Virando o jogo

Os desenvolvedores da Valve sabiam muito bem o que estavam fazendo. A visão despreocupada desses cenários lindos logo depois de situações de grande tensão induz uma experiência sublime. Schopenhauer, em A metafí­sica do belo, afirmava: “O sentimento do sublime se diferencia do belo apenas por uma adição: o elevar-se para além da conhecida relação hostil do objeto contemplado com a vontade”. O sublime estético surge da inesperada posição de segurança diante de algo que – sentimos intuitivamente – poderia nos aniquilar: o maremoto visto do helicóptero, o céu estrelado visto na companhia de alguém querido, o silêncio absoluto desligado de circunstâncias hostis. Em um videogame, todo cenário abriga ameaças, e a precaução é a atitude padrão do jogador. Quando o jogo nos oferece descanso e uma bela vista, o prazer sensorial é intenso e real. Outros exemplos recentes de jogos que exploram amplamente esse prazer são Flower, um bri­lhante título independente para PlayStation3, e Uncharted2, também exclusivo do Ps3. Neste último, depois de horas de ação frenética, o herói Nathan Drake acorda ferido, sem saber onde está, e perambula por um vilarejo tibetano encravado no coração dos Himalaias. O cenário é magnífico. Não há inimigos, só uma comunidade pacífica com a qual podemos interagir sem nenhum objetivo aparente. Você entra numa cabana e encontra um velhinho tocando um instrumento exótico. Chuta uma bola de volta para as crianças e, mais adiante, as encontra escondidas atrás do muro, à sua espera, e as risadas infantis cortam o silêncio da altitude quando você as descobre. Imersão e agência. Por isso, algumas fases depois, quando retorna de uma exploração na neve e encontra o vilarejo em chamas, cheio de corpos assassinados, você sente raiva e tristeza verdadeiras, e a sequência de combate que se inicia será jogada com um genuíno desejo de vingança.

Prince of Persia faz uso muito eficiente da função imersiva do ambiente para fins narrativos. Basta ver algumas imagens estáticas do jogo para averiguar a beleza de seus persona­gens e cenários. São vales verdejantes, moinhos de madeira amontoando-se em estruturas megalomaníacas, cachoeiras e penhascos que conduzem a torres impossivelmente altas de onde se pode ver balões gigantescos desafiando a gravidade. E os detalhes! Borboletas de várias cores tocam o capim florido e circulam ao redor do casal protagonista, grades com intrinca­dos motivos orientais filtram a luz amarela de um sol baço. Em movimento, o jogo nos arrebata com frequentes exibições de virtuosismo artístico. O desejo de deleitar o jogador com ima­gem, som e movimento é tão entranhado nesse jogo que há dois troféus secretos9 que se pode obter simplesmente andando até a beira de vigas em locais altos para contemplar a vista.

O problema, recorde, é que Ahriman escapou e corrom­peu tudo com a supracitada substância negra mortífera que neutraliza a luz e a cor do mundo. Na prática, isso significa que os diversos setores do reino estão cinzentos, frios, sem vida e tomados por fossos e bolhas rastejantes de gosma preta letal. Para restaurar cada setor – ou, para usar a ter­minologia dos games, concluir cada fase – você, ladrão, tem que atravessar os cenários cheios de perigos, matar mons­tros evocados por Ahriman e alcançar os terrenos férteis, locais em que Elika pode transferir para o cenário a energia mágica que trouxe consigo do além. Chegar até os tais terre­nos não é fácil e exigirá um espetáculo de acrobacias, lutas e resolução de enigmas. Elika o acompanha de perto. Sempre que você cai, ela te salva na hora, de modo que você nunca morre. Em certas manobras, como transpondo videiras na face de penhascos, ela subirá elegantemente na sua garupa e terá de ouvir de você coisas como “Você pesa mais do que parece”. É, você é esse tipo de cara.

