A petulância de ser Wilde

Quando foi a vez de Morrissey se defender num tribunal, o caso de Wilde lhe passou pela cabeça, como um pesadelo e como uma possibilidade atraente de martírio. Tanto que ele quase pôs ainda mais a perder além do dinheiro – com suas tiradas ferinas e com aquilo que seu próprio advogado admitiu ser “um grau de arrogância”. Afora dar ganho de causa a Joyce, o juiz se irritou a ponto de descrever Morrissey como um sujeito “desviante, truculento e inconfiável”. Na ocasião, o baixista Andy Rourke matou a pau na interpretação do que ocorrera no tribunal: “Ele veio como Morrissey, mas, para um juiz, provavelmente isso é truculento”.

Ao se apresentar à justiça não como o cidadão Steven Patrick Morrissey, nas­cido em Davyhulme, grande Manchester, em 22 de maio de 1959, mas como o pop star Morrissey, eterno, ele embaralhava vida e obra de uma maneira que deixaria Wilde batendo palminhas. E também de uma das maneiras como a ensaísta americana Susan Sontag definiu o que era camp, num célebre texto de 1964, pontuado por citações do irlandês: “Camp é a glorificação do ‘persona­gem’. […] O personagem é entendido como um estado de incandescência con­tínua – a pessoa sendo algo muito intenso.” Morrissey, tal qual a Greta Garbo citada nessa mesma passagem, sempre foi Morrissey.

A conexão camp é apenas uma das dezenas de conexões possíveis entre Wilde e Morrissey, muitas delas propagandeadas pelo cantor. Seja na cita­ção nominal em “Cemetry Gates”, seja na camiseta usada para uma foto estratégica, passando pela imagem do irlandês que aparece no videoclipe de “I Started Something I Couldn’t Finish”, Wilde está lá. As ligações podem ser vislumbradas até antes do nascimento de Morrissey: seus pais eram irlande­ses como Wilde, muito católicos, e haviam imigrado para a Inglaterra pouco antes do nascimento do filho caçula. Em 2004, Morrissey acertaria contas com a religião em “I Have Forgiven Jesus”: “Eu perdoei Jesus/ Por todo desejo/ Que ele botou em mim quando não há nada a fazer/ Com esse desejo.”

A mãe de Morrissey, Elizabeth, foi a responsável pela sua apresentação a Wilde –— e por isso recebeu agradecimentos públicos do filho em diversas ocasiões. Ele lembra que, antes ainda de completar dez anos, sua mãe lhe recomendou a leitura de algo com uma frase forte: “É tudo o que você tem de saber sobre a vida”. O pequeno Steven a princípio relutou. Pouco depois, porém, caiu de amores pelo livro que trazia as obras completas de Wilde. “Ele usou a linguagem mais básica e disse as coisas mais poderosas”, derra­mou-se Morrissey. Essa, inclusive, poderia ser uma excelente definição para a melhor música pop. Linguagem básica para dizer coisas poderosas.

Claro, o conceito de “linguagem básica” de Morrissey é bastante pecu­liar. Wilde se expressou, por escrito e oralmente, de um jeito que, se não era cheio de firulas ou literatices, também estava longe de ser comum. Aliás, é bem pouco provável que nem o mundo nem Morrissey – mesmo numa idade tão tenra – tivessem se interessado pelo irlandês caso ele fosse tão descomplicado. Foi o seu refinamento que atraiu um público numeroso a um romance como O retrato de Dorian Gray, a uma peça como A importân­cia de ser prudente ou a ditos independentes de obras literárias, como “às vezes penso que Deus, ao criar o homem, de alguma forma superestimou Sua habilidade”, ou “ser natural é uma pose muito difícil de manter”.

O raciocínio ultrassônico que possibilitava a Wilde esses pequenos prodígios de humor e sabedoria foi emulado com sucesso quando aquele menino anglo-irlandês do bairro de Hulme cresceu. Tanto nos versos de suas canções intensas, mas nem um pouco básicas, quanto em frases espiri­tuosas soltas como quem não quer nada no meio das muitas entrevistas que concedeu. Numa das mais célebres, concedida ao (então) jornal New Musi­cal Express no começo de 1988, não muito depois da debandada dos Smiths, ele discorria, entre outros tópicos, sobre Wilde. “Independentemente de como ele escreveu ou de como viveu em público, sua vida privada também é impressionante”, declarou a Len Brown. “E esse é o julgamento final para todos os artistas […]. Não creio que seja suficiente ligar e desligar, estar lá de dia e jogar hóquei à noite.”

