitações expressam fisicamente uma total intimidade. Diferenciam-se, com isso, dois tipos de aproximação com a terra: a sexual e a maternal. Negando-se ao afago, o habitante vernáculo das covas volta-se para a terra com a violência de quem a esfola, escava, avança “porta” adentro, penetra-a muito mais fundo, ao útero, até convertê-la em terra-mãe. Mas, como a mãe continua sendo mulher, afastar-se da porta-vagina é o único modo de resistir ao sexo, ao incesto.

Lembremos que essa indiferenciação entre construção e terra, da qual se origina uma arquitetura-materna, aparece ao final da “Fábula de um arquiteto”, em que a capela de Ronchamp, sua antiarquitetura, é resumida na imagem de uma “capela útero”, onde o homem, “com confortos de matriz”, retorna à condição de “feto”. Mas, se no poema-fábula há um julgamento estético e moral da anti-historicidade, “Nas covas de Baza” e “Nas covas de Guadix” apresentam – aparentemente sem qualquer restrição – a radicalidade de uma arquitetura anterior à arquitetura, à sua história. O orgânico surge nas covas como a expressão de um mundo verdadeiramente indiferenciado:  homem-terra-casa,  carícia-esfolamento,  mãe-mulher, porta-vagina, cama-útero, signos ininterruptos, imagens que relatam uma continuidade primordial.

Tal leitura explicaria a aparente ambiguidade do poeta com relação ao aconchego, ao conforto de “útero” proporcionado por certos espaços, já que a contundente crítica ao espaço fechado na “Fábula de um arquiteto” parece contrastar com um poema vizinho, “A urbanização do regaço”:

Os bairros mais antigos de Sevilha

criaram uma urbanização do regaço

para quem, em meio a qualquer praça,

sente o olho de alguém a espioná-lo,

para quem sente nu no meio da sala

e se veste com os cantos retirados.

Com ruas feitas com pedaços de rua,

se agregando mal, por mal colados,

com ruas feitas apenas com esquinas

e por onde o caminhar fia quadrado,

eles têm abrigos e íntimos de corpo

nos recantos em desvão e esconsados.

 

Com ruas medindo corredores de casa,

onde um balcão toca o do outro lado,

com ruas arruelando mais, em becos,

ou alargando, mas em mínimos largos,

os bairros mais antigos de Sevilha

criam o gosto pelo regaço urbanizado.

Eles têm o aconchego que a um corpo

dá estar noutro, interno ou aninhado,

para quem torce a avenida devassada

e enfia o embainhamento de um atalho,

para quem quer, quando fora de casa,

seus dentros e resguardos de quarto.

A estima de Cabral por Sevilha vem de tal urbanização “feminina”, aconchegante, onde mesmo a geometria “por onde o caminhar fia quadrado” cria “íntimos de corpo/ nos recantos”; ou, na paisagem do conforto que parece pressupor a suavidade de espaços arredondados, o poeta valoriza o ângulo reto, o que se faz agudo, a fragmentação e a linha descontínua. Mas a oposição aberto/ fechado vê-se, no poema, resolvida numa síntese em que o segundo termo aparece, ao contrário do proposto na “Fábula de um arquiteto”, pleno de positividade. A síntese é clara: a cidade, inevitavelmente espaço aberto – “fora de casa” –, consegue ter “dentros e resguardos de quarto”. Ora, o espaço urbano, “com ruas feitas com pedaços de rua,/ se agregando mal, por mal colados”, remete-nos à trama de ruelas, becos e ladeiras estreitas constituída pelos ajuntamentos das covas em Baza ou Guadix. O “dentro” – e seu consequente paradigma: conforto, aconchego, resguardo, feminilidade, intimidade, maternidade – não é negado como mal em si mesmo; ele é, ao contrário, aceito como algo afirmativo, desde que seja o resultado de formas nascidas da necessidade – desde que se justifique em termos históricos e culturais.

