E, se faz sentido a análise, essa surdez tem também a ver com a falta de conversa organizada sobre a situação atual. Com todas as suas ambiguidades e mal-entendidos, talvez a 29a Bienal de São Paulo seja um sintoma de novos ventos, prenúncio de futuras confusões produtivas. Ao organizar a exposição em torno da articulação de arte e política, a curadoria trouxe para o primeiro plano muito do imbróglio de hoje. O primeiro curto- -circuito foi o da identificação entre política e engajamento, em que a própria obra é sacrificada no altar do engajamento político. Uma identificação que se radicalizou a ponto de igualar política e engajamento eleitoral, como foi o caso da obra do argentino Roberto Jacoby, coberta por orientação do Ministério Público Federal, por supostamente ferir o código eleitoral ao fazer propaganda da candidatura de Dilma Rousseff.
No sentido contrário, a obra de Nuno Ramos Bandeira branca representa talvez a maneira mais refletida e viva de reivindicar o elo entre arte e política presente na arte brasileira dos anos 1960. Sinal dos tempos, o próprio artista classifica sua obra como uma “espécie de antipenetrável”, em tensão com os Penetráveis de Hélio Oiticica. A irritação causada custou a permanência da própria obra na Bienal. Foram retirados os três urubus vivos (não foram morcegos desta vez) que a compunham e desligados os três aparelhos de som que reproduziam as canções (!) “Bandeira branca”, “Boi da cara preta” e “Carcará”. Independentemente de uma discussão séria em torno de uma ética animal, o fato é que a obra foi desmontada por força de uma identificação limitada de “cultura” e “valores”. Por razões outras, claudica aqui também o vínculo entre política e cultura, as duas amputadas das dimensões e dos sentidos capazes de projetar movimentos para além do convencional.
Não há dúvida de que o senso limitado de política costuma coincidir com obras de arte igualmente limitadas. Mas o importante é registrar que o problema voltou. Com as confusões que lhe são próprias e inevitáveis, é certo, principalmente depois de um longo período de despolitização. E, ainda mais significativo, em um movimento que pode se colocar como a contracorrente de uma estranha brasilidade triunfante.
É nesse ambiente que, com a cautela devida, parece possível dizer que modelos de intervenção adequados à situação atual estejam surgindo na música. Talvez não estejam aparecendo com clareza. Talvez estejam obscurecidos pelo peso ainda grande dos modelos de intervenção já caducos, mas que seguem ativos. Em uma indústria cultural em desmoronamento e reconfiguração, os três padrões de intervenção gestados nas décadas de 1960 e 1970 só podem ser imitados hoje como farsa. As ideias de marginalidade, de independência ou de disputa da indústria desde dentro simplesmente perderam a base material que lhes dava sentido. Tornam-se farsescas na exata medida em que a configuração presente da indústria cultural caducou.
Que o digam os variados maneirismos da MPB atual, que já não têm mais nada a ver com o encontro da técnica mais avançada com uma tradição reinventada, mas apenas se esforçam para dar uma embalagem transada para a mesmice sob o manto da suposta “autenticidade”. Vale lembrar que, ao longo do século 20, a música popular urbana brasileira se constituiu na passagem do étnico ao nacional, estreito por onde transitaram grandes mestres como Sinhô, Donga, Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso, Tom Jobim e muitos outros. Nas últimas décadas, no registro do “global que quer ser local”, o rumo é outro: aceitação direta e aberta das imposições do mercado e o conformismo a rótulos pífios como o da teologia das “raízes” e da “diversidade”, que se traduzem em rodas de samba, choros, maracatus, modas, toadas, serestas, entre outros subgêneros, quase todos recriados a partir de um passado idilizado e monumentalizado.
A pergunta passa a ser, então: quais são os possíveis padrões de intervenção que estão se formando, aqueles com potencial de movimento, que não simplesmente se conformam às condições de uma indústria cultural em desintegração e reconfiguração? E em que medida a realidade da internet, por exemplo, impõe de tal maneira o esforço colaborativo que a articulação em movimento se torna uma necessidade vital para a música não conformista?
Por caminhos mais que tortos e íngremes, é possível que o momento cheio de brechas de 1966 esteja dando as caras de novo. Momento em que um debate pode bem se servir da fresta para olhar mais longe. E, quem sabe, abrir outras e novas avenidas.
MARCOS NOBRE é professor de filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
JOSÉ ROBERTO ZAN é professor do departamento de música do Instituto de Artes da Unicamp.
Uma resposta para A vida após a morte da canção