A petulância de ser Wilde

A polêmica nunca teria prosperado se várias músicas de Morrissey não roçassem o tema em termos ambíguos – como “Bengali in Platforms” (“Ele só quer abraçar sua cultura/ E ser seu amigo para sempre/ Para sempre”) e “Asian Rut” (“Oh, garoto asiático/ Que drogas você tomou?”) – ou flertassem com a violência de extrema-direita – como “Sweet and Tender Hooligan” (“Ele era um doce e terno hooligan/ E disse que nunca, nunca vai fazer aquilo de novo/ E claro que não vai – oh, não até a próxima vez”) e “The National Front Disco” (“Oh, vocês vão…/ Sim, sim, sim, sim!/ ‘A Inglaterra para os ingleses! A Ingla­terra para os ingleses!’”). Até o uso da bandeira britânica em shows foi apon­tado como manifestação de racismo, só porque ela foi apropriada pelos racistas. Comentários sobre o reggae ou o rap também foram arrolados no “processo”.

Assim como as declarações de Wilde no julgamento de 1895 e as suas próprias, no de 1996, algumas tiradas de Morrissey não contribuíram para que se dissipassem as dúvidas sobre seus reais sentimentos em relação a outras raças e culturas. Porque toda celebridade ou autoridade sabe que, de uma maneira perversa, cada desmentido na imprensa costuma carregar um quê de confirmação. “Acho que se o National Front fosse odiar alguém, seria eu”, protestou Morrissey em 1994. “Eu estaria no topo da lista.” Mesmo uma letra que, na sua cabeça, deveria significar sua repulsa a qualquer pen­samento de direita pode soar como uma declaração de amor. É o caso dos versos de “Irish Blood, English Heart”, de 2004: “Eu sonhei com um tempo em que/ Ser inglês não é ser funesto/ (É) Defender a bandeira sem se sentir/ Envergonhado, racista ou parcial.”

O pivô do processo de difamação contra a NME foi um comentário passível de muitas interpretações (a revista preferiu a pior, é lógico), conforme rever­berou pelo resto da imprensa inglesa. Disse Morrissey na entrevista fatal:

A questão da imigração é bastante complicada porque, embora eu não tenha nada contra pessoas de outros países, quanto maior o influxo na Inglaterra, mais a identidade britânica desaparece.

Então, o preço é enorme. Se você viaja para a Alemanha, ela ainda é completamente alemã. Se você viaja para a Suécia, ela ainda tem uma identidade sueca. Mas se você viaja para a Ingla­terra, não tem ideia de onde está.

É razoável questionar se alguém com a inteligência de Morrissey – e com um histórico de acusações por um suposto racismo – teria dito tais coisas sem pensar que elas poderiam ser entendidas como foram.

Fazia parte da entrevista uma observação fácil de ser cons­tatada, compartilhada e compreendida por quem quer que tenha visitado Londres nos últimos dez anos. “Se você anda por Knightsbridge em qualquer dia comum da semana, não vai ouvir o sotaque britânico”, exemplificou Morrissey. “Você vai ouvir todos os sotaques sob o sol, menos o britânico.” É a mais pura verdade. Não só pela presença da loja Harrods e de muitos museus. Tais frases podem ser entendidas como manifestação de xenofobia, mas também como lamento nos­tálgico de um inglês pelo charme perdido das ilhas que ama. Alguém já observou que, a despeito de sua origem irlandesa, tanto Wilde quanto Morrissey se tornaram mais ingleses que os próprios ingleses.

Se se pensar naquela afirmação atrevida de Mark Simp­son – “o pobre Oscar foi apenas um protótipo inicial fracas­sado e um pouco obeso de Morrissey” – do ponto de vista da capacidade de gerar escândalo ou ultraje, ela não se sustenta. O pobre Steven é que pareceria uma fotocópia mal tirada de Wilde. No entanto, se se pensar em Morrissey como alguém que persegue o ideal estético wildiano de fusão entre vida e obra, entre homem e artista, ele surge como um discípulo particularmente feliz. É graças a esse sucesso, aliás, que mul­tidões o veneram no mundo ocidental, como exemplo de coe­rência dentro dessa incoerência geral que nos torna humanos.

 

ARTHUR DAPIEVE (1963) é crítico de música e escritor. Professor da Puc-Rio e colunista do jornal O Globo, é autor de BRockO rock brasileiro dos anos 80 (Edi­tora 34, 1996), Renato Russo – O trovador solitário (Ediouro, 2000) e dos roman­ces De cada amor tu herdarás só o cinismo (2004) e Black music (2008), ambos publicados pela Objetiva.

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