Quando Elika enfim restaura um terreno fértil, a cor e a vida retornam a toda aquela fase. Isso acontece em tempo real com um encantador efeito de animação que se expande radialmente tomando conta do cenário visível e revelando a beleza natural e arquitetônica até então oculta. A sensação de estar agindo de forma tão radical em todo o cenário do jogo não só encharca o jogador com os prazeres do coque­tel imersão/agência, mas também reforça a compreensão dos anseios de Elika. A cada restauração, vemos e sentimos pelo que, afinal, ela está lutando. O reino da princesa é lindo de doer, e descobrir aos poucos cada novo ambiente desse mundo desabitado ao lado de Elika vai fortalecendo o laço entre os personagens, ou seja, o nosso laço com ela. Um sub-texto mítico – ou até mesmo bíblico, se forçarmos um pouco a barra – assoma aos poucos, à medida que esse paraíso é descortinado por seu único casal de habitantes.10

E mais: depois da restauração mágica, Elika desmaia e acorda logo em seguida, muito enfraquecida. Surgem, então, dezenas de esferas luminosas espalhadas por todos os can­tos do cenário. Você deve chegar até elas e coletá-las para reabastecer a energia vital de Elika. É uma tarefa mecânica, complicada e, pelo menos de início, absurda. Nesse ponto, muitos jogadores praguejarão contra a Ubisoft por ter estendido artificialmente a duração do jogo, forçando-nos a cumprir uma tarefa sem sentido, compensada apenas, talvez, pela beleza do cenário e pela satisfação de per­corrê-lo vertiginosamente com os movimentos fluidos do personagem que está sob seu controle. Ver a dupla de heróis responder a nossos comandos com ações tão plás­ticas e eficientes, numa dupla coreografia que enche os olhos e proporciona uma navegação prazerosa pelo reino dos Ahura, facilita muito a permanência do jogador no transe imersivo, mas, sem um propósito claro, essa magia pode ser desfeita diante do primeiro instante de frustra­ção, como a incapacidade de alcançar aquela plataforma onde estão as três esferas luminosas que preciso coletar para ir em frente. Aos poucos, porém, conforme a relação com Elika vai se solidificando, a motivação para cumprir essa exigência do jogo vai ganhando forma. A cada nova fase, é mais desagradável ver Elika em apuros. Houve um momento em que deixei de ver essa etapa como uma obrigação. Não era uma questão de querer ou não que­rer fazer. Eu tinha de ajudar minha companheira porque gostava dela.

A orquestração de Prince of Persia para que se estabe­leça um vínculo afetivo entre o ladrão/jogador e Elika vai além da mútua dependência que se manifesta na própria mecânica do jogo. Há um outro recurso, igualmente cru­cial: o sistema de diálogos. Em jogos de aventura como esse, o mais comum é que os personagens conversem quando o programa quer que conversem. As falas são acionadas em momentos específicos da narrativa, e o jogador só tem o trabalho de ouvi-las. É assim nos dois jogos da série Uncharted, por exemplo, que tentam com tanta força ser um filme de ação que conseguem, para o bem e para o mal.11 Em Prince of Persia, há alguns diálo­gos que entram automaticamente em situações-chave, sobretudo entre os protagonistas e os demais perso­nagens. Porém, a maior parte dos diálogos entre você e Elika só ocorre se o jogador se aproxima dela e pressiona um botão específico. Isso desencadeia uma troca de falas que só prosseguirá se você continuar apertando o botão de vez em quando.

Você não precisa fazer isso. É possível ir até o fim do jogo sem forçar o ladrão e Elika a bater papo, e 90% do que eles dizem soa como tagarelice. Mas é nesses diálogos opcionais que a maior parte da história pregressa, da personali­dade, das ideias e dos desejos dos protagonistas vem à tona. Ao optar por esse sistema de acionamento de diálogos à primeira vista tosco e desne­cessário, o pessoal da Ubisoft Montreal estava na verdade demonstrando um conhecimento profundo do poder da agência na narrativa dos games. Colocando de forma simples: escutar um diálogo passivamente e escutar um diálogo acionado por um botão que você pressionou quando quis são experiências muito diversas. Talvez isso soe absurdo, mas não é. É difícil de explicar e difícil de argumentar a favor de uma proposição tão eso­térica, mas ao pressionar aquele botão é como se participássemos ativa­mente do diálogo. As falas não são do jogador, são dos roteiristas do jogo, mas se tornam dele também quando ele pressiona o botão.

4 respostas para Virando o jogo

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