A petulância de ser Wilde

Simon Goddard crava, na sua Mozipedia, que Wilde “é, se não a maior influência geral, a maior influência em termos de literatura” em Morrissey. Já Simpson, de Saint Morrissey, chega a inverter a questão, com sarcasmo:

Muitos foram levados a falar do quanto Morrissey deve àquele peitudo cantor de fossa e comediante de stand-up anglo-irlandês do século 19, o ‘primeiro pop star’. Indiscutivelmente, o pobre Oscar foi apenas um protótipo inicial fracassado e um pouco obeso de Morrissey.

O problema dessa afirmação está na porção “século 19”. De modo consciente ou não, Wilde usou as armas que seu tempo disponibilizava para chocar a sociedade ou, ao menos, a parte influente dela: as palavras, as roupas, os afetos homossexuais (a despeito de ter se casado com uma mulher, com quem até teve dois filhos). Não custa lembrar que ele passou toda a sua existência como súdito da rainha Vitória e que, graças à ocu­pante do trono inglês entre 1837 e 1901, ainda hoje o Houaiss alista, como uma das acepções da palavra “vitoriano”, “típico dos padrões, gostos e atitudes morais e comportamentais dessa época, em que se destacam o puritanismo e a intolerância”. Foi ao mesmo tempo mais difícil e mais fácil para Wilde ser Wilde no século 19.

Apesar de Morrissey ter declarado que “é preciso coragem para ser eu”, chocar a burguesia no século 20 passou a ser não tanto uma questão de bra­vura, mas de senso de oportunidade, de escarafunchar os últimos tabus da moralidade. Não se está, com essa constatação, querendo dizer que Morris­sey é um oportunista. Não. Morrissey é um verdadeiro artista e, talvez nem haja exagero em dizer, um dos maiores artistas que seu tempo produziu. Ele é colocado pelo avanço (pela decadência, diriam os puritanos) dos costumes diante de um problemão: como ser Wilde em pleno século 20?

A literatura perdeu a importância cultural central que tinha na época de seu ídolo-mor. Na verdade, a própria inteligência que fez a glória e a misé­ria de Wilde saiu de moda, substituída na grande mídia por uma ignorância autossuficiente e pelo culto cego às massas, advindo de um esquerdismo pre­guiçoso. Depois dos punks londrinos do verão de 1976 (dos quais Morrissey também descende espiritualmente), depois da estilista Vivienne Westwood, depois até da velha revista Playboy, chocar por intermédio de roupas ou pela falta delas tornou-se impossível. E a homossexualidade, proscrita e perse­guida em países de mentalidade medieval, não é mais motivo para escândalo nas nações desenvolvidas, justamente aquelas nas quais a arte de Morrissey circula. Nelas, conservadores em desespero afirmam que ser gay está em vias de se tornar obrigatório.

E aí, repete-se, como ser o Oscar Wilde do século 20?

A primeira resposta de Morrissey é tão óbvia que não merece conside­rações mais extensas: despertado, seu talento pela literatura foi desviado para a música pop, que, junto com o cinema, passou a ocupar aquela centra­lidade cultural que era privilégio da própria literatura e da música clássica. Seja em sua curta e fulgurante carreira à frente dos Smiths, seja em sua já longa e um pouco irregular carreira solo, ele entendeu que, se quisesse se fazer ouvir, teria de falar mais alto, com um microfone na mão, em cima de um palco muito bem iluminado. Não há mais, é claro, nada de chocante nisso, mas a música pop lhe forneceu um trampolim.

Em termos de moda, fora o topete à la Elvis, Morrissey conseguiu rea­vivar o culto de Wilde pelas flores. Frequentemente enfiadas nos bolsos traseiros de sua calça jeans. “Como um Smith, eu usei flores porque Wilde sempre usou flores”, admitiu. “Acho que flores são coisas maravilhosas. Muito agradáveis e inocentes. Elas não fazem mal a ninguém.” Morrissey gosta de lembrar como Wilde iniciou um discurso para mineiros no Colo­rado, durante a turnê de 1882-1883, dizendo “deixe-me contar por que nós veneramos o narciso amarelo”. Tinha coragem, o homem. Depois, foi tomar uísque de milho com seus rudes espectadores, conquistando-lhes a admira­ção também pelo fígado forte. Morrissey, por sua vez, acabou abandonando as flores, vestindo-se com a elegância de um inglês de meia-idade. Exceto quando, num truque sujo repetido nos shows, tira a camisa, enxuga o suor do peito e da barriga e a atira para o público em êxtase.

Em termos comportamentais, Morrissey se notabiliza pela defesa intransigente dos direitos dos animais e, consequentemente, do vegetaria­nismo. Ele não come nem carne nem peixe nem “nada que tenha vivido”. Isso, é óbvio, não implica uma dieta sem batata frita ou chocolate, razão pela qual ele já declarou não ser um vegetariano, não no sentido de alguém que só come coisas saudáveis. Os fãs dos Smiths foram apresentados à sua pla­taforma alimentar – defendida em termos fortes, que consideram comer carne “do mesmo nível moral que abusar de crianças” – no 1.P Meat Is Murder, de 1985, cuja faixa-título foi adotada como um hino pelos veggies.

