O fim da canção (em torno do último Chico)

Essa espécie de desistência de tudo, de cansaço histórico acumulado, é algo que corre ao longo de “Subúrbio” como pano de fundo, de forma meio escondida e dissimulada quase até o final, quando então se explicita. Imediatamente depois de afastar de si “aquela gente toda”, Chico assume a primeira pessoa e confessa, em tom de derrota: “Perdido em ti/ Eu ando em roda/ É pau, é pedra/ É fim de linha/ É lenha, é fogo, é foda”. A estrutura da canção é circular e reiterativa, mas a hélice gira na direção do fastio, da privação da experiência e da dissipa­ção, se quisermos marcar mais um contraponto com “Águas de março”, em que há acúmulo de sentidos a cada volta. Na parte final da letra de “Subúrbio”, desagregação social e desordem interior estão amalgamados. A imagem duplicada deste fim de linha vai ecoar ainda uma vez no último verso da canção: “Fala, paciência…”. A voz que canta soa didaticamente cansada, dá a impressão de manter uma distância teatral do mundo, como se Chico imitasse a própria impaciência, deixando suspensa no ar uma ponta qualquer de sarcasmo.

“A oposição entre ‘lá’ e ‘aqui’”, diz Marcelo Coelho, “muito marcada na letra de ‘Subúrbio’, produz um certo mal-estar, que afinal é o de todo sujeito que, sem abrir mão de seus privi­légios, reconhece que a situação brasileira é insustentável”.17

“Subúrbio” foi a última música composta por Chico para o CD Carioca.

Aí percebi que o disco tinha uma estranha unidade. Apesar da variedade de temas, de levadas, o disco resultou uma coisa una. […] Foi aí que notei que faltava uma música pra fechar o disco. Veio ‘Imagina’, uma parceria com Tom.18

Há duas questões a destacar aqui. Comecemos pela “estra­nha unidade” do disco. Ela talvez resida menos numa figura­ção variada do Rio, que não deixa de ser, do que no fato de que o CD acabou tomando a forma de um “Museu de tudo”, para emprestar aqui o título de um livro de João Cabral de Melo Neto, de 1975. Cada canção ali é um mundo, ninguém duvide, mas quem notou que o disco é também um “acervo de modos de fazer canção” foi Arthur Nestrovski: “À francesa (‘Porque era ela, porque era eu’), à americana (‘As atrizes’, ‘Sempre’), à bossa-nova (‘Ela faz cinema’), à italiana (‘Renata Maria’), à moda clássica brasileira (‘Leve’), à vanguarda (‘Bolero blues’)”.19 A relação deve incluir também “Dura na queda”, um samba de gafieira, “Outros sonhos”, mistura de xote e foxtrote, e “Ode aos ratos”, baião feito em 2001 com Edu Lobo, para o qual Chico acrescentou uma embolada, que também chama de “rap-baião”.

Música que faltava para fechar o disco, “Imagina” é a pri­meira composição de Tom Jobim, uma valsa clássica feita entre 1945 e 1946, quando ele tinha 18 anos. A letra que Chico lhe deu em 1983 preserva as marcas dessa adoles­cência, criando um enredo em torno de uma fantasia amo­rosa, um conto de fadas no qual o jovem casal apaixonado brinca na noite com os encantos e os mistérios da natureza. Letra e música compõem uma atmosfera mítica, atemporal, reforçando a sensação de que, nessa canção, fomos levados à companhia de um Tom Jobim anterior à bossa-nova, pré- -histórico em certo sentido. Como contraponto, abrindo o CD, o Tom de “Subúrbio”, como já vimos, é pós-histórico, uma presença póstuma, alguém cuja influência atinge ali um ponto tal de saturação que a própria canção irá ques­tionar. Carioca se constrói e se resolve, assim, entre os dois extremos de Tom Jobim, o princípio e o fim da canção − e de certa modernidade, na qual Chico ainda se move.

Diante do emaranhado de questões que uma obra como essa é capaz de levantar − para o país, sim, mas também para a canção −, parece simplesmente regressivo o que diz Luiz Tatit a respeito do assunto: “Não nos preocupemos com a canção”, escreve ele, tranquilizando a todos e dando o tom do seu recado já na abertura de um artigo publicado em 2006.

