O fim da canção (em torno do último Chico)

O traço decisivo e definidor dessa obra, no entanto, será a influência crescente que nela exerce o trabalho de Tom Jobim, configurando o que chamei de “jobinização” de muitas das composições de Chico .11 Ela se dá, de um lado, de maneira explícita, em citações musicais e em vários depoi­mentos públicos; mas se dá, sobretudo, pela interiorização do legado de Jobim na criação de seu maior herdeiro. Ambas as coisas vão aparecer na forma de problema numa canção como “Subúrbio”, em que Chico fala na língua de Jobim, levando-a aos limites de suas possibilidades, ao mesmo tempo que constata que essa língua − que é a dele − já não é mais capaz de dar conta do recado, embora só ela possa exprimir essa sua impotência diante da realidade.

Voltemos um instante ao CD Paratodos, de 1993. Este é, sem dúvida, um dos trabalhos mais fortes de Chico Buar­que, ponto de encontro e realização da maturidade. Nele, o acento lírico e certo retraimento que marcam a produção do período anterior finalmente explodem numa grande celebração, com ares de festa pagã (“evoé” é o grito festivo com que as bacantes evocavam Dionísio). Chico aí se reco­nhece como parte de uma tradição brasileira e traça, em júbilo, sua árvore genealógica musical. Um a um, vai home­nageando, pelos nomes, seus pares, amigos e mestres que­ridos, com reverência, mas também com humor, malícia, alegria. Tom Jobim desponta na canção imantando tudo e abraçando a todos, na figura do maestro soberano, “quem soprou esta toada/ Que cobri de redondilhas/ Pra seguir minha jornada”. Não apenas a canção, mas o CD inteiro tem o sabor da reconciliação do compositor com a cultura nacio­nal e popular, chancelada pela música, a despeito de tudo.

É totalmente diverso o contexto em que Chico vai recor­rer a Tom Jobim em “Subúrbio”: “Perdido em ti/ Eu ando em roda/ É pau, é pedra/ É fim de linha/ É lenha, é fogo, é foda”, canta o compositor, já perto do final da letra, no único momento em que o eu lírico da canção faz uso explícito da primeira pessoa. Há aqui algo como um pedido de socorro. Chico já não segue mais sua jornada; ele agora anda em roda, às voltas com um fim de linha e diz estar “perdido em ti”. Mas quem é esse “ti”? O Rio, a cidade maravilhosa que dá as costas ao subúrbio. Sim, claro, mas é ao mesmo tempo a canção, o próprio Jobim. É nela (nele) que o compositor anda em roda, sem saber para onde ir.

O trecho em questão parodia, como se sabe, os versos iniciais de “Águas de março”, invertendo seu sentido. Na canção de Jobim, “É pau, é pedra, é o fim do caminho” repre­senta menos uma limitação do que sugere que estamos no início da mata intocada, diante de um recomeço do mundo. O compositor fará que seja assim: envolvida pela repeti­ção em espiral de melodia e de palavras, a matéria cantada (fragmentos da natureza, eventos naturais, objetos e cenas do cotidiano as mais prosaicas) vai se transfigurando em experiência subjetiva carregada de sentido, até desembocar no verso final: “É a promessa de vida no teu coração”.12

Canção de afirmação da vida, “Águas de março” é ao mesmo tempo a que melhor exprime e simboliza a passagem do perí­odo da bossa-nova (incluídos os anos 1960, vividos a maior parte nos Estados Unidos) para a fase “mateira” dos anos 1970, quando a natureza se impõe como tema e força atávica na obra de Jobim. Não é casual que ele se reaproxime do trabalho do seu grande mestre Heitor Villa-Lobos no final dos anos 1960. Jobim de alguma maneira se retira da história para ser feliz. Num artigo notável sobre a “Canção do exílio”, primeira parceria entre Tom e Chico, de 1968, o crítico Lorenzo Mammì escreve que “em ‘Águas de março’, Jobim enfim volta para casa”.13 Em “Subúrbio”, podemos dizer, Chico está exilado dentro de casa.

Essa ideia se reforça quando nos voltamos para os aspec­tos propriamente musicais da canção. Sobre eles, Arthur Nestrovski explica que Chico desta vez levou as lições que vêm de Tom Jobim a um ponto extremo, a partir do qual, em termos formais, não haveria mais para onde ir. Em “Subúr­bio”, a aceleração harmônica e os intervalos melódicos pequeníssimos preenchem todos os espaços possíveis da can­ção, obtendo o efeito de um deslizamento incessante, de um cromatismo levado aos seus limites, que faz com que tudo se mova ao mesmo tempo. “Não podemos mais imaginar o que ele possa fazer, em termos harmônicos e melódicos, para além deste ponto a que ‘Subúrbio’ chegou”, diz Nestrovski.14

Chico tensiona assim a corda de uma tradição da música popular dotada de extraordinária autoconsciência, da qual ele é o herdeiro encurralado. Levada ao paroxismo, a canção flerta com seu esgotamento formal, ao mesmo tempo que tematiza e se torna ela própria sintoma de um esgotamento histórico “Subúrbio” é um choro-canção que tem como assunto a invisibilidade social dos pobres, a cidade que “não figura no mapa”, o Rio ignorado por nós. Que se trata de algo que nos é distante e alheio, os primeiros versos já dizem: “Lá não tem brisa/ Não tem verde-azuis”, como a indicar, por meio de pri­vações naturais e de ordem estética, uma carência de outro tipo, construída historicamente.

2 respostas para O fim da canção (em torno do último Chico)

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