O que não existe

Nas férias, quando era pequena, ia com os primos ver o abate e comprar bala na venda. Eles sentavam-se no alto da cerca de tábuas que delimitava o matadouro e de lá olhavam a marretada na cabeça dos animais, cada um deles sendo içado pelas patas traseiras, o couro saindo por inteiro, como se fosse um tapete emprestado para cobrir a carne viva que retornasse à forma original, e o sangue escorrendo de suas gargantas abertas por um corte fundo para um sulco de cimento. Frida não gostava daquilo, ficava enjoada, apressando a volta, rodeando o lugar sem olhar para dentro. Os meninos eram valentes, falavam o tempo todo, mostrando isso e aquilo. Os vaquei­ros, com maldade divertida, os convidavam a entrar para dar a martelada, puxar o tapete, fazer o talho.

Helena sentia um pouco de medo por gostar de ver todas as partes do abate. Não gostava de sangue, nem de brigas, tinha medo de gritos, sentia-se esquisita em seu fascínio por cada detalhe do abate: a hesitação do boi, o som do marrete, os olhos de alguns vaqueiros que se fechavam no momento em que o martelo batia no crânio do boi, a forma como as pernas do bicho se dobravam e o torso tombando no chão. Tudo prendia sua atenção, anteci­pava o couro sendo puxado, o talho reto na garganta, o leito de sangue que nunca soube para onde corria.

Não gostava de ver carne de açougue, alcatra sendo cortada em bifes, detestava ver pescoço de frango torcido e suas penas arrancadas. Tinha aflição de machucados, virava o rosto para o lado quando um curativo era refeito. E, no entanto, o trabalho entre os homens e os bois a admirava.

Na sede, cavalgando para o matadouro, apeando-se do cavalo, ela tinha a incômoda lucidez da facilidade daquelas mortes, queria chegar logo para se livrar de sua inteligência pequena. Lá chegando tudo mudava. Havia homens e havia bois, uma luta com passos, sons, uma coisa depois da outra, instrumentos e os braços dos homens, gestos deles e dos bois, pernas e ancas que despencavam. A máquina com roldanas e correntes que puxavam os corpos para cima, enferrujadas, o barulho dos metais se chocando encobria os mugidos dos bois ainda vivos e de seus cascos no chão de pedra ama­rela, suja de barro e sangue. O som do encontro da marreta com os ossos do crânio do boi silenciava, por um estendido segundo, roldanas e correntes, depois tudo voltava a ser simultâneo.

Uma vez, um dos primos aceitou a provocação dos homens e foi. Já tinha 13 anos, pegou o martelo e deu na cabeça do boi. O bicho caiu, mas não morreu. O vaqueiro demorou a dar fim ao sofrimento, ficou olhando para a aflição do menino. Helena, ali no alto, antes da ladeira de cascalho, recém- -casada e com o ciúme ainda ardendo, pegou a marreta e deu na cabeça do homem. Ela se rachou ao meio, do topo do crânio ao queixo, devagar, fazendo um risco em ziguezague, separando o rosto do vaqueiro com sua expressão de vampiro feliz em duas partes. Um meio sorriso para cada lado, e a carne vermelha, indiferente, lá dentro.

Sete em ponto, os urubus voam longe. Nesse ritmo lento, tem mais de uma hora de caminhada pela frente. Passa ao lado da bezerreira. Um vaqueiro que ela não conhece dá mamadeira para uma bezerra com as pernas finas demais para se manter de pé. As outras tomam leite de baldes encaixados na porteira de cada baia.

Frida a convencera a passar um mês na fazenda (ela ainda chamava de fazenda, a fazenda) para terminar de escrever a tese. O prazo final estava che­gando e Helena tinha enlouquecido. Depois de um ano de trabalho, deses­creveu tudo que havia feito. O texto estava com mais de 200 páginas revistas, discutidas e aprovadas por seu orientador quando ela resolveu rever mais uma vez, antes de escrever o capítulo final e a conclusão. Em uma semana, trabalhando na mesma rotina do último ano, nove horas com pausa para o almoço, ela apagou todo seu texto. No computador não sobrou nenhum arquivo relativo à tese. De forma segura e definitiva, ela apagara, além das 200 páginas, anotações, fichamentos, relatórios para o órgão de pesquisa que financiava sua bolsa de estudos, correspondência com outros pesquisadores e todas as imagens relativas a seu trabalho. No arquivo de texto nomeado untitled 1, havia apenas uma estranha dedicatória: aos meus filhos.

No dia seguinte foi levada ao hospital com dores no peito e rigidez mus­cular no corpo inteiro. Depois de alguns exames, mandaram-na de volta para casa, não havia nada em seu coração, nem na sua cabeça. O orientador sugeriu que pedissem uma prorrogação de prazo, Helena disse “não”.

Ela chegou em casa e dormiu 16 horas. Acordou às duas da tarde e olhou pela janela, o sol se deixava ver por detrás do chuvisco. Helena foi para o centro da cidade. Durante este ano de pesquisa, pensara algumas vezes em andar à toa por ruas cheias de gente desconhecida. Tinha esse desejo nas pequenas pausas que se permitia entre uma página e outra. No começo era uma brincadeira, imaginar-se andando sozinha no meio de pessoas estra­nhas. Depois ficou mais forte e mais forte, quase um desejo de mulher grá­vida, comer abóbora às duas da manhã. Depois, mais para o fim, quando já quase não conseguia acrescentar quatro frases ao seu trabalho, a vontade de ser uma mulher sem nome andando no meio de gente para cá e para lá era tão forte quanto a crise de abstinência de um alcoólatra. Começou a apa­gar seu texto, a vontade de ser desconhecida foi sumindo até desaparecer. Quando, às duas da tarde, resolveu ir ao centro de São Paulo, não lembrava mais dessa vontade, foi porque lhe pareceu uma boa ideia.

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