Virando o jogo

EPÍLOGO

A demora na consolidação do potencial expressivo e artís­tico dos jogos eletrônicos é um fenômeno cultural mais interessante do que aparenta e menos compreendido do que se pensa. De um lado, muitos pesquisadores, políticos, jornalistas e críticos culturais apontam com desdém para os mundos ficcionais esquemáticos e infantis dos games e denunciam suas propriedades corruptoras com um alar­mismo não muito diferente daquele que, no século 10, via na leitura silenciosa de livros o risco de mergulhar o leitor num perigoso estado de devaneio e prostração; do outro, os aficio­nados juram de joelhos que videogame é arte, mas parecem não entender muito bem por quê, ou pelo menos se mostram incapazes de argumentar a favor de sua posição com qual­quer discurso que ultrapasse o conhecimento e o jargão dos já iniciados. Por algum motivo, o videogame tem enfrentado dificuldades para transcender seu estágio incunabular e se estabelecer como uma linguagem narrativa acabada e coerente.

A culpa por essa demora reside menos nos jogos eletrônicos do que em nossa própria incapacidade de compreender de que maneira sua narrativa funciona e de que modo ela nos afeta. Somos muito bons em jogar, mas péssimos em defi­nir o que, exatamente, nos atrai nesses jogos. Primeiro, é preciso admitir – e isso será duro para muitos gamers – que não jogamos primordialmente por causa das histórias, dos personagens ou dos enredos dos jogos. Em seguida, teremos que entender um pouco melhor qual é a natureza particular dessas narrativas procedimentais, a maneira exclusiva como o meio dos jogos eletrônicos nos envolve e emociona. Por fim, poderemos entender de que forma a história ou enredo tradicional seguem sendo muito importantes, agindo como uma espé­cie de catalisador para que os games atinjam todo o seu potencial expressivo. Jogos como Shadow of the Colossus e Prince of Persia apontam caminhos para uma arte que alie a lógica do computador à narrativa tradicional, proporcio­nando experiências interativas capazes de gerar emoções profundas.

Alguns meses depois do lançamento de Prince of Persia, a Ubisoft Montreal lançou um episódio extra intitulado Epilogue. Esse pequeno jogo de cerca de três horas de duração começa nos instantes seguintes à ressurreição de Elika pelo ladrão. A dupla busca refúgio em um palácio subterrâneo e precisa escapar mais uma vez dos ataques de Ahriman, que corrompeu tudo à sua volta. O rei ressurge, ainda dominado pelo mal, mas sua função na continuidade da história permanece um tanto obscura. Elika e o ladrão precisam colaborar novamente para escapar dos calabouços com vida. Elika não está contente com a situação e não quer papo com você, mas a argumentação do ladrão a amolece, e aos pou­cos a relação que alcançaram no primeiro jogo vai se restabelecendo. Depois de muitos desafios, os dois escapam e chegam a uma sacada que dá para o vasto deserto. É a deixa para a conclusão romântica de tudo o que aconteceu até agora. Mas Elika tem outros planos. Ela ainda pretende impedir Ahriman, e parece preferir que cada um de vocês dois siga o próprio caminho. Você diz, aflito: “Elika, você não vai conseguir fazer isso sozinha”. Ela responde: “É por isso que devo encontrar meu povo”. E a garota que você ressuscitou por amor, contra a vontade dela, vai embora e te deixa sozinho com os sussuros do deus maligno que você mesmo libertou. Engula essa agora. Não há escolhas. Nem fim.

 

DANIEL GALERA é um dos destaques da nova geração de escritores brasileiros e é também tradutor. Seu livro Até o dia em que o cão morreu (Companhia das Letras, 2007) foi adaptado para o cinema pelos diretores Beto Brant e Renato Ciasca, com o título Cão sem dono. Ele é ainda autor de Mãos de cavalo (2006) e Cordilheira (2008), ambos pela Companhia das Letras. Prepara com Rafael Cou­tinho a história em quadrinhos Cachalote, que já foi parcialmente publicada pela revista Piauí (n. 33, jun. 2009).

 

NOTAS

1. Prince of Persia, 2008, desenvolvido pela Ubisoft Montreal para Playstation 3, Xbox360 e pc. O jogo de 2008 é uma reinvenção da série que teve origem com o clássico Prince of Persia, desenvolvido pela Broderbund para pcs em 1989, um jogo de plataforma em 2D em que também se controlava um protagonista sem nome que precisava enfrentar os perigos de uma torre para salvar a princesa das garras do vizir. O original se notabilizou pelas animações fluidas e pela representação crua da morte – em vez de sumir da tela com uma musiquinha ou qualquer outra coisa mais simbólica, o protagonista era explicitamente empalado por estacas ou dilacerado pelas espadas dos inimigos, com muito sangue etc. A série foi reformulada para as gerações de consoles 3D pela Ubisoft em 2003, com o lançamento de Prince ofPersia: The Sands of Time, para diversas plataformas. O jogo de 2008 mantém o universo temático e a movimentação fluida, mas traz personagens e enredo totalmente novos, elimina a violência explícita e promove uma reformulação estética total com gráficos animados em estilo cel-shading, que remetem a ilustrações feitas à mão.

2. Os manuais de instruções tornaram-se obsoletos nos jogos modernos. Quase todo jogo inicia com uma fase de tutorial em que as mecânicas e os controles são descritos in-game, ou seja, com instruções integradas ao próprio ato de jogar, ao mesmo tempo que o estopim do enredo é apresentado. Como vamos ver, descobrir as regras do jogo é um fator importante do prazer de jogar, e os autores têm se esforçado para deixar o jogador com a deliciosa sensação de que aprendeu tudo sozinho.

