Virando o jogo

ALGORITMO E ENREDO EM PRINCE OF PERSIA

Um ladrão desvia-se de suas preocupações egoístas e hedo­nistas para auxiliar uma princesa que deseja impedir a des­truição de seu reino depois que o pai a ressuscitou em troca da libertação de um deus maligno. O ladrão ajuda a princesa porque, no fundo, é altruísta e compassivo, e é salvo a todo instante por ela, que o resgata de quedas e ataques mortais com seus poderes mágicos. A princesa ajuda o ladrão por­que precisa dele para reabastecer sua energia vital depois de canalizar os poderes mágicos na restauração de cada terreno fértil que está corrompido. Unidos por essa mútua depen­dência e por um afeto crescente, o casal transpõe penhascos, torres e adversários sobrenaturais numa coreografia acro­bática, transformando sombra em luz e revelando a beleza visual desse reino abandonado por seu povo.

Por um lado, a construção gradual dessa narrativa rumo ao clímax se dá no nível procedimental. O jogador conduz o ladrão e Elika por um mapa dividido em quatro áreas prin­cipais, cada uma formada por uma teia de locais/fases que devem ser restaurados até abrir-se o acesso à batalha contra um dos quatro corrompidos, personagens antagonistas que serão enfrentados no final de cada área.18 O esquema fica nítido para o jogador nas primeiras horas de partida. Você escolhe uma fase do mapa, trata de percorrê-la com acroba­cias e movimentos de luta, chega ao terreno fértil e o restaura. Depois, você explora novamente a fase restaurada para cole­tar as esferas luminosas que revigoram Elika e avança para a fase seguinte, dentre duas ou três opções que pode escolher. Atingindo determinadas marcas de esferas coletadas, você pode retornar ao templo e conceder a Elika um dos quatro poderes mágicos especiais que dão acesso a locais outrora ina­tingíveis e também ao esconderijo do corrompido. As primiti­vas de participação reforçam o abandono desse mundo que é o espaço de jogo (não é possível interagir com ele de nenhuma forma a não ser percorrendo-o, e, à exceção dos eventuais inimigos, ele é povoado somente por borboletas; depois da introdução, você nunca verá outro ser humano em jogo, exceto o pai de Elika) e a interdependência entre os protagonistas (os saltos mais longos só podem ser executados com uma ajudinha de Elika, ela gruda nas suas costas para escalar paredões etc.). Quando todas as quatro áreas do reino foram restauradas e os quatro corrompidos, derrotados, você retorna ao templo e enfrenta Ahriman na batalha final.

Por outro lado, a construção também se dá no nível do enredo linear, exposto principalmente em sequências animadas não interativas (cutscenes) e nos diálogos que você trava com Elika. Parte dessas conversas é automá­tica, parte é ativada quando você aciona voluntariamente o comando de diálogo, e novos blocos de diálogos são destravados após o cumprimento de determinadas etapas do jogo, de modo que há uma progressão narrativa predeterminada. Em Prince of Persia, o casamento da progressão da histó­ria com a narrativa procedimental é exemplar. Em outras palavras, o ato de jogar e a revelação gradual da história trabalham em perfeita sincronia para reforçar o que realmente importa: o desenvolvimento do ladrão e de Elika como personagens complexos e, sobretudo, o estabelecimento de um vínculo consistente entre eles. Há um momento importante, por exemplo, quando o ladrão, depois de resistir a insistentes tentativas da companheira de abordar o assunto, finalmente confessa a Elika que seus pais estão mor­tos e que ele não tem família nem um lar para onde retornar.

É da tensão sexual entre os dois, porém, que surge a maior parte dos diálogos reveladores. É o ladrão que dá em cima de Elika abertamente no decorrer do jogo, mas suas tiradinhas nunca parecem ser para valer. São provocações que não traem nada parecido com um desejo convicto. Elika trata de repelir com acidez as gracinhas do ladrão, mas é a princesa quem demonstra, em diversas ocasiões, estar verdadeiramente interessada em você. O ladrão fala em ter paciência para superar algum obstáculo, e ela o encara sedutoramente e diz com uma voz cheia de insinuações: “A paciên­cia tem lá suas recompensas”. Sua resposta é: “Entrar num harém coberto de chocolate também tem”. Típico. E que tal este diálogo:

ELIKA: Quem está esperando você no mundo lá fora?

