O fim da canção (em torno do último Chico)

Quando, na entrevista, retomou à sua maneira o pro­blema, Chico vinha de um longo silêncio. Havia lançado Budapeste, em 2003, sem nada declarar, e atravessado o ano de 2004 praticamente recluso, “viciado em anonimato”, como o personagem do romance, o ghost-writer Zsoze Kosta/José Costa, esquivando-se, em parti­cular, de um intenso assédio da mídia por ocasião dos seus 60 anos, com­pletados em junho. É sintomático que ele tenha resolvido questionar a pertinência atual da canção, pondo sob suspeição a continuidade da tra­dição a que pertence, justamente no momento em que começava a se ocu­par de seu novo CD Cidades, então seu último trabalho musical solo, era de 1998, já do “século passado”. Entre as composições inéditas de Carioca, que seria lançado em maio de 2006, quase um ano e meio depois, apenas “Porque era ela, porque era eu”, título derivado de uma conhecida frase do filósofo Michel de Montaigne, estava pronta àquela altura.

Chico também voltava à música porque praticamente iniciava naquela viagem a Roma e Paris uma longa sequência de depoimentos para a série de programas de Tv (depois organizados em 12 DVDS concebida por Roberto de Oliveira. Lembro-me de presenciar nos interva­los das gravações, que pude acompanhar, o interesse do compositor em conhecer alguns “proibidões” que o fotógrafo João Wainer ia lhe mos­trando no iPod. Vertente do Punk que anima os bailes nos morros cario­cas, onde é comercializado de forma clandestina, o “proibidão” costuma exaltar em suas letras as façanhas do crime organizado ligado ao tráfico, valendo-se muitas vezes do humor para escarnecer da polícia. Respon­sável pela direção de fotografia das filmagens, autor de um trabalho importante sobre o extinto Carandiru e grande conhecedor do universo musical dos manos da periferia, Wainer ainda iria, em outras ocasiões, apresentar a Chico exemplos do rap paulista, dos Racionais Mc’MC’Sgru­pos menos conhecidos, assunto que ainda era objeto de discussões um ano depois, em novembro de 2005, quando voltamos a Roma para gra­var o programa dedicado aos Saltimbancos.

Roberto de Oliveira tinha acumulado ao longo de décadas um acervo pre­cioso de gravações com Chico, que começou a registrar no início dos anos 1970, quando se conheceram. A iniciativa de reunir esse baú de imagens dispersas − muitas delas pouco conhecidas, algumas de valor histórico −, alinhavando-as com comentários recentes, embora tivesse um inegável aspecto convencio­nal, acabou oferecendo ao artista uma oportunidade única para rever com calma a sua trajetória. Para alguém sabidamente avesso à ideia de se explicar, a desenvoltura, a descontração e o bom humor que ele demonstrou ao longo das suas intervenções é algo que chama a atenção.

Mais tarde, Chico diria a respeito da maratona a que havia se submetido:

O Roberto foi me engambelando [risos]. A ideia inicial eram dois ou três progra­mas. Achei que a proposta de recuperar imagens de arquivo, que de outra forma ficariam perdidas, justificava o trabalho. Mas só fazia sentido se isso viesse acompanhado de algo mais.6

Vendo o resultado deste “algo mais”, deve-se imagi­nar que foi ele quem desde o início se deixou engambe­lar, aproveitando a ocasião para ensaiar um balanço de sua obra, que conduziu de maneira muito característica, ao mesmo tempo espontânea e refletida, como quem passa a vida a limpo e pinga os “is” contando casos, resgatando histórias, iluminando aqui e ali, com a lanterna da memó­ria, detalhes ou pontos da estrada percorrida − e na qual vamos nos reconhecendo.

É essa mesma disposição do cronista que vai ao ponto como quem joga conversa fora, esse zelo compreensivo que não dispensa o gosto pelas coisas concretas que reaparece com força nos depoimentos tão desprendidos quanto certei­ros de Chico a respeito de Vinicius de Moraes, no filme Vini­cius dirigido por Miguel Faria Jr. em 2005. Ali, já perto do fim do documentário, numa passagem fulcral, ele comenta que seria difícil imaginar o lugar do poeta nos dias de hoje:

Não sei onde estaria Vinicius de Moraes hoje em dia. Porque ele é o contrário de muita coisa que hoje é vitoriosa: a ostentação… Ele tinha uma coisa muito generosa, às vezes ingênuo, às vezes porra-louca, coisas que não existem mais hoje. Nem a porra-louquice, nem a generosidade, muito menos a ingenuidade. Existe sempre um resultado que se busca, um objetivo, uma coisa pragmática − tudo o que Vinicius não era. Então, ele faz muita falta, ou, talvez, ele não pudesse mesmo estar vivo sendo Vinicius hoje. Não imagino em que lugar ele estaria dentro deste país em que a gente vive − deste país e deste mundo.

Há, nesse testemunho, uma espécie de síntese feliz da alma e do significado histórico do personagem que vinha sendo retratado ao longo do filme: no momento em que se revela, ou é enfim revelado, Vinicius se distancia de nós.

É curioso notar, no entanto, que no final, já depois da exibição dos primeiros créditos, Chico reaparece em cena narrando um episódio irresistivelmente engraçado de Vinicius, o que configura uma espécie de ressurreição do filme e vem atenuar, para não dizer neutralizar, a sensa­ção de vazio e de desamparo provocada pelo depoimento quase imediatamente anterior. O personagem de quem nos vemos, a contragosto, irremediavelmente separados (senti­mento que só se acentua com a cerimônia de adeus que é a execução de “Canto triste” pela voz de Mônica Salmaso), volta ao nosso convívio, reencarna na tela, na imagem de uma gargalhada geral, em que tudo e todos se reconciliam. O efeito de descompressão deste happy end inesperado, no qual a perda se torna logo uma gostosa piada e o riso vem enganar a dor, nos deixa de novo em casa. Não há neste mundo mais lugar para Vinicius (ou para a canção), mas ele (ou ela) permanece teimosamente entre nós.

2 respostas para O fim da canção (em torno do último Chico)

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