3. Apesar de o jogo ter o título Prince of Persia e de todo mundo que escreve a seu respeito chamar o protagonista de príncipe, eu o chamarei de ladrão, porque é isso que ele é, e nunca deixa de ser.

4. A cosmogonia de Prince of Persia é baseada no zoroastrismo, antiga religião persa.

5. Se você quiser assistir a tudo isso em vídeo, recorra ao YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=XsNo39QxOxw e http://www.youtube.com/watch?v=P_qvlvJkoVE. Tenha sempre em mente que assistir a um jogo enquanto ele é jogado é só uma fração ínfima da experiência de jogá-lo. E isso não se limita aos videogames.

6. Seu Hamlet no Holodeck (São Paulo: Itaú Cultural/Unesp, 2003), publicado originalmente em 1997, citado neste ensaio, é uma boa introdução aos atributos narrativos dos meios digitais.

7. Hoje em dia, pode-se ver os belos olhos de Samus refletidos no visor de seu capacete (que é a própria tela da Tv) na série de jogos Metroid Prime (Cube e Wii), ou contemplar suas inquestionáveis formas femininas metidas num collant de látex azul-claro, balançando o rabo de cavalo loiro enquanto luta(mos) contra a boa e velha princesa Peach em Super Smash Bros. Brawl (Wii).

8. Os Massive Multiplayer On-line Role-Playing Games permitem que milhões de jogadores do mundo inteiro construam personagens e enfrentem desafios num mundo virtual compartilhado. Embora esses mundos sejam pré-programados, a atuação dos jogadores que podem conversar entre si via chat é o elemento definidor das narrativas em curso. Não raro, os jogos têm de ser reprogramados de acordo com o comportamento dos usuários – ajustando regras ou acrescentando missões, por exemplo.

9. Olá, não-gamer. É o seguinte: a conectividade das plataformas de última geração introduziu o conceito de troféus nos jogos mais recentes. Determinadas realizações do jogador – matar x monstros, encontrar tesouros, salvar x inocentes, apreciar uma linda vista – lhe rendem troféus que ficam “expostos” nas redes on-line para que outros jogadores possam vê-los. Gamers gostam de cumprir objetivos exigentes e coletar coisas, e depois gostam de esfregar na cara dos outros. É como ter na biblioteca uma medalla assegurando que você leu Proust no original cinco vezes.

10. Flower (PS3) é outro jogo que emprega a restauração de cenários para fins de imersão e agência. Controlando rajadas como se fosse a consciência do próprio vento, você sobrevoa cenários magníficosempurrando pétalas para fazer brotar flores e plantas que devolvem vida natural a um mundo corrompido pela engenharia humana. Do simples prazer de balançar o capim até o clímax final em que arranha-céus de uma metrópole cinza são detonados por explosões coloridas de pétalas, Flower é uma obra-prima da narrativa interativa.

11. Há algo de melancólico em jogar os games da série Uncharted e constatar que sua inquestionável excelência técnica e artística resulta em pouco mais do que um filme jogável. A experiência que proporcionam é tão divertida, vistosa e frustrante quanto a de assistir a Indiana Jones e a caveira de cristal: o apego às convenções é tamanho que o estardalhaço resulta em um anticlímax.

12. Tematicamente, a maior parte dos jogos ainda leva em conta a maioria jovem da audiência, mas isso tende a mudar com o envelhecimento dos gamers das décadas passadas e com a popularização dos jogos eletrônicos em geral. De acordo com uma pesquisa norte-americana, 81% dos adultos entre 18 e 29 anos jogavam em 2008, e, na faixa dos 30 aos 49 anos, a porcentagem era de sólidos 60%. Para saber mais sobre a pesquisa, acesse http://pewresearch.org/pubs/1048/video-games-adults-are-players-too.

13. Você pode baixá-lo em http://hcsoftware.sourceforge.net/passage. Se puder jogá-lo no seu computador antes de ler a descrição que sucede esta nota, faça isso.

14. No contexto dos games, o conceito hinduísta do avatar (materialização de um ser divino na terra) designa a imagem gráfica de um personagem que o jogador está representando. Quando jogo Passage, o bonequinho é o meu avatar.

15. http://www.destructoid.com/-i-passage-i-the-greatest-five-minute-long-game-ever-made-58g61.phtml.

16. Cambridge: Harvard University Press, 2007.

17. Na maioria dos jogos em que o avatar pode se agarrar a algo, basta um toque no botão para executar a ação. Em Shadow of the Colossus, o fato de que precisamos manter um botão

pressionado o tempo todo para que Wander continue agarrado ao corpo dos inocentes colossos nunca deixa o jogador perder de vista a insistência e a vontade necessárias para matá-los. Nos games, a forma de controle também pode ser uma metáfora.

18. No jargão dos games, são “chefes’ ou “chefões’ de fase.

19. Não que realmente importe. A história de vida da concubina é apenas um disfarce para sua função no jogo. Segundo Wark: “O enredo é só um álibi”.

20. Um comentário ilustrativo típico, colhido de um vídeo do YouTube: “Ok, o jogo não fez nenhum sentido pra mim, você tem que fazer um monte de merda, e ele acaba libertando a escuridão de novo! (balança a cabeça) Nunca vou conseguir entender isso.”

21. O final no YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=L3zg-xco2ma. A edição corta algumas passagens mais longas, como o trajeto pelo corredor com Elika no colo enquanto rolam os créditos, mas dá para ter uma ideia geral. Repare nos deuses sussurrando censuras e incentivos.

4 respostas para Virando o jogo

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