A crítica de Cabral volta-se, portanto, contra a fingida e artificial continuidade de Ronchamp, contra sua estereotomia cenográfica. Tal posicionamento nasce do pressuposto de que as formas nascem sob a pressão da história – ou que assim deve ser –, ainda que se possa, como estratégia, suspendê-la com vistas ao retorno de linguagens antigas ou arcaicas, mas obrigatoriamente transformadas pela atualização, ou seja, desde que em tensa relação com valores contemporâneos – outra vez e sempre, portanto, a história.

“Nas covas de Baza” e “Nas covas de Guadix” apresentam a estereotomia, o dentro, sem incorporar o espírito de tais construções: o tom analítico, distante, a sintaxe fragmentária e, sobretudo, a desarticulação e a remontagem, duplo procedimento de estruturação dos poemas, exibem uma série de configurações tectônicas. Ou seja, o conteúdo não se confirma na forma, o que expressa exemplarmente uma operação de leitura que tanto suspende a história quanto a faz retornar. O poema aceita a diferença, incorpora-a como tensão e aponta para a impossibilidade do isomorfismo entre a articulação dos poemas e a organicidade das covas. A capela Notre-Dame du Haut exibe, ao contrário, uma forma que persevera na indiferenciação das arquiteturas comunitárias do Mediterrâneo. Dessa obliteração das condições históricas e culturais que lhes deram forma, resulta um organismo que tenta esconder o desencontro entre forma, e conteúdo, diferentemente da visibilidade que Cabral impõe à linha descontínua entre seus poemas e as edificações em Baza e Guadix.

Lembremos do quanto foram importantes para Le Corbusier suas viagens  à Turquia, a Atenas, a Pompeia, às ilhas do Egeu, quando – ainda um jovem na casa dos 20 anos – se deparou tanto com o esplendor dos grandes monumentos quanto com o apuro das superfícies nuas e neutras das habitações populares. Em Vers une architecture, lemos que “a grande arquitetura está nas próprias origens da humanidade” e que “é função direta dos instintos humanos”.30 Nesse livro-manifesto, a justificação eloquente e mesmo escandalosa da modernidade mais radical associa-se à valorização da arquitetura instintiva do Mediterrâneo, reconhecendo-lhe o uso sensível e correto dos ângulos retos, dos eixos, dos quadrados e dos círculos: “Não há homem primitivo; há meios primitivos. Potencialmente, a ideia é constante desde o começo. […] Medindo, ele estabeleceu a ordem. Para medir, tomou seu passo, seu pé, seu cotovelo ou seu dedo. Impondo a ordem com seu pé ou com seu braço, criou um módulo que regula toda a obra; e esta obra está em sua escala, em sua conveniência, em seu bem-estar, em sua medida. Está na escala humana. Ele se harmoniza com ela; isso é o principal.”31

Retorno à villa Savoye: ali estão a estrutura clássica e o diagrama de proporções, bem como o branco da caiação das ilhas gregas. Se essas e outras referências retrospectivas saltam aos olhos, igualmente flagrante é o seu retesamento extremo, instituído por uma estética fundada na radicalidade da máquina e na nudez da estrutura definitivamente moderna.

Regresso também à “Fábula de um arquiteto”, à sua oposição entre a arquitetura e a antiarquitetura. E, com isso, ponho-me agora a preencher tais conceitos com exemplos concretos, de tal modo que seja possível contrapor, respectivamente, a villa Savoye e a capela Notre-Dame du Haut; ou, ainda, confrontar as covas de Granada e a mesma capela; enquanto, por outro lado, posso substituir Baza e Guadix por Sevilha. O antagonismo proposto por Cabral não é entre o moderno e o antigo – valores que ultrapassam épocas ou tipos de construção –, mas, conforme o contraste entre autenticidade e cenografia, no caso de Ronchamp, entre formas eticamente aceitáveis ou não. Questão de moralidade, portanto.

