Num primeiro plano, a canção se esforçará justamente para chamar o “avesso da montanha” pelo nome (ou pelos nomes), apresentando-o a nós. Um a um, os morros são convocados a dar o seu recado: “Fala Penha/ Fala Irajá/ Fala Olaria/ Fala Acari/ Vigário Geral…”. Já se falou que essa voz evoca um conhecido bordão das escolas de samba. Mas será invocando a força dos estilos musicais presentes no subúrbio que a canção tentará nos aproximar deste mundo relegado, onde “não tem turistas”, “não sai foto nas revistas”: “Vai, faz ouvir os acordes/ do choro- -canção/ Traz as cabrochas e a roda/ de samba/ Dança teu funk, o rock,/ forró, pagode, reggae/ Teu hip-hop/ Fala na língua do rap/ Desbanca a outra/ a tal que abusa/ De ser tão maravilhosa”.
Aqui, nessa simples enumeração de ritmos, as coisas se passam de forma complexa. Há nessa estrofe a sugestão de um resgate festivo da cultura popular, em toda a sua variedade de gêneros, entre os quais o próprio choro-canção, reforçando uma identificação possível entre os dois mundos. O movimento do conjunto, no entanto, não é esse, mas o de distanciamento e confronto. Quando Chico canta “Vai, faz ouvir os acordes/ do choro-canção/ Traz as cabrochas e a roda/ de samba”, a música, vagarosa, se distende, e a voz assume contornos melodiosos. Somos, por um instante, remetidos de volta ao imaginário nacional-popular. O ritmo da canção então logo se acelera, e a voz muda de registro, torna-se escapadiça, soa leitosa quando ouvimos “[dança] Teu hip-hop/ Fala na língua do rap”. A história aqui já é diferente, e o ânimo desafiador, de enfrentamento, fica mais evidente nos versos “Desbanca a outra/ a tal que abusa/ De ser tão maravilhosa”. A mesma estrofe se repetirá adiante, com outro final, de sentido semelhante, porém mais incisivo: “Fala no pé/ Dá uma ideia/ Naquela que te sombreia”.
Aquela que abusa de ser maravilhosa e sombreia o subúrbio é a zona sul do Rio de Janeiro, certamente. Mas, aqui de novo, parece ser a música, a canção, a MPB que estão por merecer um corretivo na língua do rap.15 Dar uma ideia em alguém é algo que sugere mais um ajuste de contas do que um diálogo possível.
No artigo “Nós aqui, e eles lá” (V. nota 15), o crítico Marcelo Coelho põe este “Subúrbio” de hoje frente a frente com o velho subúrbio de “Gente humilde”, canção de Chico em parceria com Vinicius de Moraes e Garoto, composta 40 anos atrás. O contraste é total, o que torna a comparação substantiva. Mais até do que a paisagem, que também mudou − para pior, apesar do progresso? −, o que se alterou mesmo foi a forma de nos relacionarmos com a pobreza − e vice-versa.
Identificar alguém pobre como “pessoa de origem humilde” é um velho eufemismo brasileiro, herança da nossa mentalidade cordial. Ora, se há algo estranho ao mundo do rap é o sentimento da humildade. Orgulho, revolta, afirmação da identidade grupal entre os manos, expressão violenta de uma sociedade partida e conflagrada − são esses os elementos que gravitam em torno do universo rapper. A psicanalista Maria Rita Kehl assinala que a mudança no comportamento e na autoimagem dos pretos e pobres impulsionada pelos rappers brasileiros é justamente “o fim da humildade, do sentimento de inferioridade que tanto agrada à elite da casa-grande, acostumada a se beneficiar da mansidão − ou seja, do medo − de nossa ‘boa gente de cor’”.16 A frase de Chico, de que o rap “é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos”, parece se iluminar com essas especificações históricas.
Entre parênteses, seria interessante contrapor o rap ao pagode, em que a manifestação do orgulho negro assume formas mansas, derramadas, carregadas de afetividade, e costuma vir acompanhada de sinais visíveis de ascensão social e ostentação, razões pelas quais esse gênero dominical talvez seja tão apreciado nos programas de auditório e premiado pelos critérios do mercado.
Mas voltemos a “Gente humilde”. Marcelo Coelho nota que a canção do final dos anos 1960, sentimental, ingênua, singela, seria impensável hoje em dia, mas se beneficia de maior coerência afetiva: “E aí me dá uma tristeza no meu peito/ Feito um despeito de eu não ter como lutar/ E eu que não creio, peço a Deus por minha gente/ É gente humilde, que vontade de chorar”. Deus, minha gente, gente humilde, vontade de chorar… Que mundo é esse, feito de “casas simples, flores na varanda e cadeiras na calçada”, capaz de despertar sentimentos cristãos e provocar a solidariedade diante do drama alheio? “Subúrbio” irá responder nos termos atuais: “Lá não tem claro-escuro/ A luz é dura/ A chapa é quente/ Que futuro tem/ Aquela gente toda”. A impotência, agora, não deságua na vontade de chorar. Desidentificada afetivamente “daquela gente”, ela assume contornos de ressentimento, descaso, desprezo, até de autodepreciação.
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