VOCÊ: Um mundo de gente.

ELIKA: Você nunca criou intimidade com ninguém?

VOCÊ: Quem confia em si mesmo não precisa disso.

ELIKA: Confiar no próprio juízo pode acabar em solidão.

VOCÊ: Se você depender dos outros, acaba sendo deixado na mão.

ELIKA: Você não me deixou na mão.

VOCÊ: Você não me conhece há tempo suficiente.

Pobre Elika, tímida e séria demais para simplesmente confessar que está gamada em você. E pobre de você, narcisista e brincalhão demais para detectar o desejo da princesa adorável e tomar uma atitude. Essa dinâmica se estende por toda a história. O ladrão com pinta de playboy vai demons­trando ser um garotão ingênuo, porém determinado e altruísta. Declara mais de uma vez que está ajudando Elika para não morrer nas garras de Ahriman, mas parece que, no fim das contas, ele só quer mesmo ajudar essa mocinha, e não é por causa do generoso decote. E Elika revela aos poucos ser mais do que a mulher nobre e resolvida que quer consertar o mal do mundo e não tem tempo para flertes bobos. Dá vontade de dar uns tapas na cara do ladrão. Olha para ela! Se parar de dizer besteira por um instante, ela é toda sua! Elika está sozinha há muito tempo. Ela acabou de voltar da morte, cacilda. E como se não bastasse:

VOCÊ: Agora é sua vez. Me conte algo sobre você.

ELIKA: Tipo o quê?

VOCÊ Sei lá… seu último namorado?

ELIKA: Nunca tive um.

VOCÊ: Nunca?
ELIKA: Nunca.

E o papo termina. Mas se você apertar o botãozinho que aciona os diálo­gos, se quiser insistir, o que se segue é:

VOCÊ: Se você nunca teve namorado, então…

ELIKA: Eu leio muito.

VOCÊ: Mas às vezes é melhor experimentar na prática.

A princesa que quer salvar o mundo só conhece o amor nos livros, meu caro. E está dando uma indireta atrás da outra. E no entanto, pouco depois:

VOCÊ: Bem, aqui estamos… nós dois… no escuro… (monstros gritam nas sombras)

ELIKA: Salva pelo gongo.

A tensão sexual do casal de protagonistas avança centímetros em curtos instantes de revelação e então estaciona em longos períodos de dissimulação engraçadinha até chegar numa das cenas mais importantes do jogo, em que todos os elementos narrativos – imersão, agência, subversão das expectativas procedimentais já estabelecidas – se combinam para selar um laço que vinha sendo construído em incrementos quase imperceptíveis. Vocês estão pres­tes a enfrentar um dos quatro corrompidos, a perversa concubina, na torre em que ela vive. Um milênio antes, a concubina era uma mulher poderosa que teve seu homem roubado por outra e acabou perdendo a beleza e o prestígio social. Depois disso, vendeu a alma a Ahriman em troca de poderes ilusionistas.19 Em todas as suas aparições, ao entrar em combate com o jogador, ela tenta seduzir o ladrão e desmoralizar Elika. Quando você chega no alto da torre, a concubina captura Elika e usa seus poderes para formar um círculo com várias cópias da princesa. Você tem que descobrir qual é a verdadeira Elika. A tarefa parece impossível. Todas são idênticas e desaparecem quando você se aproxima ou tenta atingi-las com uma espadada, reapa­recendo logo que você se afasta. A concubina ri e te provoca. Você achava que gostava dela? Achava que a conhecia? Mas é incapaz de dizer qual é a verdadeira. A situação é exasperante para o jogador, até que ele se dá conta do que deve fazer. Você deve se atirar do alto da torre. Um salto para a morte. Mas Elika vinha salvando você desde o início da aventura, e agora não será diferente: ela usa seu voo mágico para resgatá-lo, e com isso rompe o encanto ilusionista da concubina. Narra­tiva linear e narrativa procedimental brilhantemente arti­culadas para contar uma história. O enredo ilumina o modo de jogar; o modo de jogar ilumina o enredo. “Seu idiota”, diz Elika. “Eu sabia que você ia me pegar”, responde o ladrão, e nesse momento ele sabe, e você sabe, que nada é maior que essa ligação entre vocês dois. Pelo menos dentro do algo­ritmo do jogo.

4 respostas para Virando o jogo

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