O que não existe

Há vários urubus pousados na cerca, outros planam no céu. Um bezerro magro afunda no lodo que circunda o matadouro. As pernas já sumiram, metade do pequeno tronco, seu pescoço e a cabeça estão para fora. Ele muge baixo, sem forças. A mãe está amarrada em um poste de luz alto e firme, seu mugido não é de despedida, nem de tristeza, parece ser uma corda que tenta esticar-se ao máximo para alcançar o filho. Próximos ao bezerro, dois urubus estrebucham e outro jaz imóvel. Quase fora de sua área de visão, centrada no bezerro afundando, ela vê a silhueta de um homem fumando um cigarro. Helena corre em direção ao bezerro, seus pés afundam no lodo; quando tenta puxá-los, afunda-se ainda mais, até o final da coxa. Consegue colocar uma de suas mãos na beirada seca do pântano e a outra em uma tábua comprida, apoiada em duas pequenas ilhas de terra firme. Tem que fazer muita força para puxar seu corpo para cima. Contra o peso absurdo do barro, conta ape­nas com o apoio das mãos e da musculatura das pernas, sem nenhum apoio no chão. Apesar de usar toda a sua força, é imperceptível o pouco que con­segue se elevar da lama, o peso da terra encharcada é muito grande e seu apoio pequeno. Sabe que vai conseguir se mantiver a força constante. Se rela­xar, afunda. Ouve um rufar de asas sobre si, o sol escurece, e logo um tiro. O urubu despenca quase sobre sua cabeça. Ela treme de medo, abaixa a cabeça protegendo-se do próximo tiro. Do seu lado, ouve o gorgolejar de sangue na garganta do urubu. Segura! Aqui, ó! Uma corda grossa surge perto da sua mão, ela olha e vê um homem velho na outra ponta. Helena segura a corda, devagar e com muita força ele consegue puxá-la para fora.

Onze horas da manhã. Helena e o homem fumam sentados no meio-fio da calçada da venda. Ele é alto, tem a pele preta, os olhos puxados de índio e o cabelo branco. Ela se encosta na parede e fecha os olhos. O mugido da vaca continua e continua. Não há quem consiga salvar seu filho. O homem colocou a tábua sobre o brejo e enlaçou o corpo do bezerro com uma corda. Passou a corda por trás do poste de luz alto e puxou o quanto pôde. O bezerro não se moveu. Amarrou a corda na vaca e tentou que ela o puxasse, não funcionou também. Ele, a vaca e o bezerro se feriram com a corda, a mão do homem san­gra. Ele amarrou a vaca no poste para não perdê-la afundada junto com o filho. É filha, uma bezerra, disse o homem. Por que você não mata ela e acaba com esse sofrimento? Ficam em silêncio. A vaca continua a mugir, não para nunca. E se ela pudesse se despedir da filha? Ajudá-la a morrer, lamber, alguma coisa?, pergunta Helena. O homem não entende o que ela quer dizer. Ela também não entende. Não tem vontade de abrir os olhos. O mugido não para. Às vezes um urubu alça voo. Depois outro pousa. Helena ouve o som das asas. O lodo que lentamente engole o bezerro não faz barulho. Helena ouve o homem riscando um fósforo, sente o cheiro de pólvora e tabaco. Eu só tenho mais uma bala e são muitos os urubus. Helena abre os olhos, pede outro cigarro. Adalberto, eu me chamo Adalberto. Helena, prazer. A venda fechou faz tempo, tempo que isso aqui não funciona mais. Helena acende o seu cigarro e fecha os olhos de novo. O mugido da vaca continua, nem mais alto nem mais baixo. O da bezerra ainda existe, mal dá para ouvir. E mesmo assim ainda morre bicho, disse Helena já quase dormindo. O som do mugido aumenta em seu sono, ela pega a espin­garda e mata a vaca, um tiro certeiro, as pernas dianteiras da vaca se dobram e ela tomba, Helena volta a dormir tranquila, recostada na cal da parede da antiga venda. Um tiro a acorda assustada; quando vê, já está de pé protegendo seu rosto com as mãos. Adalberto matou a bezerra. Adalberto matou a bezerra. Só o pescoço e a cabecinha dela ainda estavam de fora. A cabeça cai de lado no lodo, com os olhos mortos, assustados e muito redondos. Ela tinha os cílios longos e o focinho rosa, como as bezerras têm. Um filete de sangue sai da testa entre os chifres que não existem. Adalberto afasta-se do matadouro puxando a vaca. Helena se dá conta de que o mugido parou, de que Adalberto se des­pediu e ela ficou parada. Queria ter se despedido, dito algo, queria pedir mais um cigarro. Guinchos e asas a farfalhar sobre o lodo trazem Helena de volta, as asas escondem o horror que deve estar acontecendo dentro do círculo negro. Ela enxuga seus olhos, cala um novo soluço e volta para casa.

Pensar sobre o que não existe. O rosto esboçado é o rosto que não existe, a corda no grito da vaca é a corda que não existe, a fotografia da vaca lambendo o boi em um gesto de tanta coisa é uma coisa que não existe. Os filhos de Helena são o que não existe. Escrever o que não existe. Helena lembra-se de um autor­retrato da jovem fotógrafa estrangeira, miúda e branca, cabelos castanho-cla­ros, ralos como os de uma menina de um ano de idade, compenetrada e séria. Ela lê algo que está fora da fotografia, ao fundo um morro coberto de capim com eucaliptos no topo. É um rosto justo e bonito. Helena sente aquele rosto colar-se ao seu, mais que uma teia vegetal, mais que um pano ou um couro.

Três da tarde ela chega em casa. Marcos, Frida e Emílio estão na varanda, conversando e bebendo. Eles riem, felizes. Emílio levanta-se e vem abra­çar Helena. Ele caminha rápido em sua direção, ela não tem forças para se apressar. Ele é muito querido, ela sente o cheiro dele em sua roupa, o cheiro do suor de Emílio na cama depois de transarem, ela sente o cheiro dele na camisa frouxa, no casacão e em sua pele verdadeira.

 

Natural de São Paulo, capital, onde nasceu em 1961, BEATRIZ ERACHER é autora dos romances Azul e dura (7 Letras, 2002), Não falei (Editora 34, 2004) e Antônio (Editora 34, 2007; vencedor do prêmio Jabuti e segundo colocado no prêmio Portugal Telecom). Recentemente, publicou seu primeiro livro de contos, Meu amor (Editora 34, 2009). Anteriormente, colaborou no argu­mento do filme Cronicamente inviável (2000), dirigido por Sergio Bianchi, com quem escreveu o filme Os inquilinos, prêmio de Melhor Roteiro do festival de cinema do Rio de Janeiro em 2009. Participou ainda da fundação da revista de literatura e filosofia 34 Letras e da Editora 34.

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