O fim da canção (em torno do último Chico)

O interesse do depoimento de Chico sobre Vinicius, ou do que ele recorda nos DVDS em que passa sua obra em revista, vai além da capacidade que ambos têm de entre­ter ou emocionar. Eles nos remetem a uma época em que a música popular funcionava como um espelho afetivo, um lugar privilegiado da cultura, no qual identidade coletiva e experiência interior se tocavam de maneira significativa, compondo uma atmosfera comum e um horizonte parti­lhado.7 Isso, como se sabe, não existe mais, o que não deixa de configurar um certo fim da canção.

Entre parênteses, é preciso ficar claro que essa “atmos­fera comum” de que a MPB era o catalisador nunca foi vivida ou experimentada pelo “povo brasileiro” enquanto tal, numa espécie de comunhão de classes inexistente na vida real. Quando falo em “identidade coletiva”, estou me refe­rindo de forma implícita (é óbvio) às classes médias letra­das dos grandes centros urbanos, que muitas vezes, inclu­sive no período em questão, confundiram suas aspirações (e ilusões) com os interesses nacionais. Num ensaio famoso em que se dedica às formas do pensamento radical no Bra­sil, o crítico Antonio Candido observa que o homem radical “pensa os problemas na escala da nação, como um todo” e “deste modo, passa por cima do antagonismo entre as clas­ses”, tendendo “com frequência à harmonização e à conci­liação, não às soluções revolucionárias”.8 A descrição parece bastante adequada à sociedade civil progressista que se sentava ao redor da fogueira da MPB − quem não se recorda de “No Woman, No Crÿ”, em 1979?

Dito isso, com tudo o que há de impreciso nas periodiza­ções, foi ao longo dos anos 1980 que a MPB perdeu sua cen­tralidade na cultura brasileira. Primeiro, a redemocratização dispersou as energias mobilizadas no combate à ditadura, no qual a música popular teve o papel de destaque que se conhece. Segundo, a própria rede­mocratização frustrou as expectativas que havia criado no período anterior. Não só ficou logo visível que as demandas sociais represadas durante déca­das não seriam nem de longe solucionadas, como, além disso, percebeu-se que o povo, essa entidade idealizada pelas esquerdas, havia sido abduzido pelos chamamentos do consumo e do entretenimento (caminho que as pró­prias esquerdas, em larga medida, fariam depois − afinal, é preciso ir aonde o povo está). Terceiro, a consolidação da indústria cultural no país, no caso da música, já então sob forte influência da onda pop e de tendências inter­nacionalizantes, criava exigências inéditas, quando não um ambiente de franca hostilidade para os artistas da velha MPB. Os constrangimentos pas­savam a ter origem no mercado, onde o jogo ficava mais pesado. “A voz do dono e o dono da voz”, que Chico compôs em 1981, é uma resposta a isso.

Como pano de fundo, na base material dessa nova paisagem, a década de 1980 foi escancarando a desagregação do nacional-desenvolvimentismo, em torno do qual haviam sido feitas as apostas de modernização e integração social do país. A utopia da civilização brasileira forjada nos anos 1950, antes golpeada no seu coração democrático pelo golpe de 64, morria agora de falên­cia múltipla dos órgãos, testemunhando a agonia de um ciclo histórico justa­mente no momento em que a democracia renascia − de mãos vazias.

Que se pense, por exemplo, como forma de dimensionar o tamanho do enrosco no âmbito da música popular, no destino (e desatinos) de uma obra decisiva e mesmo genial como a de Milton Nascimento. Privada das referên­cias nacionais, ela descarrila em meados daquela década e passa a flutuar no mercado internacional da world music, no qual emplaca, para exportação, na condição de curiosidade étnica embalada por uma voz divina. As novas gerações parecem não ter a menor noção da importância do que ficou para trás, no rastro daquele trem azul das Minas Gerais.

Mas sigamos. A “fantasia desfeita” em torno da MPB não significa, é claro, que a canção, como tal, esteja à morte, a despeito do rebaixamento brutal do gosto, que é real e está bem caracterizado pela hegemonia conquistada na ciranda do entretenimento por gêneros como o neossertanejo, o axé ou o pagode. Se está em curso, de fato, um capítulo brasileiro do que um dia chamamos de regressão da audição, também é verdade que a canção popu­lar, na sua enorme variedade e capacidade de se transformar, continuou a produzir artistas do quilate de Itamar Assumpção e Arnaldo Antunes, Cazuza e Renato Russo, Cássia Eller e Marisa Monte, Lenine e Zeca Baleiro, entre outros.

O que não se sustenta mais, para falar como José Miguel Wisnik, é o mito alimentado por gerações inteiras, segundo o qual “no Brasil, a possi­bilidade de haver música popular difundida em grande quantidade e com extraordinária qualidade ligou-se ao mesmo tempo ao hori­zonte de uma modernização progressista do país”.9 Dizendo isso em 2001, na posição privilegiada e contraditória de um músico-intelectual, Wisnik comentava então que esse mito, no qual apesar de tudo ainda tinha confiança em meados dos anos 1980, “pode se dissolver e desaparecer como os mosaicos bizantinos”. É uma imagem forte e bela. Faz eco ao que Chico dizia sobre Vinicius, faz também pensar em Milton Nascimento. E não deixa de evocar os “vestígios de estranha civilização”, submersos, que um dia “os escafan­dristas virão explorar”, conforme essa canção arrebatadora de Chico Buarque, “Futuros amantes”, que vislumbra num futuro remoto amores que se valem sem saber do que se perdeu para sempre no passado: “Futuros amantes, quiçá/ se amarão sem saber/ com o amor que um dia/ deixei pra você”. Talvez aqui possamos ajeitar um pouquinho e dizer: alguém há de ouvir a canção que afundou no mar.

Na entrevista que nos serviu como ponto de partida, Chico afirma que o interesse pela música de sua geração hoje “parece pequeno”. É uma verdade. E tem a ver, em alguma medida, com seus desenvolvimentos internos. Ou com a maneira pela qual essa canção, desalojada pelas razões que vimos, foi se tornando mais arredia aos parâmetros e aos gostos do mercado, menos imediatamente desfrutável, menos afeita à empatia e à fruição instantâneas. Canção que foi, com o tempo, passando a requisitar uma atenção, por assim dizer, não natural, algo como uma dificuldade em segundo grau, ao mesmo tempo que se tornava mais exi­gente e consciente de seus procedimentos.

No caso específico de Chico, isso é evidente. E não parece fortuito que, a partir dos anos 1980, a própria música venha se constituir em tema e objeto privilegiado dessa “lírica mais reflexiva, que se recolhe em sua concha para escutar a si mesma. ‘Choro bandido’ (1985), ‘As minhas meninas’ (1987), ‘Morro Dois Irmãos’ (1989) e ‘Tempo e artista’ (1993) são exemplos eloquentes disso.”10 As parcerias sublimes com Edu Lobo − “Beatriz” (1982), “Valsa brasileira” (1989), entre outras −, que frutificam desde o começo daquela década, são um sintoma, a um tempo causa e efeito, da sedi­mentação de um estilo maduro, mais introspectivo e depu­rado, para o qual contribui ainda o encontro de Chico com o maestro Luiz Cláudio Ramos, responsável pelos arranjos a partir do CD Chico Buarque, de 1989.

2 respostas para O fim da canção (em torno do último Chico)

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