É irônico saber que o mesmo argumento foi usado contra Morrissey por um de seus primeiros grandes fãs no Brasil, Renato Russo. O líder da Legião Urbana gostava do líder dos Smiths a ponto de, durante muito tempo, usar uma capa impermeável promocional com o nome Morrissey no peito (à época, ambos eram “colegas” de gravadora, a britânica EMI). Um dia, entre­tanto, a admiração fraquejou. “Eu não acredito no Morrissey”, queixou-se Renato, que nunca teve nem pendor nem interesse por esporte nenhum. “Ele joga basquete.” Não se sabe qual a fonte de Renato, mas ele costumava ser muito bem informado décadas antes de a internet virar corrente.

Renato era fã de Morrissey não só por causa da (suposta) coerência artís­tico-existencial, mais ou menos a mesma que tornara Morrissey fã de Wilde. Era fã também, ou sobretudo, por conta da inteligência de suas letras, cheias de um aguçado senso dramático, reforçado pela característica voz chorosa e por arranjos grandiloquentes. Em Morrissey, a influência de Wilde pode ser entreouvida, por exemplo, em “eu nunca quis matar/ eu não sou natu­ralmente mau/ tais coisas eu fiz/ só para me fazer/ mais atraente para você/ terei falhado?” (“The Last of the Famous International Playboys”), ou de “anjo, não tire sua vida/ algumas pessoas não têm orgulho/ elas não enten­dem/ a urgência da vida/ mas eu te amo mais do que à vida” (“Angel, Angel, down We Go Together”).

A rigor, toda letra de Morrissey inclui ao menos um grande achado poé­tico. Não é pouco para um sujeito que além dos cinco álbuns dos Smiths – e de seus incontáveis singles avulsos – gravou até hoje outros 11 álbuns solo – mais a inevitável penca de singles que não fazem parte de nenhum deles. Por conta de uma associação automática entre indústria fonográfica e pop star, muitos analistas veem o tenor napolitano Enrico Caruso (1873-1921) como seu primeiro representante. Se a relação for estabelecida não com o comér­cio, mas com a arte que lhe serve de matéria-prima, os primeiros pop stars podem ter sido os musicistas e compositores Niccolò Paganini (1782-1840), Fryderyk Chopin (1810-1849) ou Franz Liszt (1811-1886), de imenso sucesso em seu tempo.

No entanto, embora nunca tenha posto uma única nota musical numa pauta, Wilde também é frequentemente indicado a primeiro pop star. Na biografia Saint Morrissey, Mark Simpson lembra “que Oscar Wilde era, no final das contas, o líder do Movimento Glam Rock do Século 19 (embora naquele tempo isso fosse conhecido como o Movimento Estético)”. Um roqueiro avant la lettre, enfim, empenhado em chocar/seduzir a burguesia com a literatura, as tiradas sarcásticas e, last but not least, a indumentária excêntrica, culminando com um cravo vermelho, sua marca registrada.

Talvez o episódio que melhor represente o status de Wilde não seja a sede do público pelos detalhes sórdidos dos julgamentos na Inglaterra, e sim o deslumbramento do público por sua turnê triunfal nos Estados Uni­dos. Ele aportou em Nova York em 2 de janeiro de 1882, recebido por uma multidão que esperava ver um extraterrestre. A turba se decepcionou, mas a ocasião propiciou a Wilde um dos seus mais famosos epigramas. Solicitado pela alfândega americana a declarar os seus bens, o irlandês saiu-se com o imortal “nada a declarar, exceto o meu gênio”. Depois dessa entrada triun­fal, ele passaria mais de um ano cruzando o país em conferências lotadas, apesar de os conservadores externarem temores de que o comportamento do visitante pudesse ser uma péssima influência para a moralidade local. Na volta à Inglaterra, a excursão aos Estados Unidos alavancaria mais uma famosa boutade, a de que “os ingleses têm mesmo tudo em comum com os americanos, exceto, naturalmente, a linguagem”.

8 respostas para A petulância de ser Wilde

  1. Pingback: MOZ: O DESCOMPASSO ENCARNADO | THIAGOISDEAD

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *