Elogio da mão

De resto, ela não é a computadora dos números, número ela mesma, órgão das contas e senhora das cadências? Sobretudo, ela toca o universo, sente-o, apodera-se dele, transforma-o. Agencia espantosas aventuras da matéria. Não lhe basta recolher o que existe, é preciso que trabalhe no que ainda não há e que acrescente aos reinos da natureza um novo reino. Por muito tempo, a mão se contentou a fincar troncos de árvores sem poli­mento, com todo seu traje de casca, a fim de sustentar os tetos das casas e dos templos; por muito tempo, carregou ou empilhou pedras brutas para comemorar os mortos e honrar os deuses. Servindo-se das seivas vegetais para realçar a monotonia do objeto, respeitava ainda os dons da terra. Mas a partir do dia em que despiu a árvore de seu manto nodoso para exibir-lhe a carne, tratando a superfície até torná-la lisa e perfeita, a mão inventou uma epiderme, suave à visão, suave ao toque, e os veios da madeira, destinados a seguir ocultos em profundidade, ofereceram suas combinações misteriosas à luz. Enterradas no caos das montanhas, as massas amorfas do mármore, uma vez talhadas em blocos, em placas, em simulacros de homens, pare­ceram mudar de essência e de substância, como se a forma que recebiam penetrasse até o fundo de sua vida cega, até suas partículas elementares. O mesmo aconteceu aos minerais, extraídos de sua ganga, associados uns aos outros, amalgamados, fundidos, para assim introduzir compostos inéditos na série dos metais. O mesmo aconteceu à argila, endurecida ao fogo, bri­lhando de esmalte, e com a areia, pó fluido e obscuro, do qual a chama extrai um ar sólido. A arte começa pela transmutação e continua pela metamor­fose. A arte não é o vocabulário do homem falando ao Senhor, mas a reno­vação perpétua da Criação. É invenção de matérias, ao mesmo tempo que é invenção de formas. A arte constrói para si uma física e uma mineralogia. Mete as mãos nas entranhas das coisas para lhes dar a figura que lhe aprou­ver. É antes de tudo artesã e alquimista. Labuta vestindo avental de couro, como o ferreiro. Tem a palma das mãos enegrecida e arranhada, à força de se medir com o que pesa e queima. Elas precedem o homem, essas mãos poderosas, nas violências e nas astúcias do espírito.

O artista que corta a madeira, martela o metal, molda a argila, talha o bloco de pedra, traz até nós um passado do homem, um homem antigo, sem o qual não estaríamos aqui. Não é admirável vê-lo em pé, entre nós, em plena era mecânica, esse sobrevivente obstinado da era das mãos? Os sécu­los passaram por ele sem alterar sua vida profunda, sem fazê-lo renunciar a seus modos antigos de descobrir o mundo e de inventá-lo. Para ele, a natu­reza ainda é um receptáculo de segredos e de maravilhas. É ainda com as mãos nuas, frágeis armas, que ele tenta furtá-los, para fazê-los entrar em seu próprio jogo. Assim recomeça, perpetuamente, um formidável outrora, assim se refaz, sem se repetir, a descoberta do fogo, do machado, da roda, do torno de olaria. Num ateliê de artista, estão inscritas por toda parte as tenta­tivas, as experiências, os presságios da mão, as memórias seculares de uma raça humana que não esqueceu o privilégio de manipular.

Desses seres antigos que surgem entre nós, vestidos como nós, falando a mesma língua, Gauguin não será talvez exemplar? Quando lemos a bio­grafia desse que, em outros tempos, chamei de burguês peruano, vemos inicialmente um financista ousado e esperto, pontual e feliz, envolto pela esposa dinamarquesa nos refolhos de uma existência rechonchuda e con­templando os quadros alheios com mais deleite que inquietação. Insensi­velmente, e talvez em virtude de uma dessas mutações que emanam das profundezas e rompem a superfície do tempo, ele se toma de desgosto pela abstração do dinheiro e do número; já não lhe basta desenhar, apenas por meio das faculdades do espírito, os meandros do risco, especular sobre as curvas da Bolsa, jogar com o vazio dos números. Precisa pintar, pois a pin­tura é um dos meios de retomar essa antiguidade eterna, ao mesmo tempo remota e urgente, que o habita e que o evita. E não apenas a pintura, senão toda obra das mãos –— cerâmica, escultura, estamparia –, como se ele tivesse pressa de promover uma revanche contra seu longo ócio civilizado. É pelas mãos que seu destino o arrasta a lugares selvagens, onde ainda residem as camadas imóveis dos séculos – a Bretanha, a Oceania. Nesses lugares, não se contentou com pintar a imagem do homem e da mulher, dos vegetais, dos quatro elementos. Fez para si uma roupa, como o homem selvagem que gosta de decorar seu corpo nobre e nele carregar as maravilhas de sua arte; e quando chegou às ilhas, procurando sem descanso a mais remota, a mais primeva, talhou ídolos nos troncos das árvores, não como copista de uma pacotilha etnográfica, mas com mão autêntica, que reencontrava segredos perdidos. Construiu uma casa toda esculpida, repleta de deuses. As maté­rias de que se servia, a madeira de piroga e mesmo a tela grosseira e cheia de nós sobre a qual pintava como se usasse seivas de plantas e terras de tons ricos e surdos, tudo o restituía ao passado, afundava-no nas sombras dou­radas de um tempo que não morre. Esse homem de sentidos sutis combate essa mesma sutileza para restituir às artes o teor intenso que se dissolveu nos tons refinados, e, nesse mesmo movimento, a mão direita se livra de toda destreza, aprende com a mão esquerda aquela inocência que jamais se adianta à forma: menos desenvolta que a outra, menos hábil em virtuosis­mos automáticos, caminha com lentidão e respeito pelo contorno das coisas. Então reluz, com um encanto religioso, em que a sensualidade e a espiritua­lidade se confundem, o último canto do homem primitivo.