Para Simon Goddard, “em Morrissey, o vegetarianismo é mais do que uma escolha dietética, ou mesmo ética, mas uma batalha moral contra a barbárie dos homens contra os animais”. Como o cantor vive numa socie­dade que se afoga em gordura animal, e se compraz com isso, sua posição ainda é capaz de suscitar algum escândalo ou, no mínimo, confrontar o fã carnívoro com um interessante dilema ético. Não é pouco. Tampouco é o bastante para conceder-lhe a dimensão escandalosa de Wilde.

Evidentemente, a principal razão para Wilde ter alvoroçado a sociedade de seu tempo foi a sua vida sexual. Enquanto ficou restrita a quatro pare­des, fossem elas do quarto de dormir ou do salão dos bem-pensantes, ela contribuiu para o seu sucesso. A partir do momento em que foi arrancada do armário a chutes e pontapés, nos rumorosos julgamentos de 1895, ela se aliou a seu fracasso. No tempo de Morrissey, contudo, a situação já era bem outra. Trazer a público a concretude da expressão “o amor que não ousa dizer seu nome” – cunhada por Bosie, o amante chave de cadeia de Wilde, como punch line de um poema chamado “Two Loves”, de 1894 – poderia gerar risos ou atos homofóbicos, não mais arruinar uma vida. Outras for­mas de amor físico também não pareciam muito promissoras na tarefa de chamar atenção para Morrissey e sua arte. Bissexualidade? Pansexualidade? Transgênero? Muito déjà-vu.

Morrissey, então, teve um de seus momentos de gênio. Declarou-se celi­batário. Numa sociedade tão afogada em sexo quanto em gordura animal, a sua opção soou como outro manifesto vegetariano. O cantor não querer saber de carnes era mais espantoso, para um público iludido pelo trinô­mio sexo-drogas-rock’n’roll, do que se ele proclamasse em horário nobre que transava com anões besuntados em óleo light de gergelim. Ao pregar a abstinência, Morrissey foi do contra no seio da contracultura. Como o seu vegetarianismo fora despertado por um documentário sobre matadouros entrevisto na Tv, seu celibato foi atribuído a experiências dolorosas e insípi­das com gente de todos os sexos. “Não fico envergonhado nem embaraçado por isso”, declarou.

O celibato mostrou-se sedutor nos anos 1980, mas Morrissey passou as décadas seguintes se desdizendo ou relativizando o que dissera. Algo com o teor de “eu estava celibatário, não sou celibatário”. O que, numa tática mor­risseyana típica, tão somente criou mais névoas em torno de sua vida sexual. Já num primeiro momento, é claro que muita gente não fez fé no seu celibato, relacionando-o a um amor que ainda não ousava dizer seu nome. Uma suposta natureza última de sua relação com o guitarrista Johnny Marr foi alvo de mui­tas especulações no decorrer dos anos, nenhuma delas nem perto de conclu­siva. O que muito ajuda o mito. Tanto mais que uma nova geração de artistas, da brasileira Sandy à americana Miley Cyrus (ou Hannah Montana), fez da vir­gindade uma peça de marketing, vulgarizando a abstinência de sexo.

Nesse campo, entre outros, Morrissey irritou-se de verdade foi com a biografia escrita pelo inglês Johnny Rogan, em 1992, Morrissey and Marr: The Severed Alliance. O cantor praticamente lançou uma fatwa contra Rogan. E, como a sugestão não foi mesmo levada a sério pelos fãs, ele ofereceu uma dose extra de ironia em 1999: “Acho que Rogan está trabalhando num volume dois. Acredito que ele está fuçando meu lixo atrás de indícios de lesbianismo.” Seja como for, hoje o seu celibato é um discurso do passado. Aceita-se que Morrissey goste de meninos e meninas, como cantou o fã Renato Russo. Ido­latrado do jeito que é, não deve lhe faltar suprimento de uns e de outras.

Onde em que Morrissey talvez mais tenha se aproximado de encar­nar o Wilde dos séculos 20 e 21 foi na delicada questão do racismo. Numa sociedade para sempre traumatizada pelo Holocausto, e sedada às diferen­ças pela correção política, o racismo talvez tenha se tornado o derradeiro estigma. Como tática de choque, entenderia-se um flerte de Morrissey com a causa. Todavia, ele chegou a processar a (agora) revista New Musical Express por tê-lo caracterizado como racista na edição de uma entrevista em 2007. A controvérsia, porém, é bem mais antiga, vem desde o tempo dos Smiths.

8 respostas para A petulância de ser Wilde

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