Um dos equívocos dos nossos dias é justamente dizer que a can­ção tende a acabar porque vem perdendo terreno para o rap! Equivale a dizer que ela vem perdendo terreno para si própria, pois nada é mais radical como canção do que uma fala explícita que neutraliza as oscilações “românticas” da melodia e con­serva a entoação crua, sua matéria-prima. A existência do rap e outros gêneros atuais só confirma a vitalidade da canção.20

Tudo não passava de um mal-entendido, em torno do qual perdemos tempo à toa. Para não dizer que não falei das flores: o argumento oscila entre a platitude (rap tam­bém é canção!) e a satisfação (a canção vai muito bem!). Se Tinhorão é mesmo um pensador grosseiro, Tatit acaba sendo fino demais. Tomado como fato consumado (Tinho­rão) ou como quimera (Tatit), o “fim da canção” deixa de ser um problema substantivo inscrito no presente, sobre o qual tem algo a nos dizer. Em ambos os casos, para falar naquela outra língua em desuso, falta negatividade à reflexão.

Se essa discussão vai além de um cabo de guerra tolo entre especialistas, para tocar, como sugerimos, em um nervo sensível da cultura, é também porque ela transborda por todos os lados e exprime uma dúvida de fundo a res­peito do momento histórico atual. A sensação de que as coi­sas estão aos poucos se ajeitando no país voltou a ter vigên­cia no campo da esquerda. Essa compreensão do presente se baseia na aposta pragmática de uma integração social paulatina, sem mágicas nem rupturas, escaldada pela ruína do castelo socialista e beneficiada agora pelo provável fim da fase de euforia liberal. Não haveria mais razões para ficar chorando o leite derramado das promessas que o nacional-desenvolvimentismo frustrou. Essa visão mais otimista e, digamos, mais complacente com o destino dos abismos brasileiros, rivaliza, no entanto, com a percepção de que a dinâmica do capitalismo contemporâneo carrega a água para o moinho da destrutividade social, pouco importando o luxo a que se permitiu o país, governado há quase duas décadas pelo que de melhor a antiga esquerda conseguiu produzir. O Brasil seria, aliás, um imenso parque temático à disposição da evidência de que modernização da economia e avanço social podem não coincidir.

As palavras acima são, como se sabe, uma paráfrase do que disse o ensaísta e crítico Roberto Schwarz, para quem, embora seja útil e deva ser feita, a “comparação entre pata­mares de desgraça esvazia a ideia de progresso”. E, apesar de reconhecer obviamente alguma espécie de progresso nos últimos decênios, Schwarz sustenta que sumiu da nossa frente “a perspectiva do progresso orientado e acelerado, fruto do conflito e da consciência coletiva, que tornasse o Brasil um país decente em tempo de nossas vidas. Bem ou mal, era essa a aspiração da esquerda”.21

Voltando ao nosso quintal, é claro, por exemplo, que, de um ângulo democrático, o protagonismo do rap deve representar um avanço em relação à passividade daquela gente humilde cantada em verso e em prosa pela condescendência brasileira. O que não quer dizer que o rap, ao implodir o mito da nossa utopia cordial, não seja ao mesmo tempo, como expressão cultural e fato social, o sintoma furioso de um fim de linha histórico. Emancipação ou regressão? As duas coisas? “Não existe nenhum documento de cultura que não seja também um documento de barbárie”, como escreveu Walter Benjamin.

Estamos, ao que parece, diante de um aporia, que pode significar tanto a dúvida decorrente da impossibilidade objetiva de obter uma resposta como, também, uma situação insolúvel, sem saída. Ou, ainda, numa terceira acep­ção do dicionário Houaiss, a figura retórica pela qual o orador simula uma hesitação. Todos esses sentidos concorrem na reflexão de Chico Buarque em torno do “fim da canção” e, mais ainda, estão de alguma maneira plas­mados no tratamento que ele deu à questão em sua obra musical recente. Uma coisa parece certa: o último Chico comunga com Schwarz a ideia de que desapareceu do nosso campo de visão a perspectiva de sermos ainda um país decente.

Diante do cortejo triunfal dos progressistas de hoje, podemos vê-lo can­tar e depois se recolher em silêncio: “Não me leve a mal/ Me leve à toa pela última vez/ […] Pense que eu cheguei de leve/ Machuquei você de leve/ E me retirei com pés de lã/ Sei que o seu caminho amanhã/ Será um caminho bom/ Mas não me leve”.

 

FERNANDO DE BARROS E SILVA é jornalista da Folha de S.Paulo, autor do livro Chico Buarque (Publifolha, 2004).

 

2 respostas para O fim da canção (em torno do último Chico)

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