Mas nem todos são assim. Nem todos se postam numa praia empu­nhando uma ferramenta de pedra ou uma divindidade de madeira dura. Gauguin está situado ao mesmo tempo no começo do mundo e no termo de uma civilização. Os outros permanecem entre nós, mesmo quando uma nobre exigência torna-os selvagens e os aprisiona, como aconteceu a Degas, numa solidão parisiense. Mas, quer se apartem, quer sejam ávidos do conví­vio dos homens, tanto os jansenistas como os voluptuosos são, em primeiro lugar, seres dotados de mãos, circunstância que sempre causará assombro aos espíritos puros. Os acordes mais delicados, que despertam o que há de mais secreto nas engrenagens da imaginação e da sensibilidade, é por obra das mãos, trabalhando a matéria, que eles tomam forma, inscrevem-se no espaço e se apoderam de nós. Essa marca segue sendo profunda mesmo quando o trabalho, no dizer de Whistler, apaga os seus traços e conduz a obra a regiões solenes, retirando o que pudesse haver de acidental ou febril na evidência de um labor. “Mostrem-me um centímetro quadrado de qual­quer quadro”, dizia Gustave Moreau, “e saberei se é obra de um pintor de verdade.” Mesmo a execução mais serena e mais coerente ainda revela o toque, o contato decisivo entre o homem e o objeto, a tomada de possessão de um mundo que temos a impressão de ver nascer, suave ou fogosamente, diante dos nossos olhos. O toque é o sinal que não engana, seja no bronze, na argila, na pedra mesmo, na madeira, na textura ao mesmo tempo plás­tica e fluida da pintura. Mesmo entre os velhos mestres, cuja matéria é polida como a ágata, a pincelada anima as superfícies no paradoxo do infini­tamente pequeno. E os discípulos de David que pretendiam ditar suas obras a executores dóceis não podiam retirar integralmente a personalidade das mãos desses seus servidores. Suas epidermes polidas, seus panejamentos marmóreos, suas frias arquiteturas, capturadas na invernagem do idea­lismo doutrinário, revelam variantes sob seu despojamento. Uma arte da qual essas variantes fossem totalmente banidas teria o brilho do inumano. Chegar a tanto não está ao alcance de qualquer um.

Um jovem pintor me mostra uma pequena paisagem bem composta, que tem aspecto de bloco sólido e que, em dimensões mínimas, não é des­pida de grandeza. Diz ele: “Não é verdade que já não se nota mais a mão?”. Adivinho seu gosto pela coisa estável, sob um céu eterno, num tempo inde­terminado, sua aversão à “maneira”, aos excessos da mão em jogos barro­cos, em floreios da pincelada, na profusão da fatura; compreendo seu voto austero de se anular, de se afundar com modéstia numa grande sabedoria contemplativa, numa frugalidade ascética. Admiro essa juventude severa, essa renúncia tão francesa. Não se deve querer agradar, multiplicar os pra­zeres da visão, há que se endurecer para durar, para falar a língua robusta da inteligibilidade. Pois bem, a mão se faz igualmente sentir no esforço que faz para servir com circunspecção, com modéstia. Ela pesa junto ao chão, arredonda-se no cimo das árvores, faz-se diáfana no céu. O olho que acompanhou a forma das coisas e ponderou sua densidade relativa fazia o mesmo gesto que a mão. Era assim diante das paredes em que se elevam calmamente os velhos afrescos da Itália. É ainda assim, de um modo ou de outro, em nossas reconstruções geométricas do universo, nessas composi­ções sem objeto, combinando objetos decompostos. Por vezes, como que por distração, tão grande é seu império mesmo na servidão, a mão introduz uma tônica, uma nota sensível, e nos concede a recompensa de reencontrar o homem na árida magnificência do deserto. Quando se sabe que a quali­dade de um tom, de um valor, não depende apenas da maneira como é feito, mas também da maneira como é disposto, a presença do deus quíntuplo se manifesta por toda parte. Tal é o futuro da mão, até o dia em que se pintar à máquina, ao maçarico: então teremos chegado à cruel inércia do clichê, obtido por um olho sem mão, que fere nossa amizade no ato mesmo de soli­citá-la, maravilha da luz, monstro passivo. Somos levados a pensar na arte de um outro planeta, em que a música será um gráfico de sonoridades, em que a troca de ideias se fará sem palavras, por ondas. Mesmo quando repre­senta multidões, teremos a imagem da solidão, uma vez que a mão já não intervém mais para difundir o calor e o fluido da vida humana.

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