 

Eucanaã Ferraz (1961) é autor de Retratos com erro (2019) e de outros oito livros, reunidos num único volume, Poesia, publicado pela Imprensa Nacional/ Casa da Moeda de Portugal (2016). Por Sentimental, ganhou o Prêmio Portugal Telecom de poesia em 2012. É professor de literatura brasileira na UFRJ e consultor de literatura do Instituto Moreira Salles. Na serrote #30, assina o ensaio “Todos pareciam felizes”.

 

ERRATA: Na edição impressa, por um erro de revisão, no segundo parágrafo do ensaio houve uma troca de pronomes. Onde se lê “nos escritos sobre arquitetura e design em que Cabral escarnece sem piedade do gosto burguês”, o correto é “em que ele escarnece”. E onde se lê “ele registra de imediato, corbusianamente”, o correto é “Cabral registra”. Esta versão online traz as devidas correções.

 

NOTAS

  1. Inédita, a carta manuscrita pertence à coleção de Pedro Corrêa do Lago, a quem agradeço pelo acesso.
  2. Os irmãos Roberto – Marcelo, Milton e Maurício – foram os criadores do escritório carioca MMM Roberto, um dos mais importantes no Brasil da segunda metade do século 20.
  3. Refiro-me aqui a algumas conversas minhas com Rodrigo Cabral de Melo.
  4. Haroldo de Campos, Metalinguagem. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 69.
  5. Entrevista concedida a Oswaldo Amorim. Veja, São Paulo, 28.06.1972. Trechos reproduzidos em Félix de Athayde (org.), Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 133.
  6. Giulio Carlo Argan, Arte moderna. Trad. Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 388.
  7. Ibidem.
  8. Pode-se ver algo semelhante nas imagens de “O engenheiro” e na cidade ideal de “Fábula de Anfion”, poemas em que o vocabulário arquitetônico de João Cabral é claramente corbusiano.
  9. Giulio Carlo Argan, Proyecto y destino. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1969, pp. 190-191.
  10. Referência a “Uma faca só lâmina”, poema fundamental, que traz um subtítulo de esclarecimento entre parênteses: “(ou: serventia das ideias fixas)”.
  11. Giulio Carlo Argan, Proyecto y destino, op. cit., p. 193.
  12. Le Corbusier, Vers une architecture. Coleção Esprit Nouveau, 14. ed. Paris: G. Crès, 1925, p. 5.
  13. Ibidem, p. 174. “Les objets de la nature et les œuvres du calcul son nettement formés; leur organisation est sans ambigüité.”
  14. Ibidem. “C’est parce qu’on voit bien, qu’on peut lire, savoir, et ressentir l’accord. Je retiens: il faut dans l’œuvre d’art formuler nettement.”
  1. Maxwell Fry, A arte na era da máquina. Trad. Thereza Martins Pinheiro. São Paulo: Perspectiva, 1976, pp. 188-189.
  2. Ibidem.
  3. Ibidem.
  4. Giulio Carlo Argan, Arte moderna, op. cit., 1998, p. 387.
  5. Apud Maurice Besset, Le Corbusier. Genebra: Éditions d’Art Albert Skira, 1992,
  6. 101. “La maison est une boîte en l’air.”
  7. Imagem retirada do poema “Fábula de Anfion”: “leve laje sonhei/ largada no espaço”.
  8. Kenneth Frampton, História crítica da arquitetura moderna. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 190.
  9. “Promenade architecturale.”
  10. Apud Maurice Besset, op. cit., p. 100.
  11. Benedito Nunes, João Cabral de Melo Neto. Petrópolis: Vozes, 1971, p. 114.
  12. Haroldo de Campos, op. cit., p. 70.
  13. Benedito Nunes, op. cit., p. 114.
  14. Ibidem, pp. 115-116.
  15. Atualmente, a região está despovoada e faz parte do Parque Natural de la Sierra de Baza.
  16. Myron Goldfinger, Antes de la arquitectura: edificación y habitat anónimos en los países mediterráneos. Trad. Juan-Eduardo Cirlot. Barcelona: Gustavo Gili, 1970, p. 136.
  17. Le Corbusier, op. cit., p. 44.
  18. Ibidem, pp. 